PICICA: "Há
uma frase dita por Deleuze ao recordar sua infância: quando se é acordado num certo momento, a gente é acordado por alguém."
Um gosto pelos encontros.
Luiz Orlandi.*
As anotações aqui transcritas são apenas o esboço de uma busca que as atrai, embora as supere consideravelmente. Por isso, não desembocam numa conclusão. Elas pretendem buscar uma pluralidade de ocorrências que talvez permitam tratar – como decisivo para uma filosofia em devir – o jogo da produtividade dos encontros na co-criação conceitual deleuziana. Como isso implica o problema da imanência, este pode ser assim resumido [1]: assim como a potência de casuais encontros intensivos lança o pensador deleuziano à espreita de um pensamento necessário e de atuações pontuais, assim também é na imanência dos encontros que a repetição diferencial de multiplicidades intensivas, proliferando implicações mútuas entre o virtual e o atual, põe o pensamento filosófico em devir e faz do próprio pensador um co-operador de devires para além de recaídas ego e logocêntricas. Este é o abusivo resumo do problema que inspira as anotações abaixo transcritas, mas em relação ao qual elas evitam concluir de maneira peremptória.
Experiência e filosofia
De partida, convém levar em conta a seguinte banalidade: é impossível separar filosofia e experiência. Mesmo quando praticados pelo mais estrito e justificável formalismo e mesmo que o experimento se dedique ao movimento abstrato do conceito, o fato é que certos procedimentos que isolam os fluxos argumentativos de uma filosofia qualquer, evitando, portanto, referências a alguma experiência do filósofo, mesmo nesse caso um certo experimentalismo filosófico está acontecendo na determinação dos problemas, no detalhamento de vínculos entre componentes de conceitos, na seleção de pontes entre eles etc. Inversamente, outro tipo de experimentalismo filosófico está operando nas tentativas de ligar conceitos de uma filosofia às experiências individuais vividas pelo filósofo ou ao campo sócio-histórico mais geral que abarca sua vida.
Admite-se, portanto, a própria impossibilidade de separar uma filosofia qualquer de alguma experiência. Por exemplo, num dos seus primeiros ensaios da série Situations [2], Sartre indicava uma maneira toda sua de interrogar uma filosofia. Ele dizia mais ou menos o seguinte: a todo filósofo (Descartes, no caso desse ensaio) é possível perguntar pela situação privilegiada a propósito da qual ele fez a experiência de sua liberdade.
Pois bem, quando se lê escritos de Deleuze, não é raro notar que seu pensamento se envolve também com experiências, delineando, portanto, mais uma filosofia de algum tipo de experiência. Mas qual seria, precisamente, esse tipo? Caberia impor a ele a pergunta feita por Sartre a Descartes? Deleuze certamente viveu momentos ou situações em que sua subjetividade experimentou certa liberdade de escolher este ou aquele atalho para buscar esta ou aquela composição com seu território. Por exemplo, nos momentos finais de sua existência, e já não aguentando o estado de extrema exaustão do seu poder de respirar, talvez ele dispusesse de pelo menos duas vias e ainda pudesse escolher uma delas: a hospitalar, sempre oscilando entre recuperações e gradativas degradações desse poder; ou a do atalho que prevaleceu, o do suicídio capaz ou não de criar um relampejante corpo sem órgãos. Seja como for, sua filosofia não parece determinada por experiências que expressem uma soberana liberdade subjetiva.
Reencontro com o aqui-e-agora
A própria liberdade de escolher, no caso dos escritos deleuzianos, não é simplesmente a de uma subjetividade auto determinadora. Escolher esta ou aquela via nos emaranhados do território vivencial implica um complexo envolvimento da própria volição com quebradiças condições não transparentes à consciência. É num estado de profunda ignorância que se vive, aqui-e-agora, na imanência de desafiadoras condições do sentir, do pensar, do agir… condições cujos blocos se recombinam a cada lance dos corpos. Há o bloco das condições longitudinais, vale dizer: dinamismos dos movimentos de que se é capaz, dos repousos que estão ao seu alcance, das velocidades que pode atingir, das lentidões a que se é submetido, e isso tudo se passa sem que se saiba o que pode o corpo; e há o intempestivo bloco das condições latitudinais, vale dizer: a inesperada fulguração de afectos que tomam o corpo no aqui-e-agora, intensificações de um poder, sim, mas de um poder de ser afetado. Tudo isso lança as escolhas num jogo não regrado de razões contingentes e de um complicado ziguezague de paixões e ritmos, pois implicam o que se passa nos aqui-e-agora das conexões entre os corpos. Essas palavras estão aí para insinuar uma atmosfera espinosista, é claro, atmosfera que é, precisamente, aquela que dá estofo à ideia deleuziana de experiência [3].
Mas foi no conjunto dos seus escritos, entrevistas e aulas, que Deleuze consolidou conceitualmente uma filosofia da experiência desse tipo de atmosfera. Propriamente falando, ele determinou sua experiência filosófica como sendo a de um pensar por conceitos, sim, mas um pensar que implica, em sua própria efetuação, um singular envolvimento mútuo de atividade e de passividade; um pensar que se sente atuando por força de conexões diferenciais irredutíveis tanto ao voluntarismo de um sujeito pensante quanto à ordinária recepção de dados exteriores. Por isso, essa filosofia evita definir-se estritamente como um “dogmatismo” ou como um “empirismo”. Conforme ela mesma explicita, sua perspectiva é evitar dois erros: tanto o “erro” dogmático de um invasivo sujeito pensante, destinado a “sempre preencher o que separa”; quanto o “erro” empirista vulgar levado por um tipo de percepcionismo que “deixa exterior” o que se lhe apresenta como “separado”. Nessa filosofia, o pensar vem a ser experimentar o que Deleuze chama de ponto crítico. Como se caracteriza esse ponto paradoxal capaz de operar separando e reunindo? Eis como Deleuze diz o que se passa nesse ponto: trata-se do “ponto ‘crítico’ em que a diferença, como diferença, exerce a função de reunir”. É no sentido de um diferencial capaz de reunir heterogêneos que essa filosofia se define como “empirismo transcendental” [4].
Pois bem, onde ocorre, por onde se distribui essa experiência de um pensar que se sente pensando por força de conexões diferenciais que o forçam a pensar? Ela ocorre num campo problemático, num campo que não para de impor questões e disparar problemas, campo transcendental afirmado num plano de imanência… em suma, na produtiva multiplicidade de encontros que eclodem nos aqui-e-agora. O que ganhamos com esse empirismo transcendental não é simplesmente um narcísico pensamento satisfeito com suas próprias expressões, mas uma filosofia da experiência do pensar imerso nessa produtividade complexa.
Se há algum Ser em pauta nessa filosofia, é o ser dos devires que pulsam nos encontros. E se acharmos que o vocabulário dessa filosofia complica as coisas, ela nos responderá que a complicação já está nos próprios encontros dos corpos. Em estados de vivência comum, nesses estados de não-filosofia, sente-se como experiência complexa até mesmo uma admiração, uma simpatia ou algum espanto ou susto em face de algo; e isso quase sempre abre dimensões não contidas nesse algo, dimensões que o participante sente como insistentes nessa aparição.
A pluralidade dos encontros
Todo encontro ordinário, portanto, está exposto à possibilidade de uma reviravolta instantânea que pode projetar tudo para fora dos eixos. É como se a própria vida se sentisse abalada por esse vinco em que uma experiência ordinária é dobrada junto a outra, a extraordinária. Pressentimos que a efetiva complexidade da experiência dos encontros depende do que se passa nessa dobra, razão pela qual é preciso buscar sua explicitação. Cada um sente e exprime a seu modo essa ocorrência simultânea de linhas divergentes, a estranha dobradura na qual os juntados experimentam seu próprio vínculo como sendo aquilo que os lança num tempo fora dos eixos: o fantasma que aparece a Hamlet, revelando que mãe e tio assassinaram seu pai, é um lance complicando sua situação, a sensação de um eu rachado e de um tempo que não se reconcilia consigo mesmo. É o que diz a singular expressão de Shakespeare: “o tempo está fora dos gonzos” [5]. Deleuze, como é sabido, leva esta e outras “fórmulas poéticas” ao encontro de subversões kantianas. Neste caso, a subversão consiste em pensar o tempo como “forma autônoma”, forma “imutável da mudança e do movimento”, a forma pura da determinação pela qual o eu penso determina o eu sou. Com isso, esse “eu” ganha a rachadura que não se nota na fórmula cartesiana do cogito: “penso, logo existo” [6]. É a complexidade da experiência fomentando passagens de uma problemática filosófica a outra.
Por que esse flerte com uma subversão kantiana? Quando Deleuze cria ou apreende uma ressonância como essa entre Hamlet e Kant, é para fazer valer um fora produtivo, um fora que é o de forças anônimas vibrando nos encontros e se insinuando também na elaboração conceitual. Essa ressonância “romântica”, criada entre o filósofo e o personagem literário, passa por referências a combinações de um novo conceito de tempo. Essas combinações ocorrem num plano que se erige à medida que um filósofo é tomado pela criação dos seus conceitos. Portanto, estar à espreita da força que inflama encontros vivenciais, e pensá-los filosoficamente, impõe um novo estado de espreita e dedicação aos próprios encontros conceituais, o que deve inibir cada vez mais a mera substituição daqueles por estes, mas também destes por aqueles. Um dos efeitos do pensamento deleuziano é justamente este: essa dedicada espreita, duplamente instigada pelos encontros conceituais e pelos encontros entre modos de viver, acaba suscitando linhas variadas de leitura não reducionista de qualquer filosofia anterior, o que nos desloca da posição de juiz, abrindo-nos a transposições fecundadas por variados níveis de receptividade seletiva. Para Deleuze, essa dedicada espreita é também a do “empirismo”, pois este “trata o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora” [7].
No livro em que expõe o vocabulário de Deleuze, Zourabichvili aponta a tarefa que garantiria certo tipo de encontro com um pensamento: “a exposição dos conceitos é a única garantia de um encontro com um pensamento”. O termo encontro aparece em itálico para marcar o que distingue a exposição por ele defendida: ela é irredutível tanto a meras tecnicalidades expositivas, pretensamente neutras relativamente ao texto estudado, quanto a melosos sentimentos de adesão às palavras e frases do filósofo; trata-se de expor os conceitos de um filósofo, sim, mas “sob a dupla condição do simpático e do estranho” [8], condição que certamente corresponde ao que há de estranheza e força atrativa nas interseções de sítios problemáticos. As filosofias anteriores não merecem exposições tecnocratas e nem o adesismo imbecil, mas, para que isso não ocorra, é preciso que uma vibração de problemas imante o encontro com suas articulações conceituais.
O experimentalismo filosófico de Deleuze, seu construtivismo, implica também um certo respeito às outras disciplinas do pensar. Com efeito, para Deleuze e Guattari, ao lado da arte e da ciência, o pensamento filosófico, como é também sabido, é uma das “três grandes formas” ou “vias” de pensar. Sem hierarquia, elas são basicamente definidas pela comum tarefa de “enfrentar o caos”. Mas cada uma erige seu próprio e distinto plano de exercício do seu modo de pensar. Enquanto a arte pensa “por sensações”, traçando um “plano de composição”, enquanto a ciência pensa “por funções”, traçando um “plano de coordenadas”, a filosofia, ao enfrentar as variabilidades da caótica dos encontros, traça um “plano de imanência” erigido à medida que ela “pensa por conceitos” [9]. Portanto, o aprendizado filosófico da produtiva complexidade da experiência nos expõe a uma dupla impregnação: a da própria caótica dos encontros seja lá com o que for e a do vai-e-vem vertiginoso, “voltiginoso” [10], que os conceitos exibem nos variados encontros mútuos a que são levados por problemas a que têm de corresponder.
Esses problemas não são verborragias, como aqueles considerados eternos por certa imagem do que seja filosofia, e que seriam sanáveis por uma delas ou por uma higienização da linguagem. São problemas que ganham sua objetiva verdade numa revolucionária pragmática dos encontros [11]. Com efeito, em O que é a filosofia?, os conceitos ganham sentido por corresponderem dinamicamente a problemas que lhes transferem uma força de autoposição, de modo que eles, irredutíveis à arbitrariedade subjetiva ou ao simples engajamento discursivo do filósofo, implicam um modo de invenção sensível ao caráter problemático dos encontros. Desde o primeiro livro de Deleuze, essa problematicidade está numa relação de imanência com a circunstancialidade dos próprios encontros; e já se insinua na ideia de que os encontros constitutivos do próprio sujeito implicam relações exteriores aos termos relacionados [12]. Em outro escrito, Deleuze deixa ver que a própria “voz” incide na “dinâmica” dos encontros conceituais:
“a filosofia é a arte de inventar os próprios conceitos, de criar novos conceitos dos quais temos necessidade para pensar nosso mundo e nossa vida. Deste ponto de vista, os conceitos têm velocidades e lentidões, movimentos, dinâmicas que se estendem ou se contraem através do texto: eles não remetem a personagens, mas são eles próprios personagens, personagens rítmicos. Eles se completam ou se separam, confrontam-se, estreitam-se como lutadores ou como apaixonados” [13].
Sentir e pensar nos encontros
Quando se entra no jogo de conceitos de um filósofo, não é raro sentir-se oscilando entre uma leitura extensiva, geralmente guiada por um fio condutor, desde fios evanescentes até os marcadamente teoremáticos, e o estado problemático de uma leitura intensiva. Neste caso, neste estado de estranha impregnação, não é raro sentir-se ligado a um ziguezague de ritmos pelos quais transitam transpassagens de ida e volta entre encontros conceituais e encontros vivenciais. Essas transpassagens parecem ecoar dobras e desdobras que pulsam nessa dupla experiência de encontros, dobras quase sempre rebeldes a fios condutores excessivamente categóricos. Parece que elas implicam quebradiços segmentos de fios de metamorfose sensíveis às circunstâncias das ocorrências, ao que abre jogos de forças, ao que exala tensões etc. Há uma frase dita por Deleuze ao recordar sua infância: quando se é acordado num certo momento, a gente é acordado por alguém. No caso dessa frase, pode-se imaginar que esse ‘alguém’ seja Pierre Halbwach, então professor em Deauville, e que, com entusiasmo, lia aos alunos, e a ele em particular, textos de Baudelaire, de Anatole France, de Gide… [14]
Pois bem, seria ingênuo demais perguntar pela transpassagem conceitual da experiência desse encontro? Que houve nele para tornar necessária esta pergunta? Para responder, é preciso perguntar ainda outra coisa, talvez por inspiração bergsoniana: será que a memória deleuziana desse encontro esgotou-se apenas numa lembrança que o teria retido, simplesmente, como atualidade extensiva, amortecida lá nos idos da existência? Primeiro, ao encontrar-se com esse outro sujeito, chamado Pierre Halbwach, percebe-se que esse outro não foi simplesmente reduzido a um sujeito falando sobre objetos culturais; percebe-se que ele foi sentido, no próprio encontro, como uma “bela voz” abrindo mundos literários ao jovem Deleuze, mundos que se multiplicaram em sua vida. Aconteceu, portanto, a bela expressão vocálica de mundos literários possíveis. Isso basta para tomar esse encontro como intensivo, o que pede o retorno daquela pergunta: haveria, pelo menos, algum exemplo de que tal intensidade cintila em transpassagens conceituais deleuzianas?
Sim, há mais de um exemplo. Um deles vai rápida e diretamente ao ponto de interesse aqui. Encontra-se no cap. V de Diferença e repetição, nos parágrafos dedicados à noção de Outrem, “sua natureza e função nos sistemas psíquicos”. Essa dedicação buscou ir além de uma espécie de eutuismo, isto é, de retenção do par eu-tu no rodízio dos papéis de sujeito e objeto; esse eutuismo é frequente em certo nível de letras para música e de imagens para televisão, mas é também notado em certas “teorias”, diz Deleuze, que vagam “de um pólo em que outrem é reduzido ao estado de objeto a um pólo em que ele é levado ao estado de sujeito. Mesmo Sartre – que Deleuze tinha como seu “mestre” [15] extra acadêmico – mesmo ele “contentava-se em inscrever essa oscilação em outrem como tal, mostrando que outrem devinha objeto quando eu era sujeito, e não devinha sujeito sem que eu, por minha vez, fosse objeto”. O problema sentido por Deleuze é que esse tipo de rodízio mantém como “desconhecida” o que ele chama de “estrutura d’outrem” e “seu funcionamento nos sistemas psíquicos”. Mais precisamente: cabe pensar que os “dois sistemas” – vale dizer, “eu para o outro e o outro para eu” – implicam um “ninguém”. Esse ninguém é justamente “Outrem a priori”, isto é, não um palpável sujeito ou objeto, mas sim o que vibra, “em cada sistema, por seu valor expressivo, isto é, implícito e envolvente”. Imaginemo-nos encontrando um “rosto aterrorizado (em condições de experiência nas quais não vejo e não sinto as causas desse terror; esse rosto exprime um mundo possível – o mundo aterrador” [16]. Há valores expressivos produzindo-se como vibrações em certos encontros, aqui chamados intensivos. O sentir-e-pensar deleuziano é forçado a operar nas transpassagens entre valores expressivos, que saltam nos encontros, e junturas conceituais que não se impõem como coordenadas, pois operam por ordenações intensivas imantadas pelo problema que se lhes impõe. Foi dito sentir e pensar forçados. Sim, pois essas transpassagens correspondem a uma imagem do pensamento segundo a qual o sentir e pensar são afetados por conexões diferenciais que se lhes impõem de fora, justamente como acontece nesse conceito de outrem como abertura de mundos possíveis [17].
A cada instante, um problemático alvoroço de encontros vai percutindo o meio da nossa imersão vital. Dentre as redes de linhas que nos ligam à experiência dos encontros, duas delas gozam de um privilégio do qual filósofo algum pode livrar-se. Trata-se de sentir e pensar. Quando Deleuze peneira conceitualmente os encontros que o tocam, notamos que ele elabora uma singular conexão entre sentir e pensar. O que o atrai nessa nova elaboração? O que o atrai é aquilo que determina seu destino, sua fortuna, seu fado, sua sorte na história da filosofia: a problemática das diferenciações complexas implicadas nos encontros. As conexões produtivas entre sentir e pensar são decisivas nessa nova problemática. Pode-se ter uma impressão disso na simples menção a perguntas que se impuseram: por exemplo, a pergunta pelo que « força a sensibilidade a sentir » e pelo que « só pode ser sentido” e que é “o insensível ao mesmo tempo” [18].
São perguntas, aparentemente estranhas, que registram um novo tipo de atenção à experiência da percussão que freme nos encontros, atenção já presente na terceira crítica de Kant, a Crítica da razão judicativa. Essa atenção pode registrar o quanto, nos encontros, algo percutia em cada uma dessas redes de linhas abrindo fissuras até então insuficientemente tematizadas. A mera pluralidade dos sentidos empíricos não diz o drama que se passa quando, ao romper a própria tecedura do sentir, uma intensidade propaga-se como raio e vem percutir o pensar, o imaginar etc. Isto impõe a Deleuze a tarefa de corresponder conceitualmente a essa dramaturgia das Ideias no sentir e no pensar. A fórmula resumidora disso é esta: “eis-nos forçados a sentir e a pensar a diferença” [19].
Então, a pergunta pelo que se passa na dobra de complicação dos encontros aproxima-se de outra: aquela interessada no modo pelo qual certa ideia de diferença atua nessa dramaturgia em que sentir e pensar sofrem percussões que, perpassando-os, impõe uma revisão de suas conexões. É dito comumente que Deleuze contraria toda uma tradição que, segundo ele, erigiu uma imagem dita “dogmática” do que significa pensar. Num resumo abusivo, diz-se o seguinte: como “forma da representação”, essa imagem simplifica o problema: algo impressiona nossos sentidos, nossa percepção o apreende, e nosso pensar o representa a partir do esforço voluntário, do “exercício natural de uma faculdade”; essa faculdade de pensar estaria por si mesma, desde o seu íntimo, dotada de uma “afinidade com o verdadeiro”, de modo que o pensador, enquanto tal, se caracterizaria por uma “boa vontade”, assim como seu pensamento se caracterizaria por uma “natureza reta”, atribuindo-se os erros e desacertos a paixões, a uma falta de métodos etc. [20]. Trata-se de reverter essa forma, essa imagem representativa ou recognitiva que escamoteia o que efetivamente se passa quando sou forçado a sentir, a pensar etc. E como Deleuze faz isso? Ele o faz, chamando a atenção para a própria experiência de encontros que, disparando a sensibilidade, disparam outras faculdades, inclusive o pensar. Recorde-se que, em aliança com Proust, ele dizia que “o pensamento nada é sem algo que force a pensar, que faça violência ao pensamento” [21].
Isto não quer dizer que, no encontro intensivo, não haja consciência do algo encontrado: pode ser fulano, que reconheço pelo semblante ou pela voz, pode ser determinada favela, que reconheço por ter vivido em seu labirinto etc. Do mesmo modo, no encontro, aquele que percebe esse algo tem consciência de o estar apreendendo com alegria ou dor. Porém, se o encontro ficasse apenas nisso, nesse nível da consciência de algo e na consciência dos sentimentos pessoais, então não se poderia, rigorosamente, chamá-lo de fundamental, do ponto de vista da problemática que nos ocupa. Digamos que um encontro desse tipo, isto é, nesse nível, é não só inevitável como necessário, útil etc. do ponto de vista da sobrevivência, dos passeios, da vida em geral. Ele está presente em qualquer circunstância e funciona na comum apreensão das situações. São encontros extensivos.
Sentir e pensar de outro modo
Como o plano de organização dos encontros extensivos não esgota a problemática dos encontros, precisamos retomar a pergunta: concretamente, que ocorre nos encontros que Deleuze considera notáveis, encontros que põem em jogo uma outra experiência de exercício das faculdades de sentir, de memorar, de imaginar, de pensar etc? Num encontro dito fundamental, o que se passa é um processo complexo: suponhamos que eu, neste aqui e agora, neste atual presente em que vivo, esteja saboreando a qualidade sensível deste gostoso e leve bolinho chamado madalena, como aquela de Proust, por exemplo; e suponhamos que, como Proust, esse encontro gustativo com a madalena desencadeie em mim uma alegria tão singularmente intensa que não posso atribuí-la apenas a isto que me foi dado neste encontro, a esta qualidade sensível do bolinho na minha boca; assim como não posso explicá-la recorrendo a lembranças do vivido por mim no passado. Por quê? Porque essa intensa alegria, que só pode ser sentida, abre-me a estados aos quais sou involuntariamente lançado; impõe-me atmosferas que transbordam situações vividas; abre-me a virtualidades que insistem naquilo que me foi dado no encontro, mas que não aparecem no próprio dado.
Ora, um encontro desse tipo não é um encontro qualquer. Vejamos. É certo que também aqui, como nos encontros extensivos, temos consciência dos partícipes: ficamos alegres ou levamos um susto quando encontramos “Sócrates, o templo ou o demônio”; e temos consciência de estarmos apreendendo a presença dessas companhias “sob tonalidades afetivas diversas, admiração, amor, ódio, dor”. Ou seja: mesmo um encontro fundamental comporta as séries das diferenças extensivas que, num encontro marcadamente extensivo, são aparentemente as únicas; vale dizer: nunca estamos totalmente livres do “senso comum”, de modo que nos reconhecemos contentes ao saborear a madalena, que ela é um “sensível na recognição”, isto é, que conta com o acordo pelo qual os sentidos (visão, paladar etc), em seu exercício empírico, reportam- se a um “objeto” (a madalena) “que pode ser lembrado, imaginado, concebido”. De repente, porém, a intensidade da alegria percute nas linhas do sentir, escapa das ligações recognitivas comandadas pelo senso comum, com o que as linhas do pensar são também percutidas, pondo em nocaute o voluntarismo e a boa vontade do pensador. E até uma lágrima pode saltar, forçando-nos a perguntar pelo que se passa nesse estranho instante que lanceta passado e futuro simultaneamente.
Paradoxo: a filosofia é um modo de pensar por conceitos, mas o pensamento não seria suficiente, por si, para chegar à necessidade do que é pensado ou à própria necessidade de pensar. O que é preciso ocorrer para que haja essa dupla necessidade? Eis como Deleuze encaminha a resposta numa frase que escancara sua filosofia à intromissão do fora produtivo, isto é, não à simples exterioridade de encontros extensivos, mas ao surpreendente acaso de encontros intensivos: “não contemos com o pensamento para assentar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de realçar e erigir a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar”. É o cuidado com essa abertura aos encontros que justifica o combate pela “destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si próprio” e que se julga capaz de fixar um fundamento das coisas. E uma outra afirmação acrescenta mais um ponto nesse combate: “há no mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição”.
Intensificar
Primeiro, não sabemos ainda como opera esse algo. Por isso, não antecipamos o seu nome. Mas, pela frase, desconfiamos que essa alguma coisa não se esgota como objeto para o pensamento de um sujeito pronto e recognitivo, já que é posta como objeto de um encontro fundamental. Por que fundamental? Porque, em primeiro lugar, como foi dito, esse estranho objeto cintila, percute nas linhas do sentir. Essa percussão é tal que o vetor determinante nessas linhas deixa de ser aquele dominado pelo senso comum, ou seja, não é mais aquele do seu exercício empírico (exercício ordinário, embora importante), aquele pelo qual a qualidade sensível do dado é recebida pelo sentido (a simples doçura da madalena atiçando o paladar); o vetor agora determinante é o da “sensibilidade” elevada à “enésima potência”, sensibilidade que nasce momentaneamente nas linhas do sentir, que nasce por força do que provocou a percussão e daquilo que nela ressoa, ressonância que insiste no dado, embora não apareça como o dado (a intensidade da alegria, no exemplo da madalena de Proust). É a esse estranho objeto de um encontro fundamental que Deleuze dá o nome de “signo” [22].
Por que sempre se diz que esse objeto, o signo, é estranho? Primeiro, ele não é objeto para um sujeito, mas objeto de um encontro fundamental. Segundo, ele é dito estranho por uma razão aparentemente simples, mas que mostra a preocupação humiana, nietzschiana etc. de Deleuze, a de colocar seus conceitos a serviço do caso, do caso na radicalidade dele: então, se algo não suscitar alguma estranheza na própria experiência empírica de encontrá-lo, já não posso conceituá-lo como signo. Com efeito, se submeto esse algo a uma identificação na situação do encontro, se o tomo como semelhante a seja lá o que for, se o confronto com outra coisa que penso ser-lhe oposta ou se enuncio uma analogia entre ele e outro fenômeno, então esse algo já estará de antemão enredado por macro-operações que o submetem ao meu senso comum, ao meu poder (ilusório ou não) de representá-lo, às minhas agilidades retóricas etc. Eu o submeto à imagem representativa do pensamento, ao grande jogo dessa “quádrupla sujeição”, diz Deleuze, “em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto”, esses quatro guardiões da representação [23]. Mas quando a estranheza de algo me pega, sinto sem esoterismos a fragilidade desse poder de sujeitar e de fazer de cada coisa um diverso no meio de outros, ou de tomá-la como parte de um funcionamento extensivo ou discursivo qualquer etc. Então, ela me pega como signo, provocando variações em meu poder de ser afetado, forçando-me a sentir, a memorar, a imaginar… a pensar de outro modo, quer dizer, sem o apoio dos dispositivos de simplificação dos meus encontros, dispositivos de fixação de identidades, de semelhanças, de oposições e de analogias.
Na reconstrução conceitual deleuziana, o próprio encontro é pensado como conexão complexa, uma conexão que comporta linhas heterogêneas. Conforme o que se passa na multiplicidade das linhas, o próprio encontro varia: é marcado como extensivo, quando as diferenças empíricas são dadas a afecções e percepções que o pensamento representa por meio de categorias sobrepostas; mas ele pode ser marcado como encontro intensivo, quando “fluxos de intensidades” passam pelas linhas. Experimentados como vibrações de “corpos sem órgãos” [24], esses fluxos abrem afectos e perceptos, isto é, outros modos de sentir e perceber, e disparam no próprio pensar um “pensamento por demais intenso” [25], lançado num “trabalho rizomático” em meio a “percepção de coisas, de desejos”, em meio a “percepções moleculares”, ‘”micro-fenômenos’”, ‘”micro- operações’”… um “mundo de velocidades e de lentidões sem forma, sem sujeito, sem rosto”, mobilizado pelo “ziguezague de uma linha” ou pela “’correia do chicote de um carroceiro em fúria’” [26].
Por isso, a cada vez, por força da própria experiência de encontros, essa filosofia reanima-se com retomadas e variações. Não se trata, simplesmente, de macro deslocamentos conceituais entre disciplinas filosóficas. Variam, isto sim, as sondagens dos matizes do sentir e pensar, o que refina a apreensão da própria atividade noológica investida neste ou naquele caoide. Com efeito, ao mesmo tempo em que afirmam que o “essencial” está nas “forças, nas densidades e nas intensidades”, e não “nas formas e nas matérias”, é preciso entender o seguinte: a seleção valorativa do intensivo ressoa com uma tendência filosófica “moderna”, esta “idade do cósmico”, dizem. Pois bem, em Deleuze e Guattari, essa tendência quer exigir mais do próprio ato de pensar. Por quê? Porque se trata de “elaborar material de pensamento” para captar “forças não pensáveis em si mesmas”. O “problema” filosófico dessa tendência não é o de um “começo” e muito menos o de uma “fundação-fundamento”. Trata-se, isto sim, de um “problema de consistência ou de consolidação: como consolidar o material, torná-lo consistente, para que ele possa captar”, no plano de imanência que ele erige à medida que traça seus conceitos, “essas forças não sonoras, não visíveis” e até “não pensáveis?” Neste ponto, esta filosofia retoma seus encontros dionisíacos com as artes. Dionisíacos, porque não se trata simplesmente de uma comunicação extensiva entre conceitos dominadores e fragmentos de arte postos a serviço de teses filosóficas. Trata-se de uma comunicação por encontros intensivos. Pode-se falar que esses encontros intensivos são encontros entre Ideias, mas desde que se compreenda uma Ideia na imanência do seu estado problemático, na imanência dos dramas que a ocupam como dinamismos espacio- temporais. É o efeito de uma comunicação entre Ideias que se nota nas passagens dessa filosofia pelas artes, como acontece nesta passagem de Mil platôs: “Mesmo o ritornelo devém ao mesmo tempo molecular e cósmico, Debussy… A música moleculariza a matéria sonora, mas devém, assim, capaz de captar forças não sonoras como a Duração, a Intensidade. Tornar a Duração sonora. Lembremo-nos da ideia de Nietzsche: o eterno retorno como pequena cantilena, como ritornelo, mas que capta as forças mudas e impensáveis do Cosmo. Saímos, portanto, dos agenciamentos para entrar na idade da Máquina, imensa mecanosfera, plano de cosmicização das forças a serem captadas” [27]. Para não estranhar essa referência à duração como força, convém lembrar que esse conceito bergsoniano remete ao que “só se divide mudando de natureza” [28].
Empregamos a palavra intensidade, pressupondo que ela diga respeito a um conceito, mas não temos ainda uma ideia dele. Sabemos que ele opera na determinação do signo como aquilo que, intensificando o sentir, nos força a pensar. E já devemos destacar um detalhe. Dizer que ele nos força a pensar já é dizê-lo portador de uma “conexão da força com a força”. Essa conexão, ou cruzamento de forças, implica “o elemento diferencial da força” (força dominante / força dominada) que Deleuze, em seus encontros com Nietzsche, liga à ideia de “vontade de potência” [29]. Afirmar que esse elemento diferencial é a nietzschiana vontade de potência quer dizer o seguinte: é como elemento diferencial que essa vontade está “em seu mais elevado grau”, em “sua forma intensa ou intensiva” [30]. É como “princípio ‘intensivo’”, como “princípio de intensidade pura”, que a ideia de vontade de potência se desprende do “gosto” nietzschiano pela energética, do interesse pela física das “quantidades intensivas”, e opera na ideia de um diferenciador da diferença e de um critério de seleção dos encontros, seleção duplamente orientada: tanto na direção de uma ética, como veremos, quanto em prol de um pensar mais exigente, pois que coligado ao esforço por “desprender a forma superior de tudo o que é”, ou seja, “a forma de intensidade” [31].
No caso do signo, sua forma superior (a que não se reduz às qualidades sensíveis de uma de suas faces) é justamente aquela pela qual a intensificação do sentir força o ato de imaginar, de pensar etc. Por que isso ocorre? Por que se desprende essa forma intensiva superior? Nessa filosofia, não podemos buscar a causa dessa superioridade num transcendente externo ou interno ao sujeito pensante. Então, temos de buscar na própria imanência dos encontros a operação pela qual as diferenças disparam por intensificação. Nessa imanência dos encontros, qualquer coisa pode ser signo, desde que, no próprio encontro, opere um sistema de diferenças ou de diferenciações complexas em que haja uma disparação intensiva. Algo é signo quando ocorre por disparação num “sistema dotado de dissimetria”, num sistema em que há “disparatadas ordens de grandeza”. Deleuze diz ainda que o signo (ou o fenômeno) “fulgura no intervalo” dos “disparates”, pondo aí a vibrar uma estranha “comunicação”. Propriamente falando, o “signo é um efeito” no encontro de séries divergentes, efeito composto de “dois aspectos: um pelo qual, enquanto signo” (propriamente dito) “ele exprime a dissimetria produtora; o outro” (seu aspecto de dado atual) “pelo qual ele tende a anular” a própria dissimetria produtora [32]. É sob este último aspecto que ele ainda deixa um flanco aberto a macro-apropriações redutoras do seu impacto, como quando se diz que aquela intensa alegria proustiana, no exemplo já referido, remetia tão só a complicados efeitos de encontros extensivos ocorridos no passado vivido. Nos encontros extensivos, o vivido quer dizer apenas “qualidades sensíveis”. Mas, quando disparado, o vivido quer dizer “o ‘intensivo’” numa processualidade em que primam devires, “passagens de intensidade” [33]. Por implicar intensificações e passagens de intensidade em fluxos e cortes de fluxos (“já que cada intensidade está necessariamente em conexão com outra, de tal modo que alguma coisa passe”), o “estado vivido” não é necessariamente “subjetivo” e nem “individual”, mas pleno desse “movimento”, ou “jogo”, que é o das “intensidades, das quantidades intensivas”, como outros também “viram” [34].
Disparação intensiva
Depois de anotar esses pontos da teoria deleuziana do signo, tendo grifado o jogo dos encontros, reteremos o seguinte: em cada caso pensado, Deleuze encontra a necessidade e os meios de sua criação filosófica na disparação de encontros intensivos. O paradoxal centro nervoso dessa disparação é uma síntese de linhas heterogêneas, é uma síntese disjuntiva. Paradoxal, porque, em cada caso, a articulação disparadora é ameaçada por bordas grudadas à própria síntese: de um lado, são bordas que entulham os encontros extensivos com um excesso de opiniões e de comunicativismo irrisório; de outro, são bordas que trazem para muito perto a caótica das intensidades, que, todavia, não podem ser simplesmente suprimidas, sob pena de não se estar à altura da problemática da diferença. Por isso, para Deleuze, “falar da criação” é estar “traçando seu caminho entre duas impossibilidades” [35]. Por um lado, não é possível levar a crítica da representação a ponto de simplesmente suprimir o extensivo. Por outro lado, se o acaso é o mais necessário, então, nos encontros, as articulações criativas precisam das intensidades, mesmo com a ameaça de sua caótica: “dir-se-ia que a luta contra o caos” é inseparável de certa “afinidade” com este “inimigo”, pois ficar na mesmice já é perder a luta [36].
Que nome dar ao estranho ato que ecoa nas articulações cuidadas por essa filosofia em seus encontros? É o mesmo do qual os signos são feitos. É também ele que encontramos na construção de todos os conceitos deleuzianos. E nada existiria ou apareceria sem o paradoxal contágio mútuo dos heterogêneos, sem essa conexão dita síntese disjuntiva, sem esse impalpável díspar, portanto. Desde o bom encontro teórico de Deleuze com a renovação do problema da individuação por Gilbert Simondon, díspar aparece, e “sem a condição de um mínimo de semelhança entre as séries”; aparece como “’precursor sombrio’”, estabelecendo “comunicação” intensiva entre “séries díspares”, desencadeando “acoplamentos, ressonâncias internas”, “movimentos forçados”, assim como a “constituição de eus passivos e de sujeitos larvares no sistema, e a formação de puros dinamismos espacio-temporais” etc. [37]. Díspares também operam como “elementos últimos do inconsciente” [38]. Díspar aparece como “elemento paradoxal que percorre as séries” divergentes, fazendo-as “ressoar, comunicar e ramificar”, e ainda comandando “a todas as retomadas e transformações, a todas as redistribuições”; isto faz com que Deleuze o pense, nesse momento, como o “lugar de uma questão” numa conexão especial com a ideia de problema: “o problema é determinado pelos pontos singulares que correspondem às séries, mas a questão [é determinada] “por um ponto aleatório que corresponde à casa vazia, ao elemento móvel”, sendo que o complexo questão-problema (que está no paradigma do par virtual-atual) caracteriza o “modo do acontecimento” como “problemático” [39]. Pensar díspar como lugar de uma questão é uma fórmula retomada de outro modo em Mil platôs. Trata-se de uma nova incidência no sistema conceitual deleuziano. No platô denominado “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, Deleuze distingue as ciências “teoremáticas” (geometria euclidiana, por exemplo, voltada para as “constantes”) das ciências “problemáticas” ou “nômades” (como a geometria arquimediana). Díspar opera fortemente nessa distinção [40]. O que aí notamos é um desdobramento de díspar como operador de liberações, como disparação de estados intensivos, estados que aguçam no aprendiz o estar à espreita da disparada de linhas de fuga. Esse desdobramento era como que previsível desde o emprego de uma “tautologia” que definia díspar como “diferença de intensidade”. Tautologia, porque “toda intensidade é diferencial, é diferença em si mesma”. Há um diferenciar “infinitamente desdobrado” em mudanças de fases ou estados que, citando Rosny, Deleuze anota como sequência de proliferações de encontros quebradiços: “toda intensidade é E-E’, em que o próprio E remete a e-e’, e e’ remete a ε- ε’ …” [41].
Como paciente dos encontros intensivos, como sujeito larvar do seu próprio sistema, mantendo-se à espreita dos díspares, é que o pensador pode vir a ter o que pensar e a criar com seus conceitos e seus macro e micro encontros com intercessores as variações que correspondam aos problemáticos dinamismos espacio-temporais não submetidos a uma forma prévia. Pode-se dizer que essa intensificação do pensar implica uma “involução” a sínteses passivas. Implicaria uma “regressão” que não remontasse “a um princípio” [42]. É que “a ‘regressão’ é mal compreendida enquanto não se vê nela a ativação de um sujeito larvar imerso em sensações, único paciente capaz de sustentar as exigências de um dinamismo sistemático” [43]. Implicando disparações, esse duplo movimento corresponde a um problema que circula pelo sistema deleuziano, problema fecundado justamente pela complexidade dos encontros, mas que também percute na própria elaboração dos conceitos [44].
Um problema desse tipo cria uma boa conexão entre o filósofo Deleuze e o animal não edipianizado. Por exemplo, a idéia de marcar um “território”, este “domínio do ter”, situação que nos diz respeito, mas que já concernia os animais. Implicando uma miríade de matizes na multiplicidade de encontros, marcar um território não se reduz a funcionalidades. É que, por meio de “posturas, cantos, cores”, são atingidas linhas de uma “arte em estado puro”. Além disso, um “território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele”. Ou seja, não há território sem “desterritorialização”, isto é, sem que pulse nos encontros “um vetor de saída do território; e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”. E os animais participam disso, porque “emitem signos” e “reagem a signos”, e “produzem signos”. E tanto quanto o “escritor” e o “filósofo”, o animal em seus encontros “é o ser à espreita, um ser fundamentalmente à espreita” [45], à espreita de novos encontros, sem os quais a desterritorialização se reduziria à mera mudança de domicílio.
Percorrer encontros conceituais
Como percorrer os encontros conceituais deleuzianos? Esta pergunta não é meramente didática e só dirigida aos que nunca leram algum escrito desse filósofo. Como não deixa de ser uma questão de variável gosto filosófico, ela sempre retorna a cada texto lido por um iniciante ou relido por um experimentado pesquisador. Não é o caso de apresentar um guia turístico que dê a ela uma resposta. Trata-se de buscar aquilo que pulsa em qualquer detalhe dessa filosofia interessada na experiência da complexidade dos encontros: a pulsação díspar como operação amortecida ou proliferada nos encontros e implicada na criação dos próprios conceitos deleuzianos. Como elemento sem identidade, a pulsação díspar gera no aprendiz a sensação de que o sistema deleuziano é um labirinto. E a pergunta retorna: não encontraríamos por aí uma espécie de fio de Ariadne, como aquele que guiou Teseu na labiríntica aventura em que venceu o monstro?
Em filosofia, digamos que o monstro é o pensamento do filósofo… monstro, sim, por razões que ele recria a seu modo, que não nos confirmam em nossas opiniões, nem mesmo naquelas baseadas em outros filósofos. A monstruosidade aparece na forma de velozes e intempestivos encontros de noções, ideias afiadas num afã de se distinguirem umas das outras, mas que se dedicam, ao mesmo tempo, a se ajudarem mutuamente em estranhas concatenações. Só quando a leitura se sente afirmativamente afetada por uma força nascida do seu encontro com o texto, é que o estudioso percebe que não precisa matar o monstro, mas impregnar-se dele, juntar-se às suas travessias e até travessuras e, com isso, vencer em si mesmo seu inevitável estado de lentidão ou aqueles borrifos de precipitação. Isto quer dizer que o fio de Ariadne não nos espera à porta do labirinto deleuziano. Por que?
Referindo-se à literatura, Deleuze conecta a “obra de arte moderna”, essas “obras problemáticas”, ao “abandono da representação”, passando a ser decisiva uma importante questão presente em sua filosofia: a da construção de um sistema de diferenças irredutíveis a um centro ou a uma convergência. Nota-se, nesse momento, sua aliança com Umberto Eco em torno do “problema da Obra Aberta” [46]. Ele se alia para dizer que “a obra de arte ‘clássica’ é vista sob várias perspectivas e está sujeita a várias interpretações, mas que a cada ponto de vista ou interpretação não corresponde, ainda, uma obra autônoma, compreendida no caos de uma grande-obra. A característica da obra de arte ‘moderna’ aparece como a ausência de centro ou de convergência” [47]. Achamos que também a filosofia deleuziana está em ressonância com a modernidade de obras de arte assim caracterizadas, pois ela própria implica um princípio de proliferação intensiva de leituras, proliferação que acaba corroendo centros e convergências em proveito de uma coexistência intensiva que nos põe em ziguezague [48].
Mas que tem isso a ver com o termo ‘labirinto’? Pois bem, esse termo acompanha o nome de um dos operadores dessa proliferação, nome que Umberto Eco emprega ao escrever o Pós-Escrito ao seu romance O Nome da Rosa. Ele determina três tipos: o “labirinto clássico”, de Teseu, mas que é também o de Sherlock Holmes, percorrido com o auxílio do “fio de Ariadne”, comportando “entrada para o centro” e caminho do “centro para a saída”; há o “labirinto maneirista”, estruturado como “árvore”, em “forma de raízes com muitos becos sem saída”, comportando “uma só saída” e também carecendo do socorro de um fio condutor. Por fim, diz ele, há “aquilo que Deleuze e Guattari chamam de rizoma”. Neste labirinto “cada caminho pode ligar- se com qualquer outro”, não havendo “centro”, “periferia” ou “saída”, por ser ele “potencialmente infinito”. Diríamos que a pulsação díspar dispara nele uma ilimitação por efeito de fragmentações e conexões de heterogêneos. Eco rizomatiza o “mundo em que Guilherme” (uma das personagens) “pensa viver”, mundo “estruturado em forma de rizoma: ou melhor, estruturável, mas nunca definitivamente estruturado”[49].
Sem a lógica de Sherlock Holmes, Guilherme, que investiga assassinatos num mosteiro medieval, pratica uma espécie de lógica do e, pois ele é o personagem que insiste como abertura acolhedora de uma série de escolhas possíveis, a tal ponto que sua busca se complica numa prática rizomática só resolvida ao acaso dos encontros. É que “o rizoma”, tal como a conjunção “e”, não é precisamente uma coisa, mas um “inter- ser”, uma mobilidade entre coisas, salto que “conecta um ponto qualquer com qualquer outro ponto, e cada um dos seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza”, podendo por “em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos”. Ao contrário da “árvore”, o rizoma é irredutível ao Uno e ao múltiplo; ele “não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças”. Rizomatizar implica disparações e a tarefa de “mapear” multiplicidades substantivas. Então, para que o rizoma seja “modelo” dinâmico destas, é também preciso que rizomatizar comporte operações de disparação que levem o mapeamento a se aliar àqueles componentes que, presentes nas multiplicidades dos encontros, possam romper os processos que concorrem para o bloqueio delas, processos que são também produzidos nelas mesmas. Por comportar esse tipo de operação, é que os autores podem dizer que o rizoma “não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda”[50]. Aí está o produtivo e paradoxal funcionamento teórico-prático do rizoma: o modelo que mapeia dobra-se em operações que mudam a natureza do mapeado.
E se o desejo, como querem Deleuze e Guattari, é a potência desse meio, é porque ele próprio se define, não pela falta de algo, mas como “princípio imanente” de uma produtividade complexa. Essa produtividade, tão natural quanto artificial, é a de um produzir que se reitera diferentemente, uma surpreendente maquinação do fora, um “produzir sempre o produzir”, que vem a ser, justamente, a “regra” imanente das “maquinas desejantes” [51]. O ponto de vista que procuramos para vislumbrar a potência dos encontros nessa filosofia, o ponto díspar, não pode ser indiferente ao modo como essa regra opera na própria escrita deleuze-guattariana, regra que não deixa de invadir também a proliferação de textos envolvidos com essa filosofia, regra que é também aquela do gosto, como veremos mais adiante.
É interessante notar como Deleuze vê seu próprio esforço de criação conceitual. Desde um manuscrito seu dos anos cinquenta 52, o que já se impõe a ele é uma ideia de “re-criação”, de “re-começo”, pois o próprio começo já se encontra em estado de dinamismos espacio-temporais, como um “ovo irradiante”. Seus escritos são rebeldes à tristeza das simplificações praticadas pela grosseria das generalidades e até pelos dispositivos de uma representação promotora de identidades, semelhanças, oposições e analogias. A atmosfera desses escritos parece corresponder ao que eles valorizam: “um meio fino de perspectivas encavaladas, de distâncias, de divergências e de disparidades comunicantes, de potenciais e de intensidades heterogêneas”, pois “não se trata, primeiramente, de resolver tensões no idêntico, mas de distribuir díspares numa multiplicidade” [53]. O conjunto dos seus escritos é rico em passagens que comprovam seus encontros co-criativos com artes e outros pensadores. Ele diz que “os intercessores são o essencial”, que a “criação implica os intercessores”, pois “não há obra sem eles”. Não podemos tomar essas afirmações apenas como homenagem a influenciadores que teriam propiciado a ele algo importante ao seu ter o que dizer. Se ter o que dizer já está ligado à exposição de si a um campo problemático, a encontros intensivos, a coisa ganha mais uma dimensão de intensidades quando se trata de poder dizer o que se tem para dizer. É tomado pelas tensões desse entremeio que Deleuze fica à espreita de seus intercessores. E são as tensões próprias do discurso indireto livre de Deleuze, tão fortemente salientado por Zourabichvili, que se evidenciam nesta frase de Pourparlers: “ ‘dei-me intercessores, e é assim que posso dizer o que tenho para dizer’ ”[54]. Os intercessores são vetores intensivos que um poder de ser afetado seleciona em seus encontros com aquilo que o força a sentir e pensar; são como lances rítmicos que fecundam esse poder, poder que, duplamente afetado, devém transeunte, passageiro capaz de vagar entre o ter ganho o que pensar e o dizer o que ganhou.
O gosto na elaboração conceitual dos encontros
Um encontro intensivo basta para que um filósofo seja forçado a pensar; nesse encontro ele se sente invadido por um ter o que pensar e, assim, por um ter o que dizer; e outros encontros (mais ou menos intensos) propiciarão a ele intercessores decisivos para o seu poder dizer o que afetou seu pensamento. Pois bem, Deleuze e Guattari discernem algumas operações atuantes entre esses componentes do processo criativo de conceitos filosóficos. Considere-se, por exemplo, a operação que consiste em nomear um conceito, seja qual for. É suficiente manusear um dicionário de filosofia para notar o gosto filosófico por distinções que dão testemunho de variações aparentemente rebuscadas, mas que comprovam que nunca se tem a mesma coleção de encontros, o mesmo mundo na ponta das dicções diferenciadas. Em suma, nunca se tem plena consciência da atmosfera que envolve o batismo de um conceito. Como conceituar essa atmosfera? Que está implicado na simples denominação de um conceito? A resposta dos autores leva o batismo a se encontrar com algo mais: “O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação, e que constitui na língua da filosofia não só um vocabulário, mas uma sintaxe que alcança o sublime ou uma grande beleza”[55].
Se um gosto filosófico está implicado até na denominação dos conceitos, cabe perguntar: em quais operações filosóficas ele atua? Como os autores finalmente caracterizam sua função nessas operações? Entre as grandes operações filosóficas destacadas em Que é a filosofia?, há uma dedicada a inventar, a fazer viver personagens, ditos personagens conceituais (ou personagens pró-filosóficos) ricos em traços personalísticos. Essa operação, chamada operação de insistência, parece ser, à primeira vista, dado seu vigor imaginativo, a que esgotaria ou a que mais absorveria os investimentos do gosto filosófico. Aliás, um dos exemplos levados em conta pelos autores parece ir nesse sentido: é que o gosto está acentuadamente ativo na ligação que o exemplo exibe entre imagens de encontros vivenciais privilegiados por um filósofo e pesadas teses intrínsecas à filosofia dele; o filósofo, nesse caso, é Espinosa, e o encontro vivencial tem seu aspecto anedótico deslocado, filtrado por uma apreensão estritamente filosófica como esta: “o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas” se justifica porque eles “reproduzem, de maneira pura, conexões de modos no sistema da Ética ” [56]. Esse é um belo exemplo de aranhas-em-combate devindo personagem conceitual.
Essa operação de insistência — operação inventiva de personagens conceituais com seus traços personalísticos — “intervém”, dizem os autores, tanto entre a caótica das variabilidades e os “traços diagramáticos do plano de imanência”, quanto entre este e os “traços intensivos dos conceitos que vêm povoar” esse plano. Isto quer dizer que a insistência atua entre as duas outras grandes operações filosóficas, com as quais ela completa o trio de “elementos” constitutivos da filosofia: a operação de imanência, pela qual os investimentos conceituais vão traçando o plano de imanência pleno de traços diagramáticos; finalmente, mas simultaneamente, tem-se a operação de consistência de uma filosofia, que é a de criar os conceitos filosóficos plenos de traços intensivos imantados pelo problema a que correspondem.
Pois bem, que vem a ser o gosto filosófico nesse conjunto? Como não se pode deduzir alguma dessas operações das demais, sendo mesmo “incomensuráveis as conexões entre elas”, é preciso, dizem os autores, “uma co-adaptação das três”. O gosto vem a ser, então, “essa faculdade filosófica de co-adaptação, e que regra a criação dos conceitos” [57]. Pouco acima, acompanhando de certo modo o termo díspar, vimos o termo regra caracterizando o regime das máquinas desejantes como produzir sempre o produzir. Agora, no presente caso, que se deve entender por esse regrar a criação de conceitos?
Primeiro, “o gosto aparece como a tríplice faculdade do conceito ainda indeterminado, do personagem ainda nos limbos, do plano ainda transparente”. Já nesse estado nascente, o gosto não aparece como instância sobreposta, regrando de cima alguma coisa. Por que? Porque “é preciso criar” (conceitos), “inventar” (personagens conceituais) e “traçar” (o plano), de modo que o gosto aparece como regra, sim, mas “regra de correspondência das três instâncias” (produtivas, diríamos) “que diferem por natureza”. Os autores deixam bem claro que o gosto filosófico é irredutível a uma “faculdade de medida”. Eles levam o gosto filosófico a aparecer como “amor do conceito bem feito”, o que não quer dizer “moderação do conceito”, mas algo como um “relance”, uma “modulação”.
Finalmente, um dos cuidados sugeridos é não imaginar que o gosto filosófico substitua a criação dos conceitos ou a modere. Ao contrário, dizem os autores, “é a criação dos conceitos que faz apelo a um gosto que a modula”. Por que isso acontece? Simplesmente porque “a livre criação de conceitos determinados tem necessidade de um gosto do conceito indeterminado”. Isso implica, certamente, a atmosfera de encontros intensivos forçando o sentir, o pensar, o imaginar…, de maneira que o gosto, enquanto gosto filosófico, aparece como o conceito em estado potencial, como “o ser-em-potência do conceito”. A consequência disso é reafirmar que o conceito “não é criado por razões ‘racionais’ ou razoáveis”.
Cada filósofo efetua o gosto filosófico no estilo ou estilos que o caracterizam neste ou naquele estado de suas operações. Cada estilo comporta construções frásicas que estão ao alcance do filósofo; essas construções dependem de procedimentos que se distinguem tanto de um filósofo para outro quanto em escritos de um mesmo filósofo. Efetuado neste ou naquele estilo, o gosto filosófico jamais deixa sem rastros o estado de “crise permanente” em que “a filosofia vive”. Crise, sim, porque, afetadas pelos encontros, as operações que o gosto junta como pode são as de um “plano que opera por abalos”, de “conceitos que procedem por saraivadas” e de “personagens que procedem por solavancos” [58].
Mas é justamente esse emaranhado de dificuldades que excita o interesse prático e teórico por uma complexa pedagogia do conceito.
A ética nos encontros
A filosofia deleuziana, essa filosofia da experiência dos encontros, propende a uma especial produtividade ética, aquela que desata proliferações intensivas de bons encontros. Deleuze quer isso, acreditando que “não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras” [59]. É possível afirmar que Deleuze toma como bom encontro o que ele ajuda a extrair dos seus bons encontros com Nietzsche e Espinosa.
Com efeito, a nietzschiana vontade de potência é díspar, é elemento diferencial numa conexão de forças quando está em seu mais elevado grau, em sua “forma intensa ou intensiva”. Nesse estado intensivo, que a distingue de uma vontade de poder, ela força o pensar a “desprender a forma superior de tudo o que é”, ou seja a “forma de intensidade”, como vimos. Porém, ela também atua como critério de seleção dos encontros ao promover uma postura ética: esta “não consiste em cobiçar e nem mesmo em tomar, mas em dar e em criar”; é para ela que Zaratustra encontra o “verdadeiro nome”: em sua forma intensa, a vontade de potência “é a virtude que dá” [60]. Espera-se que pulse nessa virtude o que sugere o imperativo ético nietzschiano: “elevar o que se quer à última potência, à enésima potência”. O problema ético se repõe no movimento das intensidades, impondo-se um cuidado com o “jogo das intensidades baixas e intensidades elevadas”, “a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar a mais elevada e mesmo ser tão elevada quanto a mais elevada, e inversamente” [61].
Da Ética de Espinosa, este caso de amor extremado, Deleuze recolhe uma etologia. Isto quer dizer, grosso modo, que a distinção dos bons e dos maus encontros, dispensando as prescrições transcendentes da moral, passa a depender do que ocorre em duas ordens de dimensões: aquela em que os entes vivem a experiência da maneira como suas respectivas conexões constitutivas se compõem ou não em seus movimentos e repousos e em suas velocidades e lentidões (longitude); e aquela em que, nas suas mútuas conexões, vivem a experiência do aumento ou diminuição da sua “força de existir” e do seu “poder de ser afetado” (latitude), a experiência do que se passa, portanto, em seus “estados intensivos”, experiências que eles expressam em paixões alegres ou tristes [62] estes afectos que afloram como vida na etologia dos seus encontros.
Conclusão
Peço ao eventual leitor, encarecidamente, que volte a ler o prólogo destas anotações.
Atenciosamente
Luiz B. L. Orlandi
Prólogo
Experiência e filosofia Reencontro com o aqui-e-agora Pluralidade de encontros
Sentir e pensar nos encontros
Sentir e pensar de outro modo Intensificar
Disparação intensiva
Percorrer encontros conceituais
O gosto na elaboração conceitual dos encontros Ética nos encontros
Conclusão
Notas
1 Esse resumo depende de passagens pelas seguintes obras de Gilles Deleuze: Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, pp. 383-389; Spinoza et le problème de l’expression. Paris : Minuit, 1968, 162 ; e pela obra de Deleuze e Félix Guattari Mille plateaux. Paris : Minuit, 1980, p. 31. É preciso lembrar que é a essas passagens que François Zourabichvili faz uma referência preciosa em Deleuze. Une philosophie de l’événement. Paris: PUF, 2ª ed. 2004, p. 84.
2 Jean-Paul Sartre, Situations I. Paris: Gallimard, 1947.
3 G. Deleuze, Zpinoza – Philosophie pratique, cap. VI, “Spinoza et nous” (1981), p. 171.
4 G. Deleuze, Différence et repetition, op. cit., pp. 221 e 187.
5 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (“The time is out of joint”).
6 G. Deleuze, “Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne” (1986). Ver G. Deleuze, Critique et clinique. Paris : Minuit, 1993, pp. 40-49. Ver também G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?. Paris : Minuit, 1991, Exemplo 1, pp. 29-31.
4 G. Deleuze, Différence et repetition, op. cit., pp. 221 e 187.
5 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (“The time is out of joint”).
6 G. Deleuze, “Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne” (1986). Ver G. Deleuze, Critique et clinique. Paris : Minuit, 1993, pp. 40-49. Ver também G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?. Paris : Minuit, 1991, Exemplo 1, pp. 29-31.
7 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 3.
8 François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze. Paris : Ellipses, 2003, Introdução, item 2.
9 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie ?, op. cit., pp. 186, 187.
10 Em Ave, Palavra (12/20), voltiginoso é um intensificador que Guimarães Rosa põe em companhia de peresperto numa expressão que diz uma visão de colibris: “depois, mudam com a luz, bruxos pretos, uns sacis de perespertos, voltiginosos, elétricos, com valores instantâneos”. Cf. Nilce Sant’Ana Martins, O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.
11 Eis a primeira regra que Deleuze extrai de Henri-Louis Bergson (1859-1941): “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas”. Le Bergsonisme. Paris : PUF, 1966, p. 3.
12 G. Deleuze, Empirisme et subjectivité. Paris : PUF, p. 109-110.
13 G. Deleuze, “Ce que la voix apporte au texte” (1987) – em Deux régimes de fous, Paris: Minuit, 2003, p. 303.
10 Em Ave, Palavra (12/20), voltiginoso é um intensificador que Guimarães Rosa põe em companhia de peresperto numa expressão que diz uma visão de colibris: “depois, mudam com a luz, bruxos pretos, uns sacis de perespertos, voltiginosos, elétricos, com valores instantâneos”. Cf. Nilce Sant’Ana Martins, O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.
11 Eis a primeira regra que Deleuze extrai de Henri-Louis Bergson (1859-1941): “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos próprios problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas”. Le Bergsonisme. Paris : PUF, 1966, p. 3.
12 G. Deleuze, Empirisme et subjectivité. Paris : PUF, p. 109-110.
13 G. Deleuze, “Ce que la voix apporte au texte” (1987) – em Deux régimes de fous, Paris: Minuit, 2003,p. 303.
14 Cf. G. Deleuze, Logique du sens. Paris : Minuit, 1969, apêndice II, pp. 350-372.
15 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 185.
19 G. Deleuze, Différence et répétition, p. 293.
20 G. Deleuze, Différence et répétition, p. 171.
21 G. Deleuze, Proust et les signes. Paris : PUF, 1976, p. 117.
22 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 182.
23 “O Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte destes elementos e a unidade de todas estas faculdades: eu concebo, eu julgo, eu imagino, eu me recordo, eu percebo – como os quatro ramos do Cogito. E, precisamente sobre estes ramos, é crucificada a diferença. Quádrupla sujeição, em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação”. Différence et répétition, p. 180.
24 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., p. 200.
25 Mille plateaux, op. cit., p. 164.
26 Mille plateaux, op. cit., p. 347. Neste ponto, os autores passam pelo encontro com Misérable miracle, obra de Henri Michaux (1899-1984).
27 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., pp. 422, 423.
28 G. Deleuze, Le bergsonisme, op. cit., p. 32.
29 G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie. Paris : PUF, 1962, p. 7.
30 G. Deleuze, “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, op. cit., p. 166-167.
31 G. Deleuze, “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, op. cit., p. 171.
32 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 31.
33 G. Deleuze, “Capitalisme et schizophrénie” (1972), em L’Île déserte, op. cit., p. 331.
34 Como Klossowski e Lyotard. Ver G. Deleuze, “Pensée nômade”, em L’Île déserte, op. cit., p. 358- 360.
35 G. Deleuze, Pourparlers. Paris : Minuit, 1990, p. 182.
36 G. Deleuze, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 191.
37 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., pp. 156, 356.
38 G. Deleuze e F., L’Anti Oedipe, Paris, Minuit, 1972, p. 386.
39 G. Deleuze, Logique du sens, op. cit., pp. 72, 69.
40 “Como elemento da ciência nômade, o díspar remete a material-forças, mais do que à matéria-forma. Já não mais se trata, exatamente, de extrair constantes a partir de variáveis, mas de pôr as próprias variáveis em estado de variação contínua. Se há ainda equações, são adequações, inequações, equações diferenciais irredutíveis à forma algébrica, e inseparáveis por sua vez de uma intuição sensível da variação. Captam ou determinam singularidades da matéria em vez de constituir uma forma geral. Operam individuações por acontecimentos ou hecceidades, e não por ‘objeto’ como composto de matéria e forma; as essências vagas são tão-somente hecceidades”. G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., p. 458.
41 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 387.
42 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, op. cit., p. 326.
43 G. Deleuze, L’Île déserte, op. cit., p. 136. Ver ainda Différence et répétition, op. cit., 128-140.
44 Eis como François Zourabichvili enuncia esse problema: “como, para além de Bergson, articular as duas dinâmicas inversas e não obstante complementares da existência, de um lado a atualização de formas e de outro a involução que destina o mundo a redistribuições incessantes?”. Ver Le Vocabulaire de Deleuze, op. cit., Verbete “Corpo sem órgãos”.
45 L’abécédaire de Gilles Deleuze, op. cit., letra A como Animal.
46 Umberto Eco, Obra Aberta, tr. br. de Giovanni Cutolo com revisão de Pérola de Carvalho, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1971.
47 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 94, n.1.
48 “Quando invoco o ziguezague, a questão é como por em conexão singularidades díspares”, diz Deleuze em L’Abécédaire, op. cit., p. 200.
49 Umberto Eco,, Postille a “Il nome della rosa” (1984). Pós-Escrito a “O Nome da Rosa”, tr.br. de Letizia Z. Antunes e Álvaro Lorencini, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2a.ed., 1985, pp.45-47.
50 G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux,op. cit., p. 31.
51 G. Deleuze e F.Guattari, L’Anti Oedipe, op. cit.: “A produção como processo excede todas as categorias ideais e forma um ciclo ao qual o desejo se relaciona como princípio imanente” (p. 10-11). “A regra de produzir sempre o produzir, de inserir o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção de produção”, p. 13.
52 G. Deleuze, « Causes et raisons des îles désertes », em Lîle déserte, op. cit. pp. 11-17.
53 G. Deleuze, Différence et répétition, op. cit., p. 71.
54 G. Deleuze, Pourparlers, op. cit., p. 171.
55 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 13.
56 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 71.
57 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., p. 74.
58 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, op. cit., pp. 75, 76, 79.
59 G. Deleuze, Pourparlers, op. cit., p. 196.
60 G. Deleuze, “Conclusions sur la volonté de puissance et l’éternel retour » (1967), em L’Île déserte, op. cit., pp. 166-167 ; 171.
61 G. Deleuze, “Pensée nômade” (1973), em L’Île déserte, op. cit., pp. 358-360.
62 G. Deleuze, Zpinoza – Philosophie pratique, op. cit., p. 171. Ver também pp. 27 ss : cap. II, « Sur la différence de l’Ethique avec une morale ».
*Este aparelho semiótico foi publicado originalmente para o evento Deleuze Internacional, reunindo uma série de artigos escritos por interlocutores da filosofia de Gilles Deleuze no Brasil. Essa edição foi nomeada por Deleuze na terra das palmeiras e sua organização foi realizada por Wolfgang Pannek. Para conhecer os trabalhos da série e experimentar outros encontros deleuzianos, acesse o território a seguir: http://deleuze.tausendplateaus.de/
**A imagem roubada faz parte da série Císco e foi tecida cuidadosamente pelo poético pintor alagoano, Pedro Lucena. Para enveredar em seus caminhos afectivos, acesso o território: https://www.flickr.com/photos/pedrolucena/
Fonte: Territórios de Filosofia
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