janeiro 31, 2015

"Especial: sinais de outra esquerda no Syriza", por Paul Mason

PICICA: "Como um partido não-convencional ousou desapegar-se da retórica e experimentar. A escuta política. Os “clubes de solidariedade”. O carisma de Tsipras"

Especial: sinais de outra esquerda no Syriza


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Como um partido não-convencional ousou desapegar-se da retórica e experimentar. A escuta política. Os “clubes de solidariedade”. O carisma de Tsipras

Por Paul Mason | Tradução: Inês Castilho 

A vitória do Syriza sacudiu a esquerda na Europa – atingindo até mesmo os social-democratas moderados, que se debatiam em busca de idéias e inspiração desde a crise de 2008. Agora, há em todo canto conversas sobre “fazer um Syriza” – e na Espanha, onde o partido de esquerda Podemos está obtendo 25% nas pesquisas, mais do que conversa.

Mas o percurso do Syriza até tornar-se o primeiro governo europeu de extrema esquerda nos tempos modernos não foi nem fácil nem inevitável. Nos últimos 22 dias, participei de uma equipe de documentaristas gregos que acompanhou os ativistas e líderes em campanha, para ver como eles conseguiram vencer. Pude vê-los oferecendo novas esperanças a agricultores no limiar da pobreza, e angariar víveres para sua rede de bancos de alimentos. Vi como conquistaram comunistas da velha guarda, no sindicato dos estivadores, que sofriam por ver seu local de trabalho vendido aos chineses; e como apresentaram, em contraposição ao establishment político e à elite corrupta, uma alternativa jovem e contemporânea. Vi seu líder, Alexis Tsipras, em ação em seu escritório particular, em momentos críticos.

Tsipras é tão carismático que nem precisa de uma equipe de imprensa de classe mundial. Mas quando o entrevistei, na primeira semana de campanha, ficou claro que o Syriza não tem escassez de assessores de imagem. “Desculpe, mas tenho de vetar isso”, diz o secretário de imprensa Danai Badogianni, bem quando Tsipras parece convencido a falar em inglês para a câmera. “Caso contrário, vai abrir um precedente.”


A campanha de Tsipras começou a partir de uma atuação sólida na oposição parlamentar. Em 3 de janeiro, o dia em que ele lotou um estádio com cinco mil membros do partido, o núcleo interno viu-o levar a esquerda de seu partido a se resignar e retirar as objeções à sua escolha de candidatos ao parlamento. Tsipras transformou tanto o partido como seu funcionamento; o comitê central, em sua sede surrada, tornou-se menos importante do que a equipe política do candidato.

De perto, ele fala um inglês perfeito e tem uma risada contagiante. Há alguns parlamentares do Syriza craques em serem contidos e discretos, nas conversas em off, mas Tsipras não é um deles. Conversamos francamente sobre informações controversas que sua equipe econômica deu aos mercados financeiros, e sobre a tentativa de suborno escandalosa que, segundo ele, torpedeou a estratégia eleitoral da direita. Ele posa, sem vacilar, para selfies com as jovens gregas com quem estou filmando, sabendo que as fotos estarão no Facebook em minutos.

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Tsipras com apoiadores de Thessaloniki

Apesar de convocar não menos que quarto professores de economia de esquerda para sua equipe ministerial, Tsipras parece ter, ele próprio, a mais clara compreensão da economia política, para seu próximo confronto com o Banco Central Europeu. Os anúncios decisivos, quando vierem, serão feitos por ele.

Mas, além do profissionalismo e disciplina, Tsipras definiu um ritmo de campanha avassalador. Sua margem de vitória, nas pesquisas em janeiro, era de 2 pontos percentuais. Com todos os canais da TV grega contra ele, e a maioria dos jornais, a direita esperava retomar a liderança. Mas, ao contrário, foi o Syriza que disparou.

O interior em revolta e a escuta política

No sol fraco de janeiro, as montanhas ao longo do Golfo de Corinto estão cobertas de neve. Espalhadas ao longo das encostas estão aldeias conhecidas como “castelos” políticos, normalmente tão apegadas a um ou outro dos principais partidos – Pasok [ex-social-democrata] e Nova Democracia [centro-direita] – que você pode orientar-se, em época de eleição, seguindo os cartazes. Mas esta é, hoje, uma terra conturbada; dois terços dos plantadores de vinhas e pomares de limão estão tecnicamente falidos. Foram forçados a hipotecar suas terras, os bancos querem reaver seus empréstimos e o índice de suicídios avança, nestas tranquilas cidades agrícolas.

Giannis Tsogkas, um plantador de uvas de 56 anos de Assos, nos diz: “[O governo] nos empurrou para o acordo com o FMI e tudo que eles fazem é obedecer os conservadores. Os pequenos vão morrer. Continuamos ouvindo sobre gente se suicidando. De modo que tentamos encontrar alguém na esquerda que nos proteja. E encontramos o Syriza.”

Ao cair da noite, a taverna próxima a Psari está cheia de idosos e crianças – a maioria dos jovens adultos se foi. Os rostos sofridos dos agricultores na miséria observam com cuidado um homem do Syriza que faz um discurso em estilo bolchevique: “Por que o FMI quer nos destruir? Será que é porque o sol brilha aqui? Será que é porque somos um povo hospitaleiro? Eles odeiam a vida do sul da Europa? ”

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“No Syriza, nós encontramos alguém para nos proteger”, diz o plantador de uva Giannis Tsogkas.

Mas, diz o candidato à eleição Theofanis Kourembes, não foi a retórica que tornou vermelhas cidades como esta. “A gente vai e ajuda as pessoas. Escutamos quando nos dizem alguma coisa. Quando pedem ajuda, estamos aqui. Você nunca vê o Pasok ou a Nova Democracia.”

São pequenos encontros como este, a quilômetros das principais cidades, que ajudaram a transformar o Syriza, de um partido com 4% dos votos há 10 anos, num outro, que liderava com 32% das preferências, na última semana de campanha eleitoral.

“Vocês jornalistas vieram de longe até aqui para nos entrevistar”, diz um fazendeiro. “O Syriza é o único partido que fez a mesma coisa. Eles vieram e conversaram conosco. Se quiséssemos falar com os principais partidos, como os encontraríamos?”

O campo, uma paisagem árida de galhos e campos transformados, é solo fértil para a mensagem vencedora do Syriza. Os agricultores sofreram muito com a “austeridade”: ela significa impostos mais altos e menos subsídios. Mas a corrupção é também uma questão importante. Em Assos, Tsogkas nos conta como os comerciantes que compram as uvas regularmente desaparecem sem pagar. “Eles não nos dão recibos, e a lei os protege. Desaparecem, pedem falência e ficamos sem nada. Mas temos de pagar por medicamentos, salário de empregados, juros de empréstimos, eletricidade, tudo isso. Estamos esgotados”, ele suspira, “acabou.”

O sistema político grego era tão incompetente, corrupto e lubrificado pelo que eles chamam aqui de “dinheiro sujo” que, quando o dinheiro acabou, os alicerces que o sustentavam entraram em colapso.

Embora o programa econômico do Syriza seja limitado pelos 319 bilhões de euros que a Grécia deve ao resto da Europa, lutar contra a oligarquia não custa nada. Tsipras me diz: “Iniciaremos uma nova era política. Vamos fazer uma mudança maciça na governança do Estado. Não temos responsabilidade pelo estado de clientelismo criado pelos partidos que governaram o país até agora. Precisamos de um Estado que funcione e se coloque ao lado dos cidadãos. Precisamos acabar com essa farra de sonegação e evasão fiscal.”

Por toda a Grécia, o Syriza organizou bancos de alimentos, conhecidos como Clubes da Solidariedade. Acompanho os ativistas até um mercado de rua em Atenas. Usam lenços laranja e, educadamente mas com firmeza, argumentam com os agricultores que um saco de batatas ou laranjas para os pobres é seu dever social. Em meia hora, os carrinhos estão cheios de comida.

O organizador me diz: “Isso é o oposto de caridade. Estamos dando suporte a 120 famílias nesta área, e muito do trabalho que fazemos é lidar com isolamento, saúde mental e vergonha.” Você não pode agir mais profundamente na micropolítica do que quando se senta num quarto pequeno e convence as pessoas a não pensar em suicídio.  Não tem volta, a confiança construída é difícil de destruir.
E na semana final, quando as pesquisas dão ao Syriza sólidos seis pontos de liderança, torna-se claro o que está levando à vitória. Ainda que o programa do partido aponte para algo como uma democracia econômica e social de esquerda, ele está agindo de modo oposto à prática dos social-democratas em tempo de eleição. Faz promessas claras e duras, sobre pegar pesado com os ricos. Um parlamentar sênior prometeu publicamente “destruir a oligarquia” – taxar os donos de navios e patrões das construtoras, e impor regulação básica e moderna nos canais de TV privada que a oligarquia possui — os quais, hoje, não têm sequer que registrar, ou pagar pelo espectro de rádio que usam.

“A esperança começa hoje”, é o mantra de Tsipras. Isso se traduz numa nova atmosfera nos cafés e nas mesas de jantar das famílias: não estamos mais com medo.

O centro político se autodestrói

No momento do último comício eleitoral do Syriza, a mídia global acordou para a possibilidade de uma derrota. Para quem olha de fora, as bandeiras vermelhas e a multidão cantando Bandiera Rossa, o hino comunista italiano, lembram a velha esquerda – mas todos na multidão sabem que o partido está se dirigindo à direção oposta. Ele não se limitará a confrontar a Europa, na redução da dívida – exige um novo acordo. Está determinado a anular as políticas de “austeridade”. Isso, dizem os sagazes economistas amontoados nos bastidores do comício, joga o problema para o chefe Banco Central Europeu, Mario Draghi. Ele pode puxar o gatilho de um colapso bancário e de uma crise que force a Grécia a sair do euro — mas o Syriza não fará isso.

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Pichações de protesto por toda cidade. “Cancelem a dívida. FMI volte para a casa”.

Enquanto Tsipras entusiasma a multidão, Pablo Iglesias, o jornalista que levou o novo partido de esquerda espanhol Podemos a uma posição de 25% nas pesquisas, encolhe os ombros e balança como um boxeador prestes a entrar no ringue. Ele ensaia o que vai dizer e, em seguida, dá uma corrida para subir os degraus, acompanhado por uma música de Leonard Cohen, para juntar-se ao Tsipras. Ele grita, em inglês: “Primeiro vamos tomar Manhattan; em seguida, tomamos Berlim.” Em outras palavras, o FMI e o BCE terão de enfrentar um oponente determinado. Os quadros do Syriza que cercam os dois homens sabem como vai ser pesada a pressão a partir de agora.

Rena Dourou, que conheci como uma ativista esfarrapada no acampamento Occupy da Praça Syntagma de Atenas, quatro anos atrás, não pode conter seu sorriso conforme balança a mão nas ruas, abarrotadas de apoiadores: “Ninguém nos ouviu durante anos”, diz ela. “Agora todo mundo está ouvindo. E não se trata apenas da Grécia. Trata-se da Europa, e especialmente a jovem.”
Dourou está em suas primeiras semanas como prefeita eleita de Attica, a maior região da Grécia. Está descobrindo na real o que significa tentar limpar o Estado grego. Agora penteada e vestida com um terninho como uma política convencional, não consegue conter o nervosismo. Há quatro anos, conforme nos esquivávamos do gás lacrimogêneo, ela me disse: “A Europa precisa de um Chirac, ou um Schröder, ou mesmo alguém como Kirchner na Argentina. Algum tipo de líder convencional que pare com essa loucura de austeridade.” Eu brinquei: “Provavelmente serão vocês.” Hoje, ela sabe que não é brincadeira. Conforme todo o centro político europeu aquiesceu em um programa de “austeridade” que empurrou o continente para a deflação, apenas um partido de ex-trotsquistas, ecoguerreiros e ativistas Occupy tomou esse espaço.

Na noite da eleição, no ultimo andar da sede do Syriza, onde está sentada a equipe de Tsipras, o nervosismo dá lugar a um alívio estonteante, à medida em que os resultados vão saindo. As perspectivas de obter maioria no Parlamento sem coligações estão por um fio mas, minutos depois de encerrada a apuração, já ficara claro que eles venceram. Tsipras chega, radiante. Ele abraça uma mulher baixinha de meia idade de sua equipe, chamando-a de “meu pequeno porquinho”. Seus secretários estão em lágrimas. “Por que vocês estão chorando?”, brinca. “Quando perdemos em 2012, vocês estavam celebrando; e agora, que vencemos, vocês choram!”

O futuro ministro do interior do Syriza liga para os chefes do exército e da polícia. “Nós confiamos em vocês”, é a essência da mensagem. É um grande ato de fé, já que as forças militares e policiais da Grécia foram treinadas, desde a guerra fria, para suprimir a extrema esquerda agora — inclusive com aulas de “educação política”, aos oficiais, sobre os perigos do marxismo.

Nos anos que se seguiram à queda da junta militar, em 1974, a oligarquia bipartidária tolerou a esquerda, mas assegurou-se de que não houvesse chance de ela chegar ao poder. Isso, em retrospectiva, criou uma consciência de esquerda ampla, mas dormente. Tsipras está rodeado de quadros partidários que lutaram na rebelião estudantil que derrubou a junta, mas a geração de seus pais sofreu tortura e prisão durante e depois da guerra civil. Excluida do poder, a esquerda construir uma contracultura de canções rebeldes, música folclória, culto a Che Guevara e poderosas centrais sindicais de trabalhadores manuais, como os estivadores. Isso é chave para entender o que é replicável sobre o Syriza, e o que não é. O partido emergiu da cisão do eurocomunismo com Moscou nos anos 1970, mas enxertou uma cultura de esquerda soft, e conquistou a lealdade de muita gente jovem, cuja vida gira em torno de trabalho precário e sem qualificação, e que faz a mágica de sobreviver com salários de 400 euros por mês.

Tsipras transformou o Syriza de uma aliança frouxa em um partido que é a expressão, por excelência, dos valores deste vasto setor de esquerda do eleitorado grego. Bastou que o partido natural que a representava — o Pasok — destruisse a si mesmo.

Na última semana de campanha, os gregos de esquerda assistiram ao desabamento das paredes invisíveis à sua volta. As conversas com os vizinhos de direita e os colegas de trabalho não politizados eram dominados por uma palavra – Tsipras. E nos últimos dias, apenas “ele”. Assim como o boca-a-boca incessante, os bancos de alimentos, a identidade visual elegante, o que levou o Syriza ao poder foi, basicamente, a autodestruição do centro. E isso, por sua vez, deveu-se ao trabalho da União Europeia e do FMI.

Um partido da juventude e dos que rejeitam o medo

Na cidade de Assos, quando os votos foram contados, verificou-se que 1.529 dos 4.000 habitantes votaram Syriza (38%). Os conservadores, que controlaram a cidade por gerações, tiveram apenas 29%, com o partido neonazista Golden Dawn chegando a 7% – uma réplica quase exata do resultado nacional. O mapa eleitoral mostra que, fora a velha direita do interior da Macedônia e da Península do Peloponeso do Sul, a Grécia profunda tornou-se vermelha.

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Mulher levando porção de comida da cozinha comunitária em Atenas.

Kourembes, que é agora parlamentar do Syriza para Assos, diz: “Simplesmente, desta vez, o povo começou a pensar de outra maneira. Eles se deram conta de que não há saída com o grupo atual de políticos. Tomaram consciência de que, para manter-se à tona, tinham de fazer alguma coisa diferente.”

O Syriza não empregou nenhuma “tática matadora” na campanha eleitoral. Mas teve qualidades definitivas: jovialidade, plausibilidade e normalidade. Muitos de seus candidatos são jovens e elegantes; eles vivem e se comportam como gente de vinte, trinta e poucos anos. No comício de lançamento do ministro dos transportes conservador Miltiadis Varvitsiotis, os contrastes eram óbvios. Como convém a um sistema que permite aos proprietários de navios não pagar nenhum imposto sobre os lucros no exterior, a multidão aqui era idosa, de aparência requintada e desavergonhadamente rica.

Embora o próprio ministro seja parte de uma geração tecnocrática que acena ao conservadorismo moderno, é impossível ser contemporâneo quando rodeado por um aparato construído na guerra fria, e dependente do apoio de bilionários. Ao mostrar ser gente normal, evitar declarações tresloucadas de parlamentares individuais e projetar e calma, em oposição à campanha de medo da direita, o pessoal de Syriza ganhou.

Em Atenas, logo depois de fechadas as urnas, Spiros Rapanakiso, candidato do Syriza  inclina-se, exausto, contra as persianas de uma loja. Ele passou o dia em sua zona eleitoral, a comunidade do porto de Keratsini, em um Hyundai maltratado, assobiando a International pra ganhar coragem. Fica claro, quando falamos com os eleitores, que até mesmo conservadores tradicionais votaram no Syriza. Quando se dá conta de que, em vez de um repórter júnior no jornal do partido, é agora um deputado, ele murmura: “O povo grego escreveu a história e estou contente de fazer parte dela. Eu de fato não posso descrever como me sinto. Temos um grande trabalho pela frente. Amanhã vamos criar a Grécia de novo.”

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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