PICICA: "Quando os sábios se enfrentam, apartá-los só prejudica os que desejam
aprender, diz um velho preceito oriental. A controvérsia entre os dois
cineastas – Eduardo Escorel e Jorge Furtado – sobre a crítica da mídia
no Brasil, pelas amostras oferecidas, tem condições para converter-se
numa valiosa contribuição ao próprio media criticism."
JORGE FURTADO vs. EDUARDO ESCOREL
Parem, meninos, a briga não é essa
Por Alberto Dines em 30/01/2015 na edição 835
Quando os sábios se enfrentam, apartá-los só prejudica os que desejam
aprender, diz um velho preceito oriental. A controvérsia entre os dois
cineastas – Eduardo Escorel e Jorge Furtado – sobre a crítica da mídia
no Brasil, pelas amostras oferecidas, tem condições para converter-se
numa valiosa contribuição ao próprio media criticism.
Tudo começou na edição de setembro de 2014 da sofisticada revista piauí, quando o cineasta, editor e professor de cinema Escorel fez a resenha do documentário O Mercado de Notícias do cineasta, encenador, produtor e publicitário Jorge Furtado.
O embate ficou em banho-maria e nesta semana, quatro meses depois,
acaba de ser retomado pelo gaúcho Furtado em seu site “Casa do Cinema de
Porto Alegre” [ver “O mercado de notícias – dúvidas” (Escorel) e “‘Eu preciso de umas aspas suas’” (Furtado)].
Este observador entra na liça pela porta dos fundos, isto é para
observar e lamentar o desperdício de energias. Surpreendido como muitos
admiradores do contemporâneo de Shakespeare, Ben Jonson, que compôs em
1626 uma comédia sobre a recém-nascida imprensa periódica, por mera
curiosidade indagou de Furtado como descobrira a tal obra.
A curiosidade justifica-se: como biógrafo lidara extensamente com duas
outras comédias de Jonson, “Volpone, ou a Raposa” e “Epicene, ou a
Mulher Silenciosa” (escritas e encenadas em 1606 e 1609) e, como
interessado na história da imprensa, localizara obras teatrais
posteriores sobre o mesmo tema mas nunca tão próximas do início do
moderno jornalismo (1605, com o lançamento em Strasbourg do primeiro
mensário de que se tem notícia).
A informação chegou semanas, depois trazida de forma casual e despretensiosa pelo próprio Furtado quando entrevistado pelo Observatório da Imprensa (ver aqui). Ele a pescara na História Social da Mídia, de Asa Briggs e Peter Burke (Zahar, 2004, pág. 64). A edição standard
da obra de Jonson estende-se por onze volumes (1922-1923) e com isso
desativa-se um dos tópicos da contenda Escorel-Furtado: só por um acaso
seria possível encontrar obra tão raramente citada em tão extensa
bibliografia e escondida atrás de um título tão pouco elucidativo – The Staple of News,
que a tradutora da obra de Briggs & Burge converteu em “A Matéria
da Notícia”, diferentemente da opção mais chamativa de Furtado e da
parceira na tradução, Liziane Kugland (staple, além de grampo, também significa mercadoria, commodity ou matéria).
Na mesma tecla
O importante desta história é que o fenômeno não é novo: o teatro levou
21 anos para usar a imprensa como tema; o cinema, mais ágil, apenas 14.
Inventado em 1895 pelos irmãos Lumière, em 1909 o veterano ator Van
Dyke Brook dirigiu o primeiro filme sobre a imprensa, The Power of the Press.
Mas o pomo da discórdia parece ser a interdição que pesa sobre o debate
a respeito do desempenho e procedimentos jornalísticos na grande
imprensa brasileira. É um fato indiscutível, incontestável e lamentável.
No entanto, as exceções apontadas por Furtado são arroladas de tal
maneira que parecem insignificantes, ninharias.
Embora apenas dois jornais brasileiros tenham oficializado a função do ombudsman, a Folha de S. Paulo tem o seu há 25 anos, um quarto de século. Ninharia? Apenas um ano depois de promulgada a Constituição Cidadã, a Folha
oferecia à sociedade uma contrapartida que não pode ser desprezada, nem
minimizada. Quantos países da América Latina têm ouvidorias ou
defensorias do leitor? Zero.
Ao citar o programa Observatório da Imprensa como o único da TV,
Furtado parece estranhar que seja transmitido numa rede de TV pública.
Ser alternativa é uma das funções da TV pública, porém nosso horário não
é alternativo, é nobre, nobilíssimo – 20 horas – e reprisado na mesma
noite às 24h para os notívagos (jornalistas & cia).
A entrevista com Jorge Furtado ao OI na TV fazia parte de uma série de oito especiais em homenagem aos 25 anos da criação da função de ombudsman pela Folha. Da série participaram onze ouvidores da Folha
em duplas de dois (apenas Renata Lo Prete não conseguiu liberar-se da
intensa agenda de trabalho), acrescidos da então ouvidora de O Povo (Fortaleza, CE), Daniela Nogueira. Foi complementada com a entrevista do cineasta-ombudsman Jorge Furtado (aqui) e do humorista-gozador-da-mídia, Fábio Porchat (aqui).
É pouco? No dia em que o Observatório voltar a ser compartilhado
pela TV Cultura, a audiência dobrará. E no dia em que as páginas e
cadernos de TV da imprensa diária ocuparem-se da nossa programação, mais
cidadãos participarão do debate midiático.
A homenagem aos ombudsman foi apresentada de 19/8 a 28/8/2014, ela sim
em horário alternativo (melhor dizer, suplementar) porque o programa ao
vivo continuava a ser apresentado às 20 horas. E, como acontece com
todas as edições, os programas estão disponíveis no site do Observatório. Breve o programa completará 17 anos de existência e o site, 19.
Bagatela, irrisório? Em quase duas décadas batendo na mesma tecla –
“Você nunca mais lerá jornal do mesmo jeito” – tentamos injetar uma dose
regular de ceticismo numa sociedade impregnada pelo culto da celebração
e pela devoção a equívocos. Faz bem à saúde dos povos, embora entre nós
ninguém goste de aplaudir dúvidas ou conviver com desconfianças e
descrença. Em outras palavras – ninguém gosta de marginalizar-se. Todos
querem ser maioria, de preferência esmagadora maioria.
Primado da mesmice
A divergência entre os dois eminentes cineastas parece incubar-se numa paradoxal identidade: a atitude blasé,
entediada, que Furtado utilizou para cutucar Escorel e este poderá
utilizar para atacar o que lhe parece uma fúria iconoclasta de Furtado.
Precisamos urgentemente de ambos. Na segunda-feira (26/1), os rivais Folha e Estadão
ostentavam com grande destaque em suas nobres páginas de opinião o
mesmíssimo Ives Gandra Martins. Em ambas o reputado tributarista
escrevia sobre liberdade de expressão, identicamente qualificado pelos
anfitriões como professor emérito das escolas de Comando e Estado Maior
do Exército e Superior de Guerra, além de filósofo. Em ambas a mesma
acintosa omissão: o autor é um dos primeiros brasileiros
a ingressar na prelazia ultraconservadora conhecida como Opus Dei, é
seu principal supernumerário e porta-voz mais influente.
Casualidade, evidentemente. No Globo os opinionistas do dia eram
outros, mas lá comparece regularmente Carlos Alberto di Franco,
pontífice dos cursos de jornalismo da mesma Opus Dei.
Migalhas, mixaria, abobrinhas. A mesmice está nos tornando insensíveis e
cegos, incapazes de discernir e assustar. Incapazes principalmente de
escolher a boa briga.Fonte: Observatório da Imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário