janeiro 31, 2015

"O mesmo ódio vinte anos depois", por Léa Maria Aarão Reis

PICICA: "O ódio apontado no filme fermentou escancarado, à vista de toda uma sociedade envenenada durante pelo menos os últimos 20 anos até um trágico desenlace"

O mesmo ódio vinte anos depois

O ódio apontado no filme fermentou escancarado, à vista de toda uma sociedade envenenada durante pelo menos os últimos 20 anos até um trágico desenlace.



Léa Maria Aarão Reis Divulgação


Foi uma surpresa e causou furor, quando foi lançado, em 1995, o filme francês "O Ódio" (La Haine), de Mathieu Kassovitz, então um bom ator de apenas 28 anos, filho de pais que sempre trabalharam no universo do cinema; ele judeu húngaro e ela francesa. O Ódio ganhou a Palma de Melhor Diretor, em Cannes, e o prestigioso Premio Cesar daquele ano, de produção e montagem (clique aqui para ver o filme na íntegra, legendado). A partir dali Kassovitz trabalhou com os americanos, não gostou do seu modo desrespeitoso de produção e repudiou a comparação feita pela crítica francesa, na ocasião, saudando-o como herdeiro de François Truffaut.

Resolveu se dedicar apenas à carreira de (bom) ator, que floresceu e amadureceu, o mesmo ocorrendo com a do seu amigo e companheiro, Vincent Cassel - que trabalhou em La Haine. Dez anos depois, em novembro de 2005, motins se espalharam pelos subúrbios de Paris (as banlieues) e ocuparam, durante semanas, manchetes da mídia europeia após a morte de dois adolescentes de ascendência norteafricana, acidentalmente eletrocutados quando, com medo, se escondiam dos agentes policiais, durante uma blitz, para evitar verificações de identidade. A tragédia desencadeou uma gigantesca reação violenta nas ruas, escolas, delegacias e centros de convivência dos bairros da periferia de Paris e também um grande debate: os rapazes, assim como outros, detidos nas barreiras policiais daquela noite eram ou não vítimas de discriminação racial? Na ocasião, a resposta agressiva do então Ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, foi escandalosa. Sarkozy xingou os manifestantes de "ralé que deve ser limpa das banlieues com uma mangueira de incêndio.”

Kassovitz, dez anos antes, tinha sido um dos primeiros a fazer filmes de uma safra (não exibida no Brasil, exceção de La Haine) que apontavam as graves tensões fermentadas entre a polícia e a população dos subúrbios. Indignado, ele respondeu a Sarkozy:  “Suas ideias revelam inexperiência na política e nas relações humanas; e iluminam os aspectos demagógicas e egocêntricos de um homem franzino que quer ser Napoleão."

Sarkozy não chegou a Napoleão. Mas foi um presidente da França que gostaria, sem dúvida, de ter feito uma razia definitiva em várias regiões da periferia de Paris, algumas daquelas que o canal de TV americano (republicano) Fox News listou, este ano, depois do massacre de Charlie Hebdo, para os destacados turistas americanos como no go zones: bairros habitados pelos imigrantes pobres, árabes e africanos e seus jovens filhos... franceses, aos quais não se deve visitar.

O ódio, portanto, fermentou escancarado, à vista de toda uma sociedade envenenada durante pelo menos os últimos vinte anos até o trágico desenlace de 7 de janeiro.

Hoje, com o país traumatizado, Kassovitz entrou no grande debate nacional, ainda em curso, sobre a integração do islamismo na Europa e como lidar com o extremismo religioso. Em entrevista à Rádio France Inter ele anunciou que fará O Ódio 2.  Sua crônica violenta das minorias sociais esquecidas pelo governo e agredidas pela polícia terá uma sequência, duas décadas depois. Embora no passado tenha falado sobre sua intenção de parar de fazer filmes,  ele agora mudou de ideia em vista dos atentados. E propõe aspectos interessantes no meio da consternação.

"Eu não acredito que este seja um país antissemita nem islamofóbico. Eu não acho que sejamos fundamentalmente racistas. Eu acho que somos prisioneiros das nossas políticas e da nossa mídia que nos condicionam a pensar que somos assim. Nós  somos nossos próprios inimigos."

Não foi à toa que o filme ganhou o Cesar de Melhor Montagem em 95. Ela é excelente, com destaque para a sequência do prólogo filmado  agilmente em vídeo e ao som de Bob Marley apresentando as manifestações de protesto dos subúrbios, nas ruas, as depredações e a repressão violenta da tropa de choque policial. Esse tom de cinema-verdade permanece até o fim.

Os protagonistas de O Ódio são três jovens da banlieu: um negro, um judeu e um árabe. Hubert, Vinz e Saïd. Sua rotina é paralisada pela pobreza, pelo tédio, pela falta de perspectivas de inserção e ascensão social e econômica e movida pelo consumo e tráfico de drogas, furtos ocasionais; sem qualquer estímulo à educação e ao trabalho. Um companheiro deles, preso, é quem aproveita o tempo para estudar e tentar o acesso à universidade.

“Vivemos numa ratoeira. Mas o que fazemos para mudar as coisas?” indaga um deles. Para a equipe de TV fazendo uma reportagem na área: ”Isto aqui não é um zoo que se visita de carro!” Desafiadores, para os agentes policiais: ”A polícia está aqui para proteger; não para bater. Quem nos protege de vocês?”.

O Ódio se divide em duas partes. Um dia e uma noite  serão decisivas na vida dos rapazes. Na primeira, concentra-se no retrato da existência dos moços nas praças desoladas dos conjuntos habitacionais populares que soa como um prenúncio do que viria se acumulando e aconteceria de violência radical nas duas décadas seguintes, nos subúrbios cada vez mais arruinados, depredados e metamorfoseados em guetos.

Na segunda parte, a noite vivida na Paris burguesa dos ‘brancos’ bem pensantes, a cidade dos vernissages, dos centros comerciais e dos cartazes de rua onde se lê “o mundo é seu”. A cidade onde a polícia é bem educada nas esquinas - mas violenta nas delegacias onde se tortura e onde um policial ensina novas técnicas a um colega: “Estas aqui vêm de longe, da América do Sul,” ele mostra ao companheiro.

“A  situação nas periferias parisienses,” diz Kassovitz, “é esta: os policiais odeiam os garotos que por sua vez os odeiam; e isto nunca acaba”. A metáfora sobre “uma sociedade que se encontra em queda livre” e resume o insustentável estado de coisas está na abertura do seu filme. A voz deformada, em off, de Cassel comenta: “É como quem está caindo de grande altura e vai dizendo para si mesma: ‘até agora está tudo bem’; o problema é a aterrisagem.”

A observar: no último dia 8 de janeiro, um menino muçulmano foi detido e interrogado pela polícia de Nice por se negar a fazer um minuto de silêncio, na escola, e a participar de um ato de homenagem às vítimas do ataque aos jornalistas do Charlie Hebdo. Durante um debate na sala de aula o garoto disse que estava do lado dos terroristas. Convocados pelo diretor da escola, ele e seu pai foram denunciados em uma delegacia local treze dias depois por “apologia ao terrorismo.”.

Também agora, em janeiro, foi retirada de cartaz de um cinema da pequena cidade de Villiers-sur-Marne, em Île-de-France, a 15 quilômetros de Paris, a produção Timbuctu indicada inclusive para Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano. A prefeitura, (de direita) em seu comunicado oficial, justifica a medida porque Timbuctu faz – novamente - “apologia ao terrorismo.”

Este filme de Abderrahmani Sissako, uma co-produção com a Mauritânia, gira em torno de um homem preso e torturado por um grupo de fanáticos religiosos. Já vendeu 500 mil ingressos em todo país. Quem viu diz que é belíssimo.

Como se pode ver, o ódio, esse sentimento negativo e gelado, mais ainda do que sua prima-irmã - a vingança - a qual, segundo o clichê, é um prato a ser comido frio, é fatal na hora da chegada ao chão.

Créditos da foto: Divulgação

Fonte: Carta Maior

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