PICICA: "Charlie Chaplin, que estreava no
cinema há 101 anos, atiçou “sentimento mais revolucionário das massas”,
ao golpear costumes aristocráticos e aliviar tristeza do mundo"
Carlitos: delicadezas de um pária rebelde
Charlie Chaplin, que estreava no
cinema há 101 anos, atiçou “sentimento mais revolucionário das massas”,
ao golpear costumes aristocráticos e aliviar tristeza do mundo
Por Deni Rubbo
Difícil a missão de escrever algo
minimamente atraente sobre um dos personagens mais antigos e
apaixonantes do cinema mundial – e por isso, fartamente comentado e
analisado: o famigerado Carlitos, personagem antológico de Charlie
Chaplin.
De imediato, um elemento que desperta
atenção é capacidade ímpar de atravessar tantas gerações e ainda ganhar o
pódio da universalidade. Assim, existe uma construção secreta de
identificação, um curioso enigma, com aquele baixinho e o público
infantil e adulto. Mas essa universalidade de Carlitos merece uma
explicação melhor. Como disse certa vez o jornalista peruano José Carlos
Mariátegui, Chaplin tem o sufrágio da maioria e da minoria. Uma fama
que é rigorosamente aristocrática e democrática.
Um fato, aliás, bastante estranho
para os dias de hoje e para o tipo de cinema que é feito hoje; outros
tempos, outros cinemas. Afinal, Carlitos se fez em meio a um cinema
preto e branco e mudinho mudinho, embora nunca tenha transmitido tantas
cores afetivas de ternura, delicadeza e nunca tenha falado tão docemente
aos nossos ouvidos sobre coragem, utopias e sonhos. Foi aí, caro
leitor, que nasceu a relação entre o maravilhoso e o cinema. Um cinema
preto e branco colorido e um cinema mudo que fala. Chaplin, o fiador de
Carlitos, fez do cinema um instrumento musical de imaginação e afinou
com a fantasia. Uma recreação da realidade. Milagres da sétima arte.
Permeado tudo isso, Carlitos também foi
um pária. Um desajustado na vida social. E não foi um pária qualquer,
inconsciente. Foi uma pária rebelde, atrevido, desobediente. Segundo o
belo livro de Eleni Varikas, A escória do mundo – figuras do pária,
o personagem de Chaplin seria a expressão mais intensa da experiência
marginal do pária à dignidade da experiência humana universal. De todos,
ainda segundo a autora, Carlitos foi aquele que soube exprimir a
crítica incisiva da situação desumana do pária, com a inventividade
criadora de uma imaginação suprimida pelo que, na experiência do pária,
existe apenas como esperança de uma outra existência. Ele sempre teve
lado, sempre marcou posição.
E o fez principalmente através do riso,
“o sentimento mais internacional e mais revolucionário das massas”, tal
como defendia Walter Benjamin. Carlitos, por exemplo, não consegue
seguir nenhuma das mil e uma cerimônias que os ambientes aristocráticos
seguem a risca. Com sua sátira golpeava os costumes da aristocracia e
com seu sorriso aliviava a tristeza do mundo.
Talvez seja um pouco exagerado, mas há
também o elemento da presença visual de Carlitos. Enquanto ele não entra
em cena (basta lembrar dos infinitos minutos de O Circo que
antecedem sua primeira entrada), o público fica em estado de agitação,
insaciável, ansioso, como no primeiro encontro, ou no primeiro beijo,
apesar de tirarmos o chapéu e nos encantarmos com personagens que
gravitam os filmes de Chaplin. Como esquecer e não lacrimejar com a
atuação de Virginia Cherril, de Luzes da cidade, interpretando
uma vendedora cega de flores? Como não sentir o cheiro que essas flores
representam na história? Foi com ela, por exemplo, que descobri que o
cinema pode ter cheiro.
Mas é só quando ele entra em cena que se
estrutura o universo desencadeador do processo ímpar de comunicação. É
como se o cafuné finalmente chegasse ao público, sem pressa e sem
relógios. Não por acaso, o grande crítico de cinema Paulo Emílio Salles
Gomes já cantava a bola sobre isso: ou seja, o abismo que se estabelece
entre imagens que poderiam ter sido criadas por qualquer outro e a
eficácia fulgurante da presença visual de Chaplin. Diante dessa
constatação aparentemente sem explicação, Paulo Emílio convenceu-se de
que Chaplin não seria cinema: cinema é uma coisa e Chaplin outra.
Seja como for,
Carlitos encarna com seu “bigodinho de trapézio e passo de ganso”, como
costumava caracterizá-lo André Bazin, ainda hoje, ou melhor, mais do que
nunca hoje, fragmentos insubmissos de um outro humanismo e o lampejo de
uma utopia democrática e libertária. Esse pequeno personagem soprou
como ninguém a poética da simplicidade e chamou vezes e vezes em seu
mundo o comparecimento da rebeldia. Porque na família dos párias e dos
românticos loucos e dissidentes ela jamais deve se ausentar.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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