PICICA: "O que pode o Direito (e os corpos)? Um ensaio sobre a prudência e o valor prático da piedade."
Caso Archer: A Pena de Morte ou O Que Pode o Direito?
A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David |
O brasileiro Marco Archer foi executado há pouco,
em cumprimento a uma pena de condenação à morte na distante Indonésia.
Archer foi flagrado em 2003 com cocaína escondida numa asa delta e,
apesar de fugir ao flagrante, acabou preso dias depois. Desde então, ele
esperou onze anos no corredor da morte até ser fuzilado, apesar dos
seguidos pedidos de clemência do governo brasileiro. Como todo condenado
à pena capital, ele morreu um pouco a cada dia de espera pelo seu
carrasco.
Eis que, de
repente, pipocaram manifestações de apoio ao fuzilamento nas redes
sociais brasileiras, enquanto outros tantos lamentavam a tragédia -- e
mais alguns ponderavam se o Brasil, um país no qual as polícias matam
tanto, não teria na prática algo pior do que uma pena de morte formal.
O caso não
repercutiu à toa: trata-se do primeiro brasileiro executado em virtude
de condenação à morte desde 1876. À época, a pena de morte era sanção
penal comum em tempos de paz. Com
a proclamação da República, a pena de morte foi abolida formalmente do
ordenamento, embora ela já fosse mais aplicada desde a última execução.
A referida pena só ressurgiu em momentos ditatoriais: primeiro com o Estado Novo (1937-1945) -- na qual constava na própria Constituição (art. 122, 13º) -- e a partir de 1969 durante a Ditadura Militar -- graças ao infame Decreto-Lei nº 898/1969 que instituiu a primeira Lei de Segurança Nacional pós AI-5.
Tanto no Estado Novo quanto na Ditadura, a pena de morte não voltou como sanção possível para crimes comuns, mas para punir crimes políticos e crimes contra a segurança nacional. A única exceção era hipótese de punição para "homicídio cometido por motivo fútil ou com extremos de perversidade" na Constituição de 37.
E os
condenados à morte nestes momentos também tiveram sua pena comutada --
os mortos por ambas ditaduras, por sinal, foram executados em ações
clandestinas de repressão social ou política das forças de segurança,
não em virtude de condenação à pena de morte.
Hoje, a
pena só existe no Brasil em tempo de guerra. A dita inexistência de uma
pena de morte, por óbvio, se refere ao fato de que nenhuma espécie de
crime em tempo de paz (inclusive aqueles contra a segurança nacional)
pode ser punida com a morte. E, em guerra, só são assim punidos os
crimes tipificados pelo código penal militar.
De todo modo, Archer não foi morto no Brasil
ou sob leis brasileiras: na Indonésia, onde um tiro de fuzil no peito
lhe tirou a vida, a história é um pouco diferente: militarizado, o país
adota a pena de morte contra o tráfico de drogas, dentre outras
aplicações. Nada que possamos estranhar: o país é uma democracia muito
questionável, cuja história no século 20º está manchada por um histórico
pesadíssimo de violência de Estado.
Aliás, a
mesmo Indonésia que prende mulas do tráfico, e as fuzila caso sejam
condenadas, é aquela que perdoa terroristas violentíssimos. Sem
esquecer, ainda, perseguições políticas e genocídios -- como aquele que
quase varreu o Timor Leste quando este lutava por sua independência.
É curioso
notar que esse Estado, conivente com o terrorismo, com o genocídio e o
assassinato em massa de dissidentes políticos, acabou tomado como
exemplo por não poucos brasileiros em matéria de política de drogas,
direitos humanos e segurança -- justo após a execução de um
compatriota seu.
Mais do que
uma questão ética e política, o debate leva uma questão inevitável:
quais os limites da norma jurídica para mudar ou conservar o mundo? Ou
melhor, à moda de Spinoza, somos forçados a questionar: o que pode o
Direito?
Longe de não
ter legislação para combater o tráfico, o Brasil não apenas possui leis
penais duras contra isso como, também, as próprias regras processuais
correlatas são certamente mais severas do que as de um processo penal
qualquer. Nem por isso, o tráfico ou o consumo (que ainda é punido,
embora não mais com prisão) diminuíram.
Ocorre com a
pena de morte em tempos de paz, o fenômeno inverso: a Constituição a
veda expressamente, mas nem por isso deixa de haver forte apoio à medida
-- embora ele tenha caído nos últimos anos
-- ; de tal modo, ainda que não haja propriamente uma pena de morte, as
mortes sem pena perpetradas pelas polícias ocorrem aos montes.
De um modo e
de outro, a inexistência de uma pena de morte comum no Brasil e,
também, a proibição ao tráfico e ao uso de drogas são normas que não
conseguem prevalecer.
Se afirmar
que leis mais duras contra o tráfico e o consumo de drogas não tem tido
muita eficácia, por outro lado, os direitos e garantias
constitucionais, na verdade, têm funcionado muito mal.
Ao
contrário do que um leigo imagina, não basta vir uma lei, ou uma lei
mais dura, para que determinado comando prevaleça -- seja ele protetivo
ou punitivo, o que também não quer dizer que sua existência não produza
algum efeito.
É preciso,
pois, adentrar num difícil terreno, no que há de mais profundo e
complexo em matéria jurídica. O fato é que, para começo de conversa, o
Direito é linguagem, o qual se reporta a condutas bem concretas. Ele não produz comportamentos, na verdade, apenas os induz.
Uma norma
jurídica eficaz é aquela que induz uma tendência de comportamento
razoavelmente coerente na sociedade. É, sobretudo, o convencimento, uma
interferência, para o bem ou para mal, no campo do desejo: mesmo quando
eu transgrido, antes, eu reconheço o dever para só depois rompê-lo -- e
quando acato, o faço por mim, embora afetado por força externa.
Direito,
portanto, não é o mesmo que violência, ele é a maneira pela qual as
comunidades humanas a substituíram da prática cotidiana da política: no
lugar de pessoas reguladas apenas pela força das espadas (externamente e
por outrem), a expansão e internalização do Direito resulta no sujeito
que se autocensura e se autorregula, fazendo o que lhe determina sem um
soldado precisar obriga-lo a tanto.
Mesmo o
cumprimento de sanções precisam dessa servidão voluntária: em último
grau, espera-se até mesmo que o condenado aceite o sofrimento da pena,
pois sua insubmissão e consequente fuga -- ou mesmo seu suicídio no
cárcere -- inviabiliza o comando.
O próprio
carrasco, aliás, não executa a pena capital porque odeia o condenado; ao
contrário, ele nem o conhece e o faz porque serve voluntariamente a um
comando de outrem -- se optasse por não matar, não haveria aplicação da
pena, nem que o próprio condenado quisesse morrer.
Justamente
por isso, normas jurídicas nunca são plenamente eficazes ou ineficazes,
elas apenas têm graus de eficácia. Normas jurídicas só funcionam quando
convencem os outros, mas isto tem sempre um limite. Aliás, em um
cenário no qual houvesse a obediência máxima, ou a transgressão
absoluta, qualquer norma jurídica se tornaria desnecessária.
A sanção,
inclusive a pena de morte, não é nem de longe o cerne do Direito. Não
por uma questão religiosa ou ética, mas porque em matéria jurídica, o
que importa é essa capacidade de induzir docilmente comportamentos.
A pena de
morte, ou a prática de punições que importem em morte, exigem sempre a
mais profunda postura de aceitação: mas sempre que a vida está em jogo, a
força do governante, que é precisamente ter a espada na bainha e não
sacada, perde-se quando o medo é zerado e não há mais nada a perder (e,
mais importante, a sensação de nada a perder).
É por isso que Thomas Morus, sabiamente, já assinalava no início da Utopia
a estupidez da pena de morte contra os ladrões: além de fazê-los
roubar, eles se tornariam também assassinos, pois precisariam matar as
maiores testemunhas de seus crimes, quais sejam, as vítimas de seus
roubos.
Mesmo
Maquiavel irá desenvolver -- e isto não foi à toa -- um sofisticada
teoria a respeito do uso de força de letal pelo Príncipe: sempre de uma
vez, não pessoalmente e, preferencialmente, usando-se de um carrasco que
possa ser responsabilizado caso, vejamos nós, a revolta da multidão se
instalasse em resposta à(s) morte(s).
Não é toa
que a repressão mortífera, social e/ou política, se mostrou mais um
caminho para a decadência dos Estados do que de sua glória: e para
chegar aí, basta estudar a história dos totalitarismos e absolutismos
variados.
O fracasso
da pena de morte como prática se dá, em último grau, porque ela exige
que o morto aceite morrer, que a sociedade concorde com a execução.
Enfim, é preciso que as pessoas se comportem sempre com uma resignação,
na verdade, não humana -- uma ideia falsa presente no pensamento
ocidental desde Sócrates e aprofundada ao longo da história, sobretudo,
da modernidade e seus kantismos.
Essa
avaliação, contudo, não resolve a outra ponta da questão: como, então
evitar, a prática clandestina de mortes perpetradas pelo Estado? Em um
primeiro momento, é evidente que quando a polícia age fora da lei, ou em
suspensão dos direitos, ela o faz sem autorização real -- e sabe disso.
Ele não faz
como uma postura de negação absoluta do sistema, como um revolucionário
que se levanta contra uma ordem que não atribui legitimidade, mas por
uma negação relativa: ele mata, mas não o faz com o desejo de
universalizar aquela conduta -- o que equivale a uma infração
qualquer.
Aquele que
comete um real crime de roubo, não o faz esperando tornar comum aquela
conduta (ele não espera ou quer ser roubado), tampouco um policial que
tortura cidadãos numa blitz espera ser torturado um dia na mesma
situação.
É, vejamos
nós, o oposto da realidade de quem luta para instituir uma nova ordem, e
não reconhece a legitimidade das instituições que confronta, ou quem,
em menor escala busca reformas sociais tópicas: sejam as mulheres que
exigem o direito ao aborto, os escravos que lutavam contra a escravidão
ou, em um exemplo próximo, daqueles que usam drogas mesmo sabendo das
punições, por julga-las injustas na medida que não se vêem fazendo mal a
ninguém (quando muito, apenas contra si mesmos).
Mesmo a pena
de morte, que seria uma prática regular e não clandestina, implica na
coletividade autorizada a, relativamente, responder com o mal contra
outrem o suposto mal que lhe foi feito. Ela é uma relação universalizada
na forma, mas não na matéria: sua instituição funda um dualismo entre o
Estado que pode matar e a população matável.
E pior do
que uma violência informal é ela formalizada: porque a persistência de
violências formalizadas, além das razões acima expostas, ainda estimula
as violências informais (vide a relação entre a legislação punitiva que
temos, embora sem pena de morte, e as violências perpetradas pelas
forças de segurança).
Ainda assim,
não é a mera existência de formas (jurídicas) protetivas que dá conta,
na prática, de impedir os abusos. Para tanto, é necessário construir um
complexo que redesigne tais relações, que dê vida aos direitos e
garantias.
O
que poderia ser no Brasil de hoje, por exemplo, uma democratização das
políticas de segurança e a desmilitarização da polícia com uma redução
da importância geral das polícias -- com um urbanismo para pessoas que
deixasse as ruas mais cheias e, por conseguinte, mais seguras.
Mas a pior
das hipóteses, como se tem visto, pode sim acontecer. Uma ordem
autoritária pode sim, de maneira relativa ou absoluta, se instalar. O
que não quer dizer que seus efeitos nocivos não venham a ser sentidos, é
claro. O que exige a constante luta política.
Ainda assim,
temos uma questão maior que é o fato do Direito, apesar de toda sua
ductibilidade, esbarrar no fato de que ele não cria condutas sociais,
apenas induz algumas delas -- ou alguns aspectos delas --, cabendo
sobretudo a ele regular o que a sociedade o faz.
Se o Direito possui, de um lado, a capacidade mágica, ou melhor, feiticeira --
para lhe honrar as raízes na velha Roma -- de fazer as pessoas agirem
para além das suas vontades mais infantis, por outro lado, ele exige uma
pré-disposição para tanto.
Não
adiantará nunca ao conservador, lutando contra as mudanças do mundo,
protestar contra as mudanças culturais e esperar que a Lei vá manter
tudo como antes. Tampouco, é possível mudar o mundo exclusivamente pelas
leis: se o corpo sem exercício atrofia, tensionado em demasia, ele se
rompe.
O que pode
mudar essas predisposições, é claro, trata-se da política. Uma política
dos desejos e dos afetos. Que sempre enfrentará o desafio de que os
humanos podem sim desejar, e até lutar, contra seus próprios interesses.
Uma
política como campo amplo da criação e da imaginação do novo, disposta
sempre a desenvolver táticas e saberes práticos para enfrentar o poder.
Fonte: O Descurvo
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