PICICA: "A multidão que tomou as ruas de Paris no domingo (11/1) para defender
os valores republicanos e protestar contra “todos os fascismos” –
enfrentando ao mesmo tempo o terror e a extrema-direita, empenhada no
cultivo do ódio aos imigrantes pobres – não deixou dúvidas quando à
força da consigna “Eu sou Charlie”, disseminada logo após a
sangrenta investida contra o semanário satírico francês, na quarta-feira
(7/1). Porém, com a mesma velocidade, embora sem equivalente vigor,
apareceram contestações a essa expressão, com pelo menos dois sentidos
distintos: um, de crítica à hipocrisia dos que diziam aderir a uma
rebeldia jamais praticada; outro, de crítica ao próprio jornal alvo do
ataque.
Antes de mais nada, seria preciso esclarecer que assumir-se “Charlie”,
naquelas circunstâncias, não significa aceitar ou concordar com a linha
editorial da publicação, mas repudiar um ato de barbárie. A respeito
disso não deveria haver nenhuma hesitação ou ressalva.
Mas houve, e os que denunciaram como ofensivas e mesmo racistas e
xenófobas as charges publicadas pelo jornal acabaram justificando o que
ocorreu: embora implicitamente, sugeriram que, afinal, aqueles
jornalistas fizeram o que não deviam e tiveram o que mereceram.
Há aqui duas ordens de questões: a primeira, mais imediata, sobre os
limites do humor e da liberdade de expressão. A outra, mais ampla, sobre
os valores a serem respeitados nas variadas culturas."
ECOS DO TERROR
Ser ou não ser ‘Charlie’
Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 13/01/2015 na edição 833
A multidão que tomou as ruas de Paris no domingo (11/1) para defender os valores republicanos e protestar contra “todos os fascismos” – enfrentando ao mesmo tempo o terror e a extrema-direita, empenhada no cultivo do ódio aos imigrantes pobres – não deixou dúvidas quando à força da consigna “Eu sou Charlie”, disseminada logo após a sangrenta investida contra o semanário satírico francês, na quarta-feira (7/1). Porém, com a mesma velocidade, embora sem equivalente vigor, apareceram contestações a essa expressão, com pelo menos dois sentidos distintos: um, de crítica à hipocrisia dos que diziam aderir a uma rebeldia jamais praticada; outro, de crítica ao próprio jornal alvo do ataque.
Antes de mais nada, seria preciso esclarecer que assumir-se “Charlie”, naquelas circunstâncias, não significa aceitar ou concordar com a linha editorial da publicação, mas repudiar um ato de barbárie. A respeito disso não deveria haver nenhuma hesitação ou ressalva.
Mas houve, e os que denunciaram como ofensivas e mesmo racistas e xenófobas as charges publicadas pelo jornal acabaram justificando o que ocorreu: embora implicitamente, sugeriram que, afinal, aqueles jornalistas fizeram o que não deviam e tiveram o que mereceram.
Há aqui duas ordens de questões: a primeira, mais imediata, sobre os limites do humor e da liberdade de expressão. A outra, mais ampla, sobre os valores a serem respeitados nas variadas culturas.
Sátira e liberdade de expressão
As dificuldades de se discutir a primeira questão já foi resumida neste Observatório por Luciano Martins Costa (ver “O buraco é mais embaixo”). Sobre essas teorizações, o cartunista Laerte (ver aqui) observou:
“Em primeiro lugar, que o humor é humano, não existe humor que
ridicularize coisas ou animais. É sempre humano. Em segundo lugar, é
sempre grupal. Não existe humor produzido nem por um indivíduo nem para
um indivíduo. Terceira coisa é algo que Bergson falava, que acho
interessante, que nunca consegui apreender totalmente, é a ideia de que o
alvo da ação humorística é o momento em que o ser humano deixa de ser
humano, quando ele age mecanicamente. Quando se coisifica”.
“Temos de entender o Charlie Hebdo dentro do contexto histórico.
Os franceses começaram a fazer charge política na época da Comuna de
Paris. Eles arriscaram tudo e nunca foi fácil. Foram decapitados,
presos, exilados, sofreram o diabo. E a agressividade do trabalho deles
nunca diminuiu. A França não só comporta como exige a presença de um
humorismo desse tipo. No Brasil, a gente nunca produziu uma coisa
assim”.
“(...) acredito que a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão
devam ser considerados princípios fundamentais. Entretanto, há formas de
expressão que realmente resvalam na incitação ao ódio e deve haver leis
contra elas. Na França, há. Quer dizer, é crime estimular o ódio contra
um grupo religioso ou étnico ou o que seja. Não era o que fazia Charlie Hebdo – uma coisa é incitar o ódio contra religiões, outra coisa é ironizá-las satiricamente”.
Pensando no “outro”
Porém, não é porque podemos fazer certas coisas que devemos fazê-las. Esta é uma questão ética essencial, que diz respeito às nossas escolhas. Foi precisamente o sentido da crítica de Joe Sacco, famoso por seus trabalhos de reportagem em quadrinhos sobre a Palestina e Gaza: no Guardian de sexta-feira (9/1, ver aqui), ele mencionou a situação de crescente rejeição aos muçulmanos na Europa como um elemento que deveria levar os jornalistas a pensar duas vezes antes de fazer certas sátiras. “Quando traçamos uma linha, frequentemente cruzamos outra. Porque traços num papel são uma arma, e a sátira existe para cortar até o osso. Mas o osso de quem? Qual é o alvo, exatamente? E por quê?”
Para fundamentar, sugeriu pensar sobre as consequências de uma sátira aos judeus na Alemanha de 1933, ano em que Hitler se tornou chanceler. E tentou o difícil exercício de se colocar no lugar do outro, para tentar entender por que os muçulmanos não achariam graça ao verem Maomé ridicularizado.
É um argumento bem diferente da contestação imediata e radical aos supostos mau gosto e desrespeito do trabalho produzido pelo Charlie. Inclusive porque, no caso específico, seria preciso levar em conta que o problema não é a escatologia. Se os muçulmanos não admitem a representação de seu profeta, então não é que aquelas formas de representação tenham sido ofensivas: a ofensa é a própria representação. É aceitável curvar-se aos dogmas de uma religião e estabelecer aí os parâmetros para o exercício da crítica?
Nunca será demais lembrar – aliás, ao contrário do que sustenta a nossa imprensa, que não perde uma oportunidade para mistificar sobre esse tema e tentou imediatamente associar o atentado terrorista na França às iniciativas de regulação da mídia –, nunca será demais lembrar que não existem direitos absolutos, e que as liberdades de imprensa e de expressão têm, sim, um limite. Esse limite é dado pela lei. Exclusivamente pela lei, que há de punir os abusos. Jamais pelas armas, sob nenhuma hipótese.
Os desvios do multiculturalismo
Entre as muitas charges divulgadas logo após o ataque terrorista em Paris, uma chamou especial atenção: a republicação do trabalho do cartunista Michael Shaw, na revista New Yorker, em 2006, ironizando a onda de protestos contra o Charlie, que reproduzira desenhos originalmente veiculados por um jornal dinamarquês satirizando Maomé. “Por favor, aprecie este cartum cultural, étnica, religiosa e politicamente correto de forma responsável. Obrigado”, escreveu, sobre um retângulo em branco (ver aqui).
De fato, no limite, é assim mesmo: sempre haverá quem proteste e, para não contrariar ninguém, a saída é o silêncio.
Os protestos contra as supostas ofensas resultantes das sátiras estão ancorados na perspectiva multiculturalista que, de início, teve um papel fundamental na denúncia do etnocentrismo e seus muitos e tantas vezes mortais preconceitos mas, com o passar do tempo, derivou para um relativismo que nos leva a aceitar, ou pelo menos a tolerar, todas as práticas, mesmo as mais abomináveis, como legítima expressão de culturas particulares. E a rejeitar, em contrapartida, os valores universais cultivados pelo Iluminismo, que ultrapassam as particularidades de cada cultura e nos permitem reconhecer-nos como humanos.
Num artigo em que discorda da unanimidade em torno da palavra de ordem sobre Charlie e aponta o oportunismo dos chefes de Estado presentes à passeata em Paris – e o breve percurso que fizeram estaria a demonstrar, simbolicamente, o abismo entre esses políticos e o povo na rua –, o jornalista Carlos Fino indaga sobre as origens do ódio assassino, aponta a inutilidade das medidas para contê-lo e busca as raízes do problema:
“Ao trazerem para dentro do seu território, quando terminou a aventura
colonial, ou por via da globalização, largas camadas populacionais de
uma cultura diferente e até oposta, boa parte da Europa passou a ter no
seu próprio seio duas visões radicalmente diferentes de estar, pensar,
sentir e agir.
(...)
“A alternativa que se coloca, portanto, é esta – queremos vencer e
impor ao outro o modo particular de sentir e de ser do nosso grupo, ou,
em nome da convivialidade e da aceitação do que é diferente, negociamos
para chegar a um compromisso razoável?”
Não se trata, porém, de querer vencer, mas de recuperar a perspectiva
universalista que a onda do multiculturalismo esfacelou. E que carrega
consigo exatamente a valorização do diálogo, precisamente no postulado
iluminista esperançoso de que as ideias, e não os homens, é que deveriam
brigar. Entretanto, o desejo esbarra na essência dos fundamentalismos,
islâmico ou quaisquer outros: o dogma, que exclui a hipótese de crítica
e, consequentemente, anula a possibilidade de diálogo.Talvez por isso, como disse Laerte, não devêssemos pensar que o assassinato dos chargistas foi um ataque à liberdade de expressão:
“O objetivo real não é enfrentar o ataque humorístico, o objetivo real é
político. (...) Acho que estão cagando pra liberdade expressão.
“(...) Houve um ataque à liberdade de expressão, mas não é este o
objetivo estratégico. Por que não atacam a direita anti-islâmica? Porque
não interessa. Querem criar uma confusão que visa comprometer todo o
sistema. (...) Eles sabem que o sentimento xenófobo vai se exacerbar, e
isso pode gerar políticas militaristas de intervenção no Oriente Médio –
isso tudo interessa ao Estado Islâmico, um grupo que não está ligado à
ideia de construir um Estado, está ligado em construir guerra”.
***
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: Observatório da Imprensa
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