janeiro 20, 2015

"Os quatro desertos e suas ecologias", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Tem um conto de Borges sobre os dois príncipes e os dois labirintos. O rei da Arábia morre e, quando num ato solene o testamento é aberto, as disposições se mostram confusas, indecisas. Não fica claro quem é o herdeiro, e seus dois filhos reclamam o reino de herança. Como o acordo é impossível, eles resolvem decidir a questão num duelo. Um duelo diferente. Em vez de espadas ou pistolas, os príncipes farão um duelo de labirintos. Cada um construirá para o outro um labirinto, vencendo aquele que conseguir fazer o mais inexpugnável.

O príncipe mais velho começa. O mais novo é encapuzado e levado até o centro do labirinto. Quando tira o capuz, se vê em meio a uma floresta de muros, túneis, galerias, átrios, repleta de armadilhas terríveis e passagens secretas. O príncipe mais novo cuidadosamente começa a estudar o labirinto e, se alimentando de musgos e bebendo a água de veios escavados na rocha, pouco a pouco vai sobrepujando cada obstáculo. Dias depois, ele consegue sair. É a sua vez de jogar.

O príncipe mais velho é agora encapuzado. É levado até o centro do labirinto construído pelo mais novo e quando tira o capuz, toma um susto. Ele vê o horizonte em todas as direções e nenhuma referência. Porque este labirinto não tem muros nem bifurcações a ser escolhidas. O labirinto é um deserto. Desorientado, sozinho no meio do nada, o príncipe mais velho pragueja, erra sem rumo, é enganado por miragens, se desespera, chora, até finalmente resignar-se em sua derrota.

Em 2015, estamos nesse mesmo deserto." 

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Tem um conto de Borges sobre os dois príncipes e os dois labirintos. O rei da Arábia morre e, quando num ato solene o testamento é aberto, as disposições se mostram confusas, indecisas. Não fica claro quem é o herdeiro, e seus dois filhos reclamam o reino de herança. Como o acordo é impossível, eles resolvem decidir a questão num duelo. Um duelo diferente. Em vez de espadas ou pistolas, os príncipes farão um duelo de labirintos. Cada um construirá para o outro um labirinto, vencendo aquele que conseguir fazer o mais inexpugnável.

O príncipe mais velho começa. O mais novo é encapuzado e levado até o centro do labirinto. Quando tira o capuz, se vê em meio a uma floresta de muros, túneis, galerias, átrios, repleta de armadilhas terríveis e passagens secretas. O príncipe mais novo cuidadosamente começa a estudar o labirinto e, se alimentando de musgos e bebendo a água de veios escavados na rocha, pouco a pouco vai sobrepujando cada obstáculo. Dias depois, ele consegue sair. É a sua vez de jogar.

O príncipe mais velho é agora encapuzado. É levado até o centro do labirinto construído pelo mais novo e quando tira o capuz, toma um susto. Ele vê o horizonte em todas as direções e nenhuma referência. Porque este labirinto não tem muros nem bifurcações a ser escolhidas. O labirinto é um deserto. Desorientado, sozinho no meio do nada, o príncipe mais velho pragueja, erra sem rumo, é enganado por miragens, se desespera, chora, até finalmente resignar-se em sua derrota.

Em 2015, estamos nesse mesmo deserto.

Deserto, em primeiro lugar, do capitalismo. A relação social do capital se aprofundou em todos os níveis, local e globalmente, extensiva e intensivamente. Não apenas englobou a inteira superfície terrestre, como penetrou profundamente na cidade, nos corpos, cognição, percepção, nas mais pequenas e sutis coisas da vida. As tecnologias de controle do capitalismo se tornaram pervasivas: não há mais fora nem um norte claro para orientar-se em meio à vastidão de seu domínio. A exploração hoje abrange todas as esferas de vida e é por isso que a luta na atualidade depende de uma mobilização de sujeitos mais diversificados e híbridos do que outrora, já que a exploração tem muitos nomes.

Deserto, também, do socialismo real. Ele não terminou quando os muros caíram, mas quando foram levantados. Regimes construídos mediante castas dirigentes burocráticas que impuseram planificações desde cima, confinando sociedades disciplinares e unitárias, avessas à diversidade de modos de existência. Muitas vezes, monopolizar o estado com um programa de transição não se mostrou apenas autoritário, como também impotente para superar as condições do capitalismo. O estado simplesmente não se mostrou forte o suficiente, levando o capitalismo global a adaptar-se, seja na figura do capitalismo de estado, seja do socialismo do capital.

Deserto, também, da cena político-partidária, em escala mundial. Mesmo aqueles partidos que, na segunda metade do século 20, exprimiam as forças mais dinâmicas e inovadoras das sociedades, definharam numa triste miséria teórica e prática. Miséria de formulação, ação, mobilização, capacidade de composição com as lutas. Jovens que já nascem politicamente estéreis, capturados por um carreirismo apparatchik, e velhos que morrem muitas vezes ao servir de funcionário do poder. O achatamento dos partidos como a mesma coisa na percepção da maioria da população se deve, primeiro, à acomodação deles dentro de sistemas políticos oligárquicos de controle biopolítico-comunicacional e, segundo, à reprodução identitária, quase neurótica, de ideologias descoladas das forças vivas e produtivas das sociedades, as únicas capazes de regenerar as instituições e repautar a democracia desde suas bases materiais, suas redes de colaboração e reinvenção política.

Isto vale, inclusive, para as esquerdas partidárias, atoladas numa mistura de nostalgia e ressentimento, e rigorosamente ideologizadas (no sentido que Marx empresta ao termo) na gestão da crise e das economias de crise, no serviço sujo de forjar, violentamente quando preciso, o consenso e a legitimidade social que as castas políticas precisam para impor a sua agenda. Reconfortam-se com identidades encarquilhadas que são como moedas cujo valor de face se esfumou pelo tempo, inércia e conforto, com o peso da autoconfirmação dogmática de sua vigência — residual, além disso interna ao próprio sistema que tão impotentemente critica.

Deserto, por fim, ambiental. Deserto que pode ser marrom do assoreamento dos rios, tempestades de areias e nuvens descontroladas de gafanhotos, ou verde dos eucaliptos e plantations, ou azul da acidificação dos oceanos e do recuo do ozônio. Deserto das grandes obras que tratoram sociedades indígenas e quilombolas, dos ribeirinhos, da agricultura menor (onde o “agro” é cultura e ecologia, e não negócio). O meio ambiente entendido, aqui, como sociedade de sociedades: o ambiente de cada grupo são os demais grupos, humanos e não-humanos, numa cosmopoliteia de seres fustigados pelo “ambientalismo de guerra” dos desenvolvimentismos e progressismos economicistas do Capitaloceno.

Mas o deserto é também oportunidade e liberdade. O príncipe morreu de sede porque estava sozinho. Mas quando chegamos ao deserto vindos de muitos lugares diferentes, nossa solidão se encontra com a solidão dos outros. Sozinhos juntos, compartilhamos o desejo de fazer dos nossos êxodos uma nova terra. Nesse êxodo de muitos, o deserto é também acampamento, onde no chá da meia noite se moldam as caravanas e suas armas. Na história, o deserto é onde se criam os povos, numa pobreza que é força, e cuja força persevera enquanto for possível carregar consigo esse deserto constituinte. E dessa forma, na prática, fazer o deserto povoado de solidões se transformar numa solidão povoada de desertos: multidão.

Correm por aí sabotadores mais ou menos conscientes com o ramerrão do “vocês não podem”: as condições não teriam chegado, como se a ação de fazer a história não fosse o único jeito de fazer as condições chegarem. Confortáveis cada um a seu modo, dizem-nos: seria preciso esperar, ser cauteloso etc. O Brasil teria dimensões continentais, a população brasileira não teria reunido as condições de conscientização e mobilização, ainda existira gordura pra queimar ou então não teríamos chegado no fundo do poço. Ou ainda, que seria preciso ter cuidado com a infiltração da Direita, em não fazer o jogo Dela. Direita assim com maiúscula, o grande Outro ameaçador e multitentacular, a Cuca com que nos assustam a fim de conduzir o olhar para longe de nossa capacidade de agir, e de suas próprias íntimas conexões com as oligarquias. Sim, é um país, como outros, tão racista, homofóbico e heteropatriarcal, fatos profundos e não meras reminiscências históricas; mas isto não significa que devamos reencenar essas condições como ameaças onipresentes e superpotentes. Reencenar o trauma também é repeti-lo, na manobra do poder de que nos rendamos ao Grande Projeto — única alternativa etc — daqueles que, em 2015, se limitam a reproduzir o mais do mesmo numa eterna agonia mal-disfarçada e seguramente cínica de opção entre os menos piores. O reconhecimento das condições difíceis não deve inspirar medo, mas coragem e ousadia. Porque o fundo do poço pode ser sempre mais fundo do que se imagina, ao não agirmos. Querem-nos crianças assustadas. Não podemos?

Só um discurso firme de rechaço pode colher a indignação crescente que brota onde quer que se olhe. Indignação que se opõe à antipolítica do “não podemos”, das repressões e criminalizações, das tecnocracias estatais e esquerdismos testemunhais. Há um sim maior nesse não: vontade de participar, desejo de mudança para melhor.

Só as lutas existentes e embrionárias por direitos, pela moradia, tarifa zero, cultura viva, minorias (que no conjunto são todo mundo), ação afirmativa, renda, consumo, ambientais, mobilidade urbana, direito à cidade, produção do comum, bem viver — só essas forças podem pautar e determinar uma agenda positiva. As ideologias devem se amoldar à realidade organizativa e desejante dessas lutas e não o contrário (vício programatista). É preciso reencontrar as palavras novas, as sínteses novas que atualizam as condições de luta em 2015, para dar-lhes materialidade e fazer com que as palavras circulem por eventos com sentido, corpos e afetos. É preciso ter a coragem de sair das zonas de conforto e, na praça onde a democracia se vitaliza, reconstruir-se politicamente.

Os quatro desertos determinam quatro ecologias, ou ecossistemas de organização cidadanista: contra as forças agenciadas do mercado pelo estado (deserto do capitalismo); contra as forças agenciadas do estado pelo mercado (deserto do socialismo real, estatista); contra as castas políticas, essas oligarquias na base dos mercados e estados, um emaranhado de famílias, grupos proprietários, setores macroempresariais e partidos políticos de todas as cores e ideologias (deserto político-partidário); e contra a devastação material e imaterial, humana e não-humana, resultante da ação coordenada dessas forças no Capitaloceno (deserto literal). Quatro desertos fazendo convergir muitos povos na construção de uma segunda via, cevada pela cidadania insurgente e seus diversos momentos de luta.

O príncipe foi ao deserto porque queria tomar o reino para si. Mas os escravos, quando vão ao deserto, desejam cortar a cabeça do rei e fazer um governo dos muitos, numa democracia transversal e renovada. Talvez o grande erro esteja em buscar a saída do labirinto com nortes e certezas, em vez de construí-la nós próprios.



Fala revisada apresentada ao seminário Queremos, em São Paulo, 17/1/2015, na sessão de abertura com Célio Turino.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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