PICICA: "Será que só os militantes
políticos são presos sem saber o porquê? Será que são só eles a sofrer a
arbitrariedade do processo? Será ainda que só as prisões de
manifestantes servem como ferramenta para atemorizar a população em
geral?"
Quem são os presos políticos?
28 de setembro de 2014
Será que só os militantes
políticos são presos sem saber o porquê? Será que são só eles a sofrer a
arbitrariedade do processo? Será ainda que só as prisões de
manifestantes servem como ferramenta para atemorizar a população em
geral? Por Passa Palavra
Perante a onda de manifestações de rua
que eclodiu no Brasil em junho de 2013, a repressão normal deixou de ser
suficiente, o que obrigou o Estado a intensificar dois processos
conjuntos e articulados: por um lado, aumentou o nível e o âmbito da
repressão; por outro, cooptou mais ativamente movimentos sociais e
grupos empresariais ligados aos movimentos sociais. A tese de que se
teria passado a viver em estado de exceção, ou outras do mesmo gênero,
resulta da incompreensão de que numa democracia capitalista em pleno
funcionamento, como sucede no Brasil, o aumento da repressão é sempre
acompanhado pelo recrudescimento da cooptação. Como denunciamos e
analisamos este processo de cooptação em vários artigos, é agora o
processo de repressão que nos interessa abordar.
O problema das prisões
A
escalada repressiva recolocou para os movimentos sociais o problema das
prisões. As detenções arbitrárias em massa nos protestos em várias
cidades do país, que se desdobraram na instauração de inquéritos
policiais e processos judiciais contra militantes, culminando nas ordens
de prisão preventiva e condenações, impuseram ao conjunto da esquerda a
discussão sobre os sistemas penal e carcerário.
Ainda que recorrentemente marginalizada pela esquerda em geral (como apontávamos em outro texto), a preocupação com as prisões já estava colocada antes, tendo em vista que a criminalização é um problema permanente.
De um lado, esse tema inevitavelmente
surgia na pauta dos movimentos por memória, verdade e justiça das
vítimas da ditadura militar – que recobraram forças em 2012 com a
criação da Comissão Nacional da Verdade e uma retomada das mobilizações de denúncia.
Estas lutas, porém, se detinham prioritariamente no passado. Um
passado, aliás, no qual o regime estabelecia, tal qual em outras épocas e
lugares ao longo da história, uma divisão institucional entre as
prisões comuns e as prisões políticas. Foi pela cela de uma dessas
últimas que passou a ex-guerrilheira, hoje presidente, Dilma Rousseff.
De outro lado, organizações de esquerda
se voltam agora para as novas condições prisionais. A transformação da
situação das cadeias com a transição para a democracia gerou um cenário
novo: o encarceramento em massa, resultado de uma política de
criminalização da pobreza. Entre 1995 e 2005 a população carcerária do
país cresceu em 150%, e hoje ultrapassa a cifra de 700 mil pessoas
presas, colocando o Brasil no terceiro lugar do ranking mundial,
atrás somente da China e dos Estados Unidos. Segundo dados da Justiça
Global, 40% destes presos sequer tiveram direito a um julgamento, sendo
considerados presos provisórios, que em alguns estados do país
ultrapassam em número os presos já julgados. A superlotação e as
condições sub-humanas do sistema penitenciário, que em 1992 resultaram
no Massacre do Carandiru,
seguem produzindo barbáries tais como a ocorrida recentemente na
Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão. A tortura é uma prática de uso
corrente tanto pelas polícias, para obtenção de informações e crua
satisfação sádica, quanto por agentes penitenciários, como recurso para a
manutenção da ordem no interior dos presídios. Neste último caso, é
possível destacar as constantes denúncias de tortura ocorridas nos
sistemas de reformatórios, em especial os juvenis, como a Fundação Casa
(antiga FEBEM).
No entanto, a violência do sistema
carcerário não se limita aos presos, sendo estendida também aos seus
familiares, tanto pela estigmatização social, pelo alto custo que
representa ter que prover itens necessários aos presos e pelos
constantes deslocamentos para fazer visitas, quanto pelas famigeradas revistas vexatórias,
em que especialmente as esposas dos presos são obrigadas a se despir na
frente de agentes carcerários, muitas vezes na presença de seus filhos,
decorrendo daí um quadro que contraria qualquer noção de preservação da
dignidade humana.
A situação de barbárie nas cadeias
resulta não de mero descaso mas de uma política sistemática. O
encarceramento em massa não se relaciona com o aumento da repressão aos
crimes em geral, como dirão os políticos que ano a ano se reelegem
prometendo responder ao anseio popular pelo “fim da impunidade”. Pelo
contrário, o perfil da população que hoje lota os presídios escancara os
critérios a partir dos quais o sistema penal seleciona suas vítimas.
Não são os capitalistas denunciados por participarem de cartéis, fraudes
ou desvios de verba, tampouco os policiais que cometem assassinatos e
torturas diariamente. A maioria dos presos é composta por jovens pobres,
em geral negros e moradores das periferias – os mesmos alvos das
chacinas policiais, acusados de furto, porte de drogas ilícitas,
pequenos trabalhadores do tráfico ou anônimos que por vezes nem sequer
cometeram crimes.
Diante
de dados tão alarmantes, não seria demais considerar o sistema penal –
desde a abordagem policial até o encarceramento – um recurso de
dominação permanente, essencial para manter e aperfeiçoar os expedientes
de controle e repressão sobre grandes parcelas da classe trabalhadora. A
especificidade com que é aplicado hoje no Brasil, porém, nos leva a
crer que não se trata apenas de uma política cerceadora de liberdades ou
de neutralização do indivíduo que é diretamente afetado por ele.
Através da manutenção planejada de uma enorme massa de encarceráveis, o
sistema penal acabou por produzir estruturas ativas, complementares ao
aparato policial, cujo raio de ação se espraia para as ruas e bairros
mais pobres das grandes cidades, ditando regras e normas de conduta: o
crime organizado ou o que se convencionou chamar também de “poder
paralelo”. Apesar de na aparência ser antagônica aos poderes de Estado
tradicionais, a dimensão ética e empresarial que assume atualmente o
crime organizado não teria sido possível sem que os poderes oficiais das
classes dominantes criassem conscientemente as condições para isso,
implementando políticas sistemáticas de encarceramento em massa.
Por tudo isso, a luta contra os sistemas policial, carcerário, judiciário e penal vigentes parece-nos indispensável.
Todo preso é um preso político?
No último ano, a criminalização das
mobilizações de rua levou vários manifestantes a conhecerem por dentro
essas mesmas cadeias. Imediatamente a solidariedade se mobilizou e
organizou sua defesa, exigindo liberdade aos presos políticos!
No entanto, a comparação dos relatos de militantes presos com os de outros presos em geral
parece apontar para uma situação comum. Será que só os militantes
políticos são presos sem saber o porquê? Será que são só eles a sofrer a
arbitrariedade do processo? Será ainda que só as prisões de
manifestantes servem como ferramenta para atemorizar a população em
geral?
Essa aproximação fica mais clara ao se
verificar que, das manifestações de junho de 2013, as únicas duas
pessoas que permaneceram presas nos meses seguintes não eram
manifestantes, mas moradores de rua detidos arbitrariamente pela Polícia
Militar no contexto dos atos: Josenilda, em São Paulo, e Rafael Braga,
no Rio de Janeiro. Ambos já tinham passagem anterior pela polícia.
É aí que ganhou espaço a palavra de
ordem “todo preso é um preso político”. Contudo, esta consigna de
agitação pode pressupor várias teses e decorrer de vários campos
ideológicos, que podem ser até contraditórios entre si. Vamos analisar
aqui essa palavra de ordem pelas suas implicações ideológicas e pelos
seus efeitos práticos. Que concepções repousam sob seu guarda-chuva?
Quais são suas potencialidades, limites e perigos?
A
constatação de que não só a criminalização das lutas sociais mas também
a criminalização da pobreza servem a um mesmo objetivo político se
desenvolve na crítica ao próprio sistema penal. O sistema penal não é
uma instituição a-histórica, mas uma estrutura de classe hoje voltada à
repressão permanente dos trabalhadores, buscando frear preventivamente
quaisquer possibilidades e tentativas de organização.
Por outro lado, a indiferenciação
entre presos políticos e presos comuns não menosprezará a própria
distinção a que o Estado procede para enfrentar cada um destes
problemas? É de conhecimento de todos que nas grandes cidades do país a
Polícia Militar se organizou em batalhões especiais para reprimir as
manifestações e coagir os militantes. O governo federal propôs novas
leis exclusivas para incriminar as manifestações políticas e o exército
vem se preparando cada vez mais para reprimir os atos de mesma natureza.
Contudo, tal como está construída, a frase “todo preso é um preso
político” parece se direcionar aos sujeitos, não às instituições. Assim,
outra pergunta: não existe aí um risco de se concluir que todo preso
possuiria uma intenção política ao empreender a ação pela qual foi
criminalizado? Que o sistema penal é político, não há dúvidas. Mas será a
simples criminalização suficiente para classificar a atitude política
do criminalizado? O sistema penal, enquanto estrutura a serviço do
capitalismo, protege a propriedade privada. Mas qualquer crime contra o
patrimônio manifesta necessariamente uma crítica política à propriedade
privada? Por exemplo, os trabalhadores que ocupam uma empresa – passando
a controlar seus meios de produção e matérias-primas e a venderem o
produto do seu trabalho – estão, sem dúvida, a cometer um crime contra o
patrimônio. Da mesma forma, o sujeito que rouba carteiras no ponto de
ônibus está também a cometer um crime contra o patrimônio. Com a
diferença de que os trabalhadores que ocupam a empresa o fazem com o
intuito edificar as bases do socialismo, enquanto o ladrão de carteiras
preserva o quadro da propriedade privada, limitando-se a transferir o
dinheiro do bolso do outro para o dele.
Não será que assumir que o processo de
criminalização é político pode nos levar a concluir que todos os presos –
sejam eles militantes, ladrões de carteiras, assassinos, estupradores
de mulheres, agressores de homossexuais, patrões do tráfico, políticos
que se deixaram apanhar em escândalos de corrupção – partilhem de um
mesmo objetivo político? Não seria mais preciso chamar de “prisão
política” aquela que é movida, tanto de cima quanto de baixo, por
motivações políticas? Afinal, se isso não for levado em conta, então não
se está a levar em conta a totalidade das forças sociais em confronto.
Não seria mais exato se, em vez de afirmarmos que todo preso é um preso
político, afirmássemos que toda condenação à prisão é uma condenação
política?
Caso contrário, será que os movimentos
não correm o risco de pressupor uma orientação anticapitalista em
qualquer preso e de apostar, assim, num papel estratégico do conjunto
dos criminalizados para a construção das lutas? Não se trata de uma
consequência inevitável, mas de um risco presente naquela palavra de
ordem. E quais as implicações desse risco?
Um duplo risco
Se a história serve para alguma coisa é
para nos precaver. Por isso recuperamos aqui três casos de mobilização
dos criminosos comuns contra os militantes políticos ao longo do século
XX.
Um primeiro caso se deu na constituição
das milícias fascistas. Note-se que não se tratava aí de cooptar para o
fascismo o crime organizado, porque as hierarquias fascistas não queriam
nada que pusesse em causa a sua autoridade exclusiva. Foram os pequenos
delinquentes que as milícias fascistas recrutaram em massa, e
usaram-nos contra os militantes e as organizações políticas e sindicais
de esquerda.
Um
segundo caso ocorreu no interior dos campos de concentração na Alemanha
nazi. Para resumir em poucas linhas uma história muito complexa, os
presos políticos tiveram de proceder a uma luta mortal — no sentido
exato da palavra — para conseguirem obter cargos na administração, nas
enfermarias e em algumas oficinas, que lhes permitissem preservar
fisicamente os seus camaradas e estabelecer a rede de resistência no
interior do campo. Os presos comuns eram os principais agentes dos SS
entre a população carcerária, e onde os presos comuns dominaram, os
políticos foram liquidados.
Finalmente, um terceiro caso ocorreu nos
Estados Unidos nos anos seguintes à segunda guerra mundial, quando o
FBI (equivalente do que é no Brasil a Polícia Federal) usou com muito
êxito tanto o crime organizado como os pequenos delinquentes para
combater os militantes comunistas e se apoderar por dentro dos
sindicatos. O sindicalismo norte-americano, tal como se evidenciou
durante a Guerra Fria, resultou dessa ação conjunta do FBI e do crime
organizado. O FBI repetiu a manobra contra o movimento dos direitos
cívicos nas décadas de 1960 e 1970.
Como já aludimos acima, o crime
organizado é igualmente uma organização capitalista, com a
especificidade de que os artigos ou serviços que produz e comercializa
são proibidos por lei. O crime organizado é ilegal por esse motivo, mas a
sua estrutura econômica em nada difere do modelo do capitalismo. Além
disso, não seriam os pequenos ladrões economicamente equivalentes aos
pequenos comerciantes ambulantes ou a prestadores de serviços pessoais,
possuindo tendências ao individualismo e a disposição a trair o próximo
que são hoje típicas entre trabalhadores precários e desorganizados?
Assim, a relação com estes não representa um perigo às lutas contra o
sistema prisional, tanto as realizadas dentro das cadeias como mesmo a
partir do exterior?
Assim, quando a esquerda resolve pautar o
encarceramento em massa e a criminalização da pobreza irá se deparar
com um duplo perigo, o das organizações criminosas organizadas e o do
extremo individualismo dos pequenos delinquentes. Como lidar com esse
universo?
Não farão as organizações criminais
parte daquela estrutura que, de modo amplo, podemos considerar como
sendo o Estado – uma vez que exercem, com anuência do poder público, a
função de controle territorial, prestação de serviços, justiça, proteção
etc., disciplinando os trabalhadores e assegurando aos capitalistas a
reprodução da exploração? Poderiam, então, ser consideradas como
potenciais aliadas nas lutas dos trabalhadores? Seus objetivos não
convergem com os das demais empresas capitalistas? Não será que os
movimentos organizados a partir da periferia encontram neles entraves
para a luta política? Não faltam experiências de ocupações de sem-teto
que terminam tomadas pelo tráfico de drogas, ou então de movimentos de
luta por transporte público que se deparam com pequenas empresas de
ônibus controladas pelo crime organizado. A ameaça constante desses
grupos aos militantes não funciona como um entrave ao trabalho de base?
Há
entre a esquerda atual, como houve noutras épocas e noutros
continentes, uma romantização da atividade criminosa – que se vê, por
exemplo, no entusiasmo de certos jovens militantes com o depoimento em
que Marcola, o líder do PCC (Primeiro Comando da Capital),
afirma que leu Lênin e Mao Tsé-Tung e usou suas teorias organizacionais
para estruturar a facção criminosa. Ora, essa declaração não deveria
evidenciar como o crime organizado, ao invés de ter um caráter
revolucionário, funciona hoje no Brasil como um prolongamento do Estado?
Parece-nos que a resposta a estas
questões é afirmativa e que precisamente por isso as populações pobres
das periferias, aquelas que mais submetidas estão à ação predatória
tanto do crime organizado quanto dos pequenos delinquentes, decidem
muitas vezes fazer justiça com as próprias mãos. Ora, isto traz aos
militantes de esquerda mais um problema.
Entre o punitivismo popular e o estatal
Da sensação de que os crimes cometidos
por setores mais beneficiados com o atual sistema social não são
punidos, aliada aos delitos cometidos por pequenos e médios criminosos
que na maior parte dos casos incidem sobre os setores populares, decorre
o desenvolvimento de uma ideologia nesses setores populares sobre a
necessidade de justiça. E como ela não é fornecida pelo Estado, muito
menos pelos criminosos, passam a pulular por toda parte movimentos de
punitivismo popular, os linchamentos, eventualmente mortais, e
espancamentos, que simbolizam a barbárie da falta de normatização a
respeito das formas de punição às transgressões, demandas que quando não
atendidas passam a explodir nas mais diversas e primitivas formas de
vingança.
A própria esquerda, e aí se incluem
grupos desde a extrema-esquerda até outros mais próximos ao centro,
comemora como vitória uma série de leis e programas governamentais que
visam criminalizar determinadas ações. A Lei Maria da Penha, por
exemplo, se destina a colocar atrás das grades homens agressores de
mulheres. Cresce o movimento que objetiva dar penas mais duras aos
crimes de racismo e criminalizar a homofobia. Ora, mas se o sistema
penal seleciona seus alvos, essa esquerda, ao reforçar o coro
punitivista, não termina por ampliar os recursos do sistema de
encarceramento em massa?
Por outro lado, se, ao invés disso, o
abolicionismo penal fosse adotado como projeto generalizado da esquerda,
qual seria a resposta para estas situações?
Em um texto dos mais importantes para os movimentos libertários, A Tirania das Organizações Sem Estrutura,
escrito na década de 1970 por Jo Freeman a partir de sua experiência no
que era então o movimento social de caráter mais radical (o feminista),
a autora aponta para a falta de regras instituídas como forma de
instaurar organizações autoritárias para dentro, apesar de libertárias
para fora. Ora, o fato de estes coletivos e movimentos, desde a década
de 1970 e talvez desde muito antes, serem horizontais e terem suas
relações internas baseadas primordialmente na “confiança política”,
dificultou que muitos deles instituíssem regras claras de convivência,
mas não impediu que criassem hierarquias informais, criadoras de regras
informais e intransparentes de funcionamento. Estas regras eram
quebradas sem se saber exatamente quais eram, pois só esta hierarquia
informal estava em posição de dizê-lo, de modo arbitrário e em função de
suas estratégias de manutenção no poder. Daí que as punições arbitradas
ou mediadas por estas hierarquias ocultas – como, quatro décadas depois
da publicação do texto, o linchamento moral, o banimento arbitrário, o
escracho e outras – persistam ou se ampliem nas organizações de
esquerda, constituindo um sistema penal tão ruim ou ainda pior que o do
capitalismo, pois não prevê sequer o direito formal de defesa aos
acusados.
Reclamamos
a abolição das prisões. Mas que alternativa propomos a isso que não o
linchamento e o justiçamento? Em que termos é possível pôr em ação uma
justiça reparativa, restaurativa? Como lidar com assassinos,
estupradores etc.? Ou mesmo como encarar a demanda pela punição dos
torturadores da ditadura militar ou dos policiais executores?
Assim como é indispensável abandonar
qualquer romantismo com que se vejam os criminosos, é igualmente
necessário abandonar qualquer romantismo com que se vejam as vítimas dos
criminosos. A luta contra o punitivismo popular é indispensável, o que
levanta para os movimentos a questão: como lidar com a justiça?
Presos políticos, presos comuns: estratégias de ação em questão
De volta à palavra de ordem que aqui nos
ocupa: “todo preso é um preso político”? A discussão aqui é de que
estratégias deve-se adotar frente à repressão do Estado, seja em seu
aspecto mais abrangente, seja especificamente em relação aos movimentos
sociais. Pretendemos apresentar algumas reflexões sobre as
possibilidades de atuação prática acerca do tema.
Por um lado, pode dizer-se que abandonar
a noção de presos políticos terminaria por beneficiar principalmente os
governos. Os governos têm legitimidade para reprimir tudo aquilo que as
leis permitem e além disso tentam mudar as leis para ampliar a
repressão. Não que a repressão fora dos marcos legais nunca aconteça.
Acontece cotidianamente nas periferias e, amplificada pelo racismo, tem
alvos certos. Mas a ampliação deste limite esbarra na ideia de
democracia — mesmo que limitada — e a ação de exceção do Estado
cumprindo seu papel regular não é só a base das denúncias contra a
repressão política, mas também o é dos movimentos que lutam contra o
racismo. A repressão de caráter político revela a contradição da própria
democracia, assim como seus limites, e abre a possibilidade de
propormos uma democracia sem Estado ou com outro tipo de Estado, que não
se defina pelo monopólio da violência. Mas se todos os presos, se toda a
repressão e se todos os crimes passarem a ser comuns, ou se todos passarem a ser políticos,
o que dá no mesmo, a contradição entre democracia e repressão
desaparece, porque dentro dos marcos legais se torna legítima qualquer
forma de repressão, tirando dos movimentos sociais um instrumento
importante de autodefesa, assim como dos que sofrem com o genocídio
cotidiano.
Por
outro lado, ao se efetuar uma distinção entre presos políticos e presos
comuns, não será que incorremos no risco de transferir para o outro o
papel de inimigo e garantir, com isso, a perpetuação do aparato
repressivo? Estaríamos reforçando a montagem de um aparelho de
contra-insurgência que pode — a qualquer momento — ser ampliado e
redirecionado? No Brasil, não foi a partir do aparelho de repressão e
tortura montado pela Polícia Civil que se organizou a Operação
Bandeirantes durante a ditadura? Não ocorreu também o processo inverso
com a implementação da Doutrina de Segurança Nacional nas forças
policiais que desencadearam uma lógica de extermínio nas periferias? Não
será que esse processo retroalimentado teve a colaboração da esquerda
em luta pela anistia, quando essa procurou legitimar sua ação
diferenciando-se de grupos por ela qualificados como terroristas?
Em contrapartida, será que a
indiferenciação entre os presos pode ter como consequência uma
justificativa confortável para a desmobilização da luta pela defesa dos
militantes presos? A pergunta não é gratuita, porque isto sucedeu várias
vezes. Para ter uma maior eficácia nas duas frentes de combate não será
necessário, na prática, assumir estratégias diferentes de defesa? De um
ponto de vista tático, não será que afirmar nossos presos
como políticos é importante para angariar apoio de diferentes setores da
sociedade na luta pela liberdade de militantes presos? E, por outro
lado, afirmar que todo preso é um preso político não poderá levar ao
isolamento e à rejeição, sobretudo por parte dos setores populares que
clamam por mais punição e por punições mais severas? Não será que a
diluição dessas diferenças pode, ao contrário do pretendido, justificar a
intensificação da repressão estatal sobre os militantes alegando que
estes se colocam ao lado dos criminosos? Ao abrir mão da noção de presos
políticos não fragilizaremos justamente aqueles militantes que também
são sujeitos à criminalização cotidiana? Um militante dos meios
populares, pertencente aos trabalhadores menos qualificados, já sofre a
repressão cotidiana do Estado; ao ingressar em organizações políticas
sai da situação de resistência individual para a de resistência coletiva
e ativa. Esta opção intensifica o processo de repressão sobre este
sujeito – que não tem como fugir da carga mais intensa de repressão
imposta em determinados territórios ou por causa da cor da pele – que
fica submetido à repressão voltada para os militantes. Entretanto, a
opção pelo ativismo também o coloca em uma rede de solidariedade mais
ampla e poderosa do que as relações comunitárias, somando-se as duas.
Adotando a palavra de ordem todo preso é um preso político não estaríamos retirando do militante uma das possibilidades de defesa contra a criminalização da sua ação política?
Será que se assumirmos a distinção entre presos políticos e presos comuns
estaremos necessariamente negando a solidariedade à grande massa de
pessoas encarceradas pelas políticas de Estado? Estaremos
desconsiderando as razões históricas e sociais que levam à prisão de uma
parcela significativa da população pela cor da pele e pelo estado da
roupa?
No entanto, aí cabe perguntar se
esperamos que a esquerda assuma efetivamente a defesa prática — política
e jurídica — de todos os presos? Qual a capacidade organizativa que
teríamos para isso? Quais os possíveis avanços obteríamos com essa
estratégia?
Uma
estratégia possível que se pode desenvolver a partir da afirmação de
que “todo preso é um preso político” é a de politizar cada caso.Isto é, a
de se reconhecer e criticar as arbitrariedades recorrentes do sistema
judiciário e policial para, a partir daí, se enfrentar perseguições
específicas. Isso dá aos movimentos a possibilidade de adotar uma
postura ativa, e não só submissa, em relação ao judiciário. Um exemplo é
a recusa dos militantes do Movimento Passe Livre de São Paulo (aqui, aqui e aqui)
de ir ao DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) depor,
negando-se a contribuir com a elaboração do Inquérito 1 de 2013 por
questionar sua legitimidade e constatar a perseguição política presente
nele. A recusa procurou demonstrar o caráter da repressão operada pelos
poderes Executivo estadual e federal em conjunto com o Judiciário, o
Ministério Público e a Polícia Militar. Essas contradições não estavam
apenas no plano político, mas na própria esfera legal, na medida em que
inquéritos deveriam investigar crimes e não pessoas, e o referido
inquérito não possuía qualquer pessoa indiciada pela prática de um
crime. Assumindo o inquérito como uma questão política, o
MPL-SP empreendeu uma série de ações diretas para questioná-lo, da mesma
forma como enfrenta suas demais lutas, por exemplo a reivindicação da
criação de uma linha de ônibus. Assim, organizando acorrentamentos em
prédios públicos e convocando debates abertos, o MPL-SP trouxe para a
discussão pública os objetivos principais da investigação como forma de
mapear e intimidar todas aquelas pessoas que lutam. O MPL-SP, ao evocar
as ilegalidades cometidas contra os manifestantes presos, procurou
colocá-las como recorrentes na criminalização da pobreza, com
constrangimentos feitos pelos policiais nas casas dos potenciais
suspeitos, nos locais de trabalho, além da expansão para os seus
familiares.
Um potencial de se afirmar as prisões
como políticas é, então, a politização da vida cotidiana, e aí reside um
campo aberto para a organização de novos movimentos de base nas
periferias. A lógica de encarceramento massivo traz consigo uma situação
perversa de atomização da situação vivida: a pessoa presa é considerada
aquela que vacilou, andou com más influências, desandou, ou que estava
no lugar errado na hora errada. Embora a situação seja semelhante em
grande parte das famílias, ou que muitos tenham conhecidos e amigos
presos, o sofrimento costuma ser individualizado. Por vezes pode
presenciar-se uma ruptura do martírio privado, em especial quando a
Polícia Militar comete execuções ou quando se constrói um território
oficial de exceção com a implementação de uma UPP [Unidade de Polícia
Pacificadora]. Em momentos de agudização de uma situação recorrente, a
população se revolta e monta barricadas com os materiais que estão à
mão, e esses momentos de consciência coletiva – ainda que efêmeros –
apontam uma perspectiva. Ao se trabalhar com a situação de penúria e
sofrimento dos familiares faz-se possível estabelecer laços concretos de
solidariedade para o enfrentamento da humilhação cotidiana nas filas de
visita, ou na revista vexatória. A construção dessa rede de apoio mútuo
possibilita uma melhor defesa daqueles que estão presos
arbitrariamente, pois, ao inserir-se em uma comunidade política, as
pessoas percebem as recorrências entre os casos, as ilegalidades
recorrentes do aparelho estatal, e vislumbram a estrutura na qual os
casos se inserem. Trata-se então de um trabalho de transformar as
percepções difusas de arbitrariedade em uma ação concreta em oposição ao
sistema policial, penal e carcerário vigente.
As imagens que ilustram o artigo fazem parte do trabalho Liberdade, de Carlos Vergara.
Fonte: PASSA PALAVRA
Nenhum comentário:
Postar um comentário