janeiro 15, 2015

"1730 — DEVIR-INTENSO, DEVIR-ANIMAL, DEVIR-IMPERCEPTÍVEL…" - Gilles Deleuze & Félix Guattari

PICICA: "As idéias não morrem. Não que elas sobrevivam simplesmente a título de arcaísmos. Mas, num certo momento, elas puderam atingir um estágio científico, e depois perdê-lo, ou então emigrar para outras ciências. Elas podem então mudar de aplicação e de estatuto, podem até mudar de forma e de conteúdo, mas guardam algo de essencial, no encaminhamento, no deslocamento, na repartição de um novo domínio. As idéias sempre voltam a servir, porque sempre serviram, mas de modos atuais os mais diferentes. Com efeito, as relações dos animais entre si não são, por um lado, apenas objeto de ciência, mas também objeto de sonho, objeto de simbolismo, objeto de arte ou de poesia, objeto de prática e de utilização prática. Por outro lado, as relações dos animais entre si são tomadas em relações do homem com o animal, do homem com a mulher, do homem com a criança, do homem com os elementos, do homem com o universo físico e microfísico. A dupla idéia “série-estrutura” ultrapassa num certo momento um limiar científico, mas ela não vinha daí nem aí fica, ou passa para outras ciências, animando, por exemplo, as ciências humanas, para servir ao estudo dos sonhos, dos mitos e das organizações. A história das idéias nunca deveria ser contínua; deveria resguardar-se das semelhanças, mas também das descendências ou filiações, para contentar-se em marcar os limiares que uma idéia atravessa, as viagens que ela faz, que mudam sua natureza ou seu objeto. Ora, acontece que relações objetivas dos animais entre si foram retomadas em certas relações subjetivas do homem com o animal, do ponto de vista de uma imaginação coletiva, ou do ponto de vista de um entendimento social." 

1730 — DEVIR-INTENSO, DEVIR-ANIMAL, DEVIR-IMPERCEPTÍVEL…
Gilles Deleuze & Félix Guattari.*
Lembranças de um espectador. — Lembro-me do belo filme Willard (1972, Daniel Mann). Um série B, talvez, mas um belo filme impopular, pois os heróis são ratos. Minhas lembranças não são necessariamente exatas. Vou contar a história por alto. Willard vive com sua mãe autoritária na velha casa de família. Terrível atmosfera edipiana. A mãe manda-o destruir uma ninhada de ratos. Ele poupa um (ou dois, ou alguns). Depois de uma briga violenta, a mãe, que “parece” um cachorro, morre. Willard corre o risco de perder a casa, cobiçada por um homem de negócios. Willard gosta do rato principal que ele salvou, Ben, e que se revela de uma prodigiosa inteligência. Há ainda uma rata branca, a companheira de Ben. Quando volta do escritório, Willard passa todo seu tempo com eles. Eles agora proliferaram. Willard conduz a matilha de ratos, sob o comando de Ben, para a casa do homem de negócios, e o faz morrer atrozmente. Mas, ao levar seus dois preferidos para o escritório, comete uma imprudência, e é obrigado a deixar os empregados matarem a branca. Ben escapa, depois de um longo olhar fixo e duro sobre Willard. Este conhece então uma pausa em seu destino, em seu devir-rato. Com todas as suas forças, tenta ficar entre os humanos. Até aceita as insinuações de uma garota do escritório que “parece” muito uma rata, mas justamente só parece. Ora, um dia em que convida a garota, disposto a se fazer conjugalizar, re-edipianizar, ele revê Ben, que surge rancoroso. Tenta enxotá-lo, mas é a garota que ele enxotará, e desce ao porão para onde Ben o atrai. Lá, uma matilha inumerável o espera para despedaçá-lo. E como um conto, não é angustiante em momento algum.

Está tudo aí: um devir-animal que não se contenta em passar pela semelhança, para o qual a semelhança, ao contrário, seria um obstáculo ou uma parada; um devir-molecular, com a proliferação dos ratos, a matilha, que mina as grandes potências molares, família, profissão, conjugalidade; uma escolha maléfica, porque há um “preferido” na matilha e uma espécie de contrato de aliança, de pacto tenebroso com o preferido; a instauração de um agenciamento, máquina de guerra ou máquina criminosa, podendo ir até a autodestruição; uma circulação de afectos impessoais, uma corrente alternativa, que tumultua os projetos significantes, tanto quanto os sentimentos subjetivos, e constitui uma sexualidade não-humana; uma irresistível desterritorialização, que anula de antemão as tentativas de reterritorialização edipiana, conjugai ou profissional (haveria animais edipianos, com quem se pode “fazer Édipo”, fazer família, meu cachorrinho, meu gatinho e, depois, outros animais que nos arrastariam, ao contrário, para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o mesmo animal poderia estar tomado em duas funções, dois movimentos opostos, dependendo do caso?).
Lembranças de um naturalista. — Um dos principais problemas da história natural foi o de pensar as relações dos animais entre si. É muito diferente do evolucionismo ulterior que se definiu em termos de genealogia, parentesco, descendência ou filiação. Sabe-se que o evolucionismo chegará à idéia de uma evolução que não se faria necessariamente por filiação. Mas, no começo, ele só podia passar pelo motivo genealógico. Inversamente, a história natural tinha ignorado esse motivo ou, pelo menos, sua importância determinante. O próprio Darwin distingue, como muito independentes, o tema evolucionista do parentesco e o tema naturalista da soma e do valor das diferenças ou semelhanças: com efeito, grupos igualmente parentes podem ter graus de diferença inteiramente variáveis em relação ao ancestral. É precisamente porque a história natural ocupa-se antes de mais nada da soma e do valor das diferenças, que ela pode conceber progressões e regressões, continuidades e grandes cortes, mas não uma evolução propriamente dita, isto é, a possibilidade de uma dependência cujos graus de modificação dependem de condições externas. A história natural só pode pensar em termos de relações, entre A e B, e não em termos de produção, de A a x.

Mas é ao nível dessas relações que algo de muito importante se passa, pois a história natural concebe de duas maneiras as relações de animais: série ou estrutura. Segundo uma série, eu digo: a assemelha-se a b, b assemelha-se a c…, etc., sendo que todos esses termos remetem eles próprios, segundo seus diversos graus, a um termo único eminente, perfeição ou qualidade, como razão da série. É exatamente o que os teólogos chamavam de uma analogia de proporção. Segundo a estrutura, eu digo a está para b como c está para d, e cada uma dessas relações realiza à sua maneira a perfeição considerada: as brânquias estão para a respiração na água, como os pulmões estão para a respiração no ar; ou então, o coração está para as brânquias, como a ausência de coração está para a traquéia… É uma analogia de proporcionalidade. No primeiro caso, tenho semelhanças que diferem ao longo de toda uma serie, ou de uma série para outra. No segundo caso, tenho diferenças que se assemelham numa estrutura, e de uma estrutura para outra. A primeira forma de analogia passa por mais sensível e popular, e exige imaginação; no entanto, trata-se de uma imaginação estudiosa, que deve levar em conta ramos da série, preencher as rupturas aparentes, conjurar as falsas semelhanças e graduar as verdadeiras, levar em conta ao mesmo tempo progressões e regressões ou desgraduações. A segunda forma de analogia é considerada como real, porque ela exige antes todos os recursos do entendimento para fixar as relações equivalentes, descobrindo ora as variáveis independentes combináveis numa estrutura, ora os correlatos que acarretam um ao outro em cada estrutura. Mas, por mais diferentes que sejam, esses dois temas, o da série e o da estrutura, sempre coexistiram na história natural; aparentemente contraditórios, eles formam realmente compromissos mais ou menos estáveis¹. Da mesma forma, as duas figuras de analogia coexistiam no espírito dos teólogos, com equilíbrios variáveis. É que, tanto em uma como na outra, a Natureza é concebida como imensa mimese: ora sob forma de uma cadeia de seres que não cessariam de imitar-se, progressivamente ou regressivamente, tendendo ao termo superior divino que todos eles imitam como modelo e razão da série, por semelhança graduada; ora sob forma de uma Imitação em espelho que não teria mais nada para imitar, pois seria ela o modelo que todos imitariam, dessa vez por diferença ordenada… (É essa visão mimética ou mimológica que torna impossível, naquele momento, a idéia de uma evolução-produção.)
Ora, não saímos absolutamente deste problema. As idéias não morrem. Não que elas sobrevivam simplesmente a título de arcaísmos. Mas, num certo momento, elas puderam atingir um estágio científico, e depois perdê-lo, ou então emigrar para outras ciências. Elas podem então mudar de aplicação e de estatuto, podem até mudar de forma e de conteúdo, mas guardam algo de essencial, no encaminhamento, no deslocamento, na repartição de um novo domínio. As idéias sempre voltam a servir, porque sempre serviram, mas de modos atuais os mais diferentes. Com efeito, as relações dos animais entre si não são, por um lado, apenas objeto de ciência, mas também objeto de sonho, objeto de simbolismo, objeto de arte ou de poesia, objeto de prática e de utilização prática. Por outro lado, as relações dos animais entre si são tomadas em relações do homem com o animal, do homem com a mulher, do homem com a criança, do homem com os elementos, do homem com o universo físico e microfísico. A dupla idéia “série-estrutura” ultrapassa num certo momento um limiar científico, mas ela não vinha daí nem aí fica, ou passa para outras ciências, animando, por exemplo, as ciências humanas, para servir ao estudo dos sonhos, dos mitos e das organizações. A história das idéias nunca deveria ser contínua; deveria resguardar-se das semelhanças, mas também das descendências ou filiações, para contentar-se em marcar os limiares que uma idéia atravessa, as viagens que ela faz, que mudam sua natureza ou seu objeto. Ora, acontece que relações objetivas dos animais entre si foram retomadas em certas relações subjetivas do homem com o animal, do ponto de vista de uma imaginação coletiva, ou do ponto de vista de um entendimento social.

Jung elaborou uma teoria do Arquétipo como inconsciente coletivo, onde o animal tem um papel particularmente importante nos sonhos, nos mitos e nas coletividades humanas. Precisamente, o animal é inseparável de uma série que comporta o duplo aspecto progressão-regressão, e onde cada termo desempenha o papel de um transformador possível da libido (metamorfose). Todo um tratamento dos sonhos sai daí, pois uma imagem perturbadora estando dada, trata-se de integrá-la em sua série arquetípica. Tal série pode comportar seqüências femininas ou masculinas, infantis, mas igualmente seqüências animais, vegetais, ou até elementares, moleculares. Diferentemente da história natural, não é mais o homem que é o termo eminente da série, pode ser um animal para o homem, o leão, o caranguejo ou a ave de rapina, o piolho, em relação a tal ato, tal função, segundo tal exigência do inconsciente. Bachelard escreve um livro junguiano muito bonito quando estabelece a série ramificada de Lautréamont, levando em conta os coeficientes de velocidade das metamorfoses e o grau de perfeição de cada termo, em função de uma agressividade pura como razão de série: a presa da cobra, o chifre do rinoceronte, o dente do cachorro e o bico da coruja, mas, cada vez mais alto, a garra da águia ou do abutre, a pinça do caranguejo, as patas do piolho, a ventosa do polvo. No conjunto da obra de Jung, toda uma mimese reúne em suas malhas a natureza e a cultura, segundo analogias de proporção onde as séries e seus termos, e sobretudo os animais que ocupam aí uma situação mediana, asseguram os ciclos de conversão natureza-cultura-natureza: os arquétipos como “representações analógicas”2.
Será por acaso que o estruturalismo denunciou tão fortemente esses prestígios da imaginação, o estabelecimento das semelhanças ao longo da série, a imitação que atravessa toda série e a conduz ao termo, a identificação a esse termo último? Nada é mais explícito a esse respeito do que os célebres textos de Lévi-Strauss sobre o totemismo: ultrapassar as semelhanças externas em direção às homologias internas³.
Não se trata mais de instaurar uma organização serial do imaginário, mas uma ordem simbólica e estrutural do entendimento. Não se trata mais de graduar semelhanças, e de chegar em última instância a uma identificação do Homem e do Animal no seio de uma participação mística. Trata-se de ordenar as diferenças para chegar a uma correspondência das relações, pois o animal, por sua vez, distribui-se segundo relações diferenciais ou oposições distintivas de espécies; e, da mesma forma, o homem, segundo os grupos considerados. Na instituição totêmica, não se dirá que tal grupo de homens identifica-se a tal espécie animal; será dito o seguinte: o que o grupo A é para o grupo B, a espécie A’ é para a espécie B’. Há aqui um método profundamente diferente do precedente: se dois grupos humanos são dados, tendo cada um seu animal-totem, será preciso encontrar em que os dois totens estão tomados em relações análogas às dos dois grupos — o que a Gralha é para o Falcão…

O método vale igualmente para as relações Homem-criança, Homem-mulher, etc. Constatando, por exemplo, que o guerreiro tem uma certa relação espantosa com a donzela, evitaremos estabelecer uma série imaginária que os reuniria, procuraremos antes o termo que torna efetiva uma equivalência de relações. Assim, Vernant pode dizer que o casamento é para a mulher aquilo que a guerra é para o homem, donde decorre uma homologia da virgem que se recusa ao casamento e do guerreiro que se disfarça de moça4. Em suma, o entendimento simbólico substitui a analogia de proporção por uma analogia de proporcionalidade; a seriação das semelhanças por uma estruturação das diferenças; a identificação dos termos por uma igualdade das relações; as metamorfoses da imaginação por metáforas no conceito; a grande continuidade natureza-cultura por uma falha profunda que distribui correspondências sem semelhança entre as duas; a imitação de um modelo originário, por uma mimese ela mesma primeira e sem modelo. Nunca um homem pôde dizer: “Eu sou um touro, um lobo…”; mas pôde sim dizer: sou para a mulher aquilo que o touro é para uma vaca; sou para um outro homem aquilo que o lobo é para o cordeiro. O estruturalismo é uma grande revolução, o mundo inteiro torna-se mais razoável. Considerando os dois modelos, da série e da estrutura, Lévi-Strauss não se contenta em beneficiar a segunda com todos os prestígios de uma classificação verdadeira; ele remete a primeira ao domínio obscuro do sacrifício, que ele apresenta como ilusório e até destituído de bom senso. O tema serial do sacrifício deve ceder lugar ao tema estrutural da instituição totêmica bem compreendida. No entanto, aqui ainda, entre as séries arquetípicas e as estruturas simbólicas, muitos compromissos se estabelecem, como na história natural5.
Lembranças de um bergsoniano. — Nada do que precede nos satisfaz, do ponto de vista restrito que nos ocupa aqui. Acreditamos na existência de devires-animais muito especiais que atravessam e arrastam o homem, e que afetam não menos o animal do que o homem. “Só se ouvia falar de vampiros, de 1730 à 1735…”. Ora, é evidente que o estruturalismo não dá conta desses devires, porque ele é feito precisamente para negar ou ao menos desvalorizar sua existência: uma correspondência de relações não faz um devir. Desse modo, quando reencontra tais devires que percorrem uma sociedade em todos os sentidos, o estruturalismo vê nisso fenômenos de degradação que desviam a ordem verdadeira e que dizem respeito às aventuras da diacronia. No entanto, Lévi-Strauss, em seus estudos de mitos, não pára de cruzar esses atos rápidos pelos quais o homem torna-se animal ao mesmo tempo que o animal torna-se… (mas torna-se o quê? torna-se homem ou torna-se outra coisa?). A tentativa de explicar esses blocos de devir pela correspondência de duas relações é sempre possível, mas seguramente empobrece o fenômeno considerado. Não seria preciso admitir que o mito, como quadro de classificação, é pouco capaz de registrar tais devires, que são, antes, como que fragmentos de conto? Não seria preciso dar crédito à hipótese de Duvignaud, segundo a qual fenômenos “anômicos” atravessam as sociedades, e não são degradações da ordem mítica, mas dinamismos irredutíveis traçando linhas de fuga, implicando formas de expressão outras que a do mito, mesmo que esse por sua vez as retome para detê-las6? Será que, ao lado dos dois modelos, o do sacrifício e o da série, o da instituição totêmica e o da estrutura, haveria ainda lugar para uma outra coisa, mais secreta, mais subterrânea: o feiticeiro e os devires, que se exprimem nos contos e não mais nos mitos ou nos ritos?

6 Cf. J. Duvignaud, L’anomie, Ed. Anthropos.
Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação. Toda a crítica estruturalista da série parece inevitável. Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o nível cósmico ou dinâmico mais elevado, como em Jung ou Bachelard. Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna “realmente” animal, como tampouco o animal se torna “realmente” outra coisa. O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. O devir pode e deve ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este ponto que será necessário explicar: como um devir não tem sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade própria ao devir (a idéia bergsoniana de uma coexistência de “durações” muito diferentes, superiores ou inferiores à “nossa”, e todas comunicantes).

Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível. Há um bloco de devir que toma a vespa e a orquídea, mas do qual nenhuma vespa-orquídea pode descender. Há um bloco de devir que toma o gato e o babuíno, e cuja aliança é operada por um vírus C. Há um bloco de devir entre raízes jovens e certos microorganismos, as matérias orgânicas sintetizadas nas folhas operando a aliança (rizosfera). Se o neo-evolucionismo afirmou sua originalidade, é em parte em relação a esses fenômenos nos quais a evolução não vai de um menos diferenciado a um mais diferenciado, e cessa de ser uma evolução filiativa hereditária para tornar-se antes comunicativa ou contagiosa. Preferimos então chamar de “involução” essa forma de evolução que se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição de que não se confunda a involução com uma regressão. O devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado. Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha, “entre” os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis.

O neo-evolucionismo parece-nos importante por duas razões: o animal não se define mais por características (específicas, genéricas, etc.), mas por populações, variáveis de um meio para outro ou num mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre populações heterogêneas. Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”.
Lembrança de um feiticeiro, I. — Num devir-animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade. Nós, feiticeiros, sabemos disso desde sempre. Pode acontecer que outras instâncias, aliás muito diferentes entre si, tenham uma outra consideração do animal: pode-se reter ou extrair do animal certas características, espécies e gêneros, formas e funções, etc. A sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar os homens; a história natural e a ciência precisam de características para classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam características segundo suas semelhanças, ora as ordenam segundo suas diferenças. As características animais podem ser míticas ou científicas. Mas não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou legião. Fascinação do homem dos lobos diante dos vários lobos que olham para ele. O que seria um lobo sozinho? e uma baleia, um piolho, um rato, uma mosca? Belzebu é o diabo, mas o diabo como senhor das moscas. O lobo não é primeiro uma característica ou um certo número de características; ele comporta uma proliferação, sendo, pois, uma lobiferação. O piolho é uma piolhiferação…, etc. O que é um grito, independentemente da população que ele chama ou que ele convoca como testemunha? Virgínia Woolf não se deixa viver como um macaco ou um peixe, mas como uma penca de macacos, um cardume de peixes, segundo uma relação de devir variável com as pessoas das quais ela se aproxima. Não queremos dizer que certos animais vivem em matilhas; não queremos entrar em ridículas classificações evolucionistas à Ia Lorentz, onde haveria matilhas inferiores e sociedades superiores. Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou a multiplicidade que nos fascina já está em relação com uma multiplicidade que habita dentro de nós? Em sua obra prima, Démons et merveilles, Lovecraft conta a história de Randolph Carter, que sente seu “eu” vacilar, e que conhece um medo maior que o do aniquilamento: “uns Carter, de forma ao mesmo tempo humana e não humana, vertebrada e invertebrada, animal e vegetal, dotada de consciência e privada de consciência, e até uns Carter sem nada em comum com a vida terrestre, sobre fundos de planetas, de galáxias e de sistemas pertencentes a outros continuums cósmicos. (…) Afundar-se no nada abre um esquecimento aprazível, mas estar consciente de sua existência e, no entanto, saber que não se é mais um ser definido distinto dos outros seres”, nem distinto de todos esses devires que nos atravessam, “eis o auge indizível do pavor e da agonia”. Hofmannsthal, ou melhor lorde Chandos, sucumbe ao fascínio diante de um “povo de ratos” que agonizam; e é nele, através dele, nos interstícios de seu eu transtornado, que “a alma do animal mostra os dentes ao destino monstruoso”: não é pena, mas participação anti-natureza7. Então nasce nele o estranho imperativo: ou parar de escrever, ou escrever como um rato… Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc. Será preciso dizer por quê. Muitos suicídios de escritores se explicam por essas participações anti-natureza, essas núpcias anti-natureza. O escritor é um feiticeiro porque vive o animal como a única população perante a qual ele é responsável de direito. O pré-romântico alemão Moritz sente-se responsável, não pelos bezerros que morrem, mas perante os bezerros que morrem e que lhe dão o incrível sentimento de uma Natureza desconhecida — o afecto8. Pois o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu. Quem não conheceu a violência dessas seqüências animais, que o arrancam da humanidade, mesmo que por um instante, e fazem-no esgaravatar seu pão como um roedor ou lhe dão os olhos amarelos de um felino? Terrível involução que nos chama em direção a devires inauditos. Não são regressões, ainda que fragmentos de regressão e seqüências de regressão juntem-se a eles.
Seria mesmo preciso distinguir três espécies de animais: os animais individuados, familiares familiais, sentimentais, os animais edipianos, de historinha, “meu” gato, “meu” cachorro; estes nos convidam a regredir, arrastam-nos para uma contemplação narcísica, e a psicanálise só compreende esses animais para melhor descobrir, por trás deles, a imagem de um papai, de uma mamãe, de um irmãozinho (quando a psicanálise fala dos animais, os animais aprendem a rir): todos aqueles que amam os gatos, os cachorros, são idiotas. E depois haveria uma segunda espécie, os animais com característica ou atributo, os animais de gênero, de classificação ou de Estado, tais como os grandes mitos divinos os tratam, para deles extrair séries ou estruturas, arquétipos ou modelos (Jung é, ainda assim, mais profundo que Freud). Enfim, haveria animais mais demoníacos, de matilhas e afectos, e que fazem multiplicidade, devir, população, conto… Ou então, mais uma vez, não são todos os animais que podem ser tratados das três maneiras? Haverá sempre a possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como um animal familiar, meu bichinho. E, no outro extremo, também todo animal pode ser tratado ao modo da matilha e da proliferação, que convém a nós, feiticeiros. Até o gato, até o cachorro… E que o pastor, ou o domador, o diabo, tenha o seu animal preferido na matilha, certamente não é da mesma maneira que há pouco. Sim, todo animal é ou pode ser uma matilha, mas segundo graus de vocação variável, que tornam mais ou menos fácil a descoberta de multiplicidade, de teor em multiplicidade, que ele contém atualmente ou virtualmente, dependendo dos casos. Cardumes, bandos, manadas, populações não são formas sociais inferiores, são afectos e potências, involuções, que tomam todo animal num devir não menos potente que o do homem com o animal.

J.L. Borges, autor renomado por seu excesso de cultura, fracassou pelo menos em dois livros, dos quais só os títulos eram bonitos: primeiro uma História universal da infâmia, porque ele não viu a diferença elementar que os feiticeiros fazem entre a trapaça e a traição (e os devires-animais já estão aí, forçosamente do lado da traição). Uma segunda vez, em seu Livro dos seres imaginários, onde ele não só faz do mito uma imagem composta e sem graça, mas elimina todos os problemas de matilha, e, para o homem, de devir-animal correspondente: “Deliberadamente, excluímos deste manual as lendas sobre as transformações do ser humano, o lobisomem, o homem-lobo, etc.” Borges só se interessa pelas características, mesmo as mais fantásticas, enquanto que os feiticeiros sabem que os lobisomens são bandos, os vampiros também, e que esses bandos transformam-se uns nos outros. Mas, justamente, o que quer dizer o animal como bando ou matilha? Será que um bando não implica uma filiação que nos levaria à reprodução de certas características? Como conceber um povoamento, uma propagação, um devir, sem filiação nem produção hereditária? Uma multiplicidade, sem unidade de um ancestral? É muito simples e todo mundo sabe, ainda que só se fale nisso em segredo. Opomos a epidemia à filiação, o contágio à hereditariedade, o povoamento por contágio à reprodução sexuada, à produção sexual. Os bandos, humanos e animais proliferam com os contágios, as epidemias, os campos de batalha e as catástrofes. É como os híbridos, eles próprios estéreis, nascidos de uma união sexual que não se reproduzirá, mas que sempre recomeça ganhando terreno a cada vez. As participações, as núpcias anti-natureza, são a verdadeira Natureza que atravessa os reinos. A propagação por epidemia, por contágio, não tem nada a ver com a filiação por hereditariedade, mesmo que os dois temas se misturem e precisem um do outro. O vampiro não filiaciona, ele contagia. A diferença é que o contágio, a epidemia coloca em jogo termos inteiramente heterogêneos: por exemplo, um homem, um animal e uma bactéria, um vírus, uma molécula, um microorganismo. Ou, como para a trufa, uma árvore, uma mosca e um porco. Combinações que não são genéticas nem estruturais, inter-reinos, participações contra a natureza, mas a Natureza só procede assim, contra si mesma. Estamos longe da produção filiativa, da reprodução hereditária, que só retém como diferenças uma simples dualidade dos sexos no seio de uma mesma espécie, e pequenas modificações ao longo das gerações. Para nós, ao contrário, há tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenças quanto elementos intervindo num processo de contágio.’ Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vêm de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender em termos de produção, mas apenas de devir. O Universo não funciona por filiação. Nós só dizemos, portanto, que os animais são matilhas, e que as matilhas se formam, se desenvolvem e se transformam por contágio.

Essas multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-funcionamento de contágio, entram em certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus devires-animais. Mas, justamente, não se confundirá esses agenciamentos sombrios, que remexem em nós o mais profundo, com organizações como a instituição familiar e o aparelho de Estado. Poderíamos citar as sociedades de caça, as sociedades de guerra, as sociedades secretas, as sociedades de crime, etc. Os devires-animais a elas pertencem. Não procuraremos aí regimes de filiação do tipo familiar, nem modos de classificação e de atribuição de tipo estatal ou pré-estatal, nem mesmo estabelecimentos seriais de tipo religioso. Apesar das aparências e das confusões possíveis, os mitos não têm aí nem terreno de origem nem ponto de aplicação. São contos, ou narrativas e enunciados de devir. Assim, é absurdo hierarquizar as coletividades mesmo animais do ponto de vista de um evolucionismo de fantasia, onde as matilhas estariam no mais baixo, dando lugar em seguida às sociedades familiares e estatais. Ao contrário, há diferença de natureza; a origem das matilhas é totalmente outra que a das famílias e dos Estados e ela não pára de trabalhá-las por baixo, de perturbá-las de fora, com outras formas de conteúdo, outras formas de expressão. A matilha é ao mesmo tempo realidade animal, e realidade do devir-animal do homem; o contágio é ao mesmo tempo povoamento animal, e propagação do povoamento animal do homem. A máquina de caça, a máquina de guerra, a máquina de crime acarretam toda espécie de devires-animais que não se enunciam no mito e ainda menos no totemismo. Dumézil mostrou como tais devires pertenciam essencialmente ao homem de guerra, mas à medida que era exterior às famílias e aos Estados, à medida que conturbava as filiações e as classificações. A máquina de guerra é sempre exterior ao Estado, mesmo quando o Estado se serve dela, e dela se apropria. O homem de guerra tem todo um devir que implica multiplicidade, celeridade, ubiqüidade, metamorfose e traição, potência de afecto. Os homens-lobos, os homens-ursos, os homens-feras, os homens de toda animalidade, confrarias secretas, animam os campos de batalha. Mas também as matilhas animais, que servem os homens na batalha, ou que a seguem e dela tiram proveito. E todos juntos espalham o contágio9. Há um conjunto complexo, devir-animal do homem, matilhas de animais, elefantes e ratos ventos e tempestades, bactérias que semeiam o contágio. Um só e mesmo Furor. A guerra comportou seqüências zoológicas, antes de se fazer bacteriológica. É aqui que os lobisomens proliferam, e os vampiros, com a guerra, a fome e a epidemia. Qualquer animal pode ser tomado nessas matilhas, e nos devires correspondentes; vimos gatos nos campos de batalha, e até fazer parte dos exércitos. É por isso que mais do que distinguir espécies de animais, é preciso distinguir estados diferentes, segundo eles se integrem em instituições familiares ou em aparelhos de Estado, em máquinas de guerra, etc. (e a máquina de escrita ou a máquina musical, que relação têm elas com os devires-animais?).

Lembranças de um feiticeiro, II. — Nosso primeiro princípio dizia: matilha e contágio, contágio de matilha, é por aí que passa o devir-animal. Mas um segundo princípio parece dizer o contrário: por toda parte onde há multiplicidade, você encontrará também um indivíduo excepcional, e é com ele que terá que fazer aliança para devir-animal. Não um lobo sozinho talvez, mas há o chefe de bando, o senhor de matilha, ou então o antigo chefe destituído que vive agora sozinho, há o Solitário, ou ainda o Demônio. Willard tem seu preferido, o rato Ben, e só torna-se rato na relação com ele, numa espécie de aliança de amor, depois de ódio. Moby Dick inteiro é uma das maiores obras-primas de devir; o capitão Ahab tem um devir-baleia irresistível, mas que justamente contorna a matilha ou o cardume, e passa diretamente por uma aliança monstruosa com o Único, com o Leviatã, Moby Dick. Há sempre pacto com um demônio, e o demônio aparece ora como chefe do bando, ora como Solitário ao lado do bando, ora como Potência superior do bando. O indivíduo excepcional tem muitas posições possíveis. Kafka, mais um grande autor dos devires-animais reais, canta o povo dos camundongos; mas Josefina, a camundonga cantora, tem ora uma posição privilegiada no bando, ora uma posição fora do bando, ora se insinua e se perde anônima nos enunciados coletivos do bando. Em suma, todo Animal tem seu Anômalo. Entendamos: todo animal tomado em sua matilha ou sua multiplicidade tem seu anômalo. Pôde-se observar que a palavra “anômalo”, adjetivo que caiu em desuso, tinha uma origem muito diferente de “anormal”: a-normal, adjetivo latino sem substantivo, qualifica o que não tem regra ou o que contradiz a regra, enquanto que “a-nomalia”, substantivo grego que perdeu seu adjetivo, designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização10. O anormal só pode definir-se em função das características, específicas ou genéricas; mas o anômalo é uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade. Os feiticeiros se utilizam então do velho adjetivo “anômalo” para situar as posições do indivíduo excepcional na matilha. É sempre com o Anômalo, Moby Dick ou Josefina, que se faz aliança para devir-animal.
Parece mesmo haver contradição: entre a matilha e o solitário; entre o contágio de massa e a aliança preferencial; entre a multiplicidade pura e o indivíduo excepcional; entre o conjunto aleatório e a escolha predestinada. E a contradição é real: Ahab não escolhe Moby Dick, nessa escolha que o ultrapassa e que vem de outra parte, sem romper com a lei dos baleeiros que quer que se deva primeiro perseguir a matilha. Pentesiléia quebra a lei da matilha, matilha de mulheres, matilha de cadelas, quando escolhe Aquiles como inimigo preferido. No entanto, é por essa escolha anômala que cada um entra em seu devir-animal, devir-cão de Pentesiléia, devir-baleia do capitão Ahab. Nós, feiticeiros, sabemos bem que as contradições são reais, mas que as contradições reais são apenas para rir, pois toda a questão é: qual é a natureza do anômalo, ao certo? Que função ele tem em relação ao bando, à matilha? É evidente que o anômalo não é simplesmente um indivíduo excepcional, o que o remeteria ao animal familial ou familiar, edipianizado à maneira da psicanálise, a imagem de pai…, etc. Para Ahab, Moby Dick não é como o gatinho ou o cachorrinho de uma velha que o cobre de atenções e o paparica. Para Lawrence, o devir-tartaruga no qual ele entra não tem nada a ver com uma relação sentimental e doméstica. Lawrence, por sua vez, faz parte dos escritores que nos causam problema e admiração, porque souberam ligar sua escrita a devires-animais reais inauditos. Mas, justamente, recrimina-se a Lawrence: “Suas tartarugas não são reais!” E ele responde: é possível, mas meu devir o é, meu devir é real, inclusive e sobretudo se vocês não podem julgá-lo, porque vocês são cachorrinhos domésticos…11. O anômalo, o elemento preferencial da matilha, não tem nada a ver com o indivíduo preferido, doméstico e psicanalítico. Mas o anômalo não é tampouco um portador de espécie, que apresentaria as características específicas e genéricas no mais puro estado, modelo ou exemplar único perfeição típica encarnada, termo eminente de uma série, ou suporte de uma correspondência absolutamente harmoniosa. O anômalo não é nem indivíduo nem espécie, ele abriga apenas afectos, não comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas ou significativas. Tanto as ternuras quanto as classificações humanas lhe são estrangeiras. Lovecraft chama de Outsider essa coisa ou entidade, a Coisa, que chega e transborda, linear e no entanto múltipla, “inquieta, fervilhante, marulhosa, espumante, estendendo-se como uma doença infecciosa, esse horror sem nome”.
Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos elementos que a compõem em extensão, nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões que ela comporta em “intensão”. Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta algumas, você muda de multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade, que não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual pode-se contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além dela, a multiplicidade mudaria de natureza. E o que o capitão Ahab diz ao seu imediato: eu não tenho nenhuma história pessoal com Moby Dick, nenhuma vingança a tirar, como tampouco um mito a deslindar, mas tenho um devir! Moby Dick não é nem um indivíduo nem um gênero, é a borda, é preciso que eu bata nela para atingir toda a matilha, para atingir toda a matilha e passar através. Os elementos da matilha são tão-somente “manequins” imaginários, as características da matilha são apenas entidades simbólicas, só conta a borda — o anômalo. “Para mim essa baleia branca é a muralha, bem perto de mim”, o muro branco, “às vezes eu acho que para além dele não há nada, mas pouco importa!” Se o anômalo é assim a borda, pode-se compreender melhor suas diversas posições em relação à matilha ou multiplicidade que ela bordeja, e as diversas posições de um Eu fascinado. Pode-se até fazer uma classificação das matilhas sem recair nas ciladas de um evolucionismo que só veria nelas um estágio coletivo inferior, ao invés de considerar os agenciamentos particulares que elas colocam em jogo. De todo modo, haverá bordas de matilha, e posição anômala, cada vez que, num espaço, um animal encontrar-se na linha ou em vias de traçar a linha em relação à qual todos os outros membros da matilha ficam numa metade, esquerda ou direita: posição periférica, que faz com que não se saiba mais se o anômalo ainda está no bando, já fora do bando, ou na fronteira móvel do bando. Mas ora é cada animal que atinge essa linha ou ocupa essa posição dinâmica, como numa matilha de mosquitos onde “cada indivíduo do grupo desloca-se aleatoriamente até que vejam todos seus congêneres num mesmo semi-espaço; então, ele corre para modificar seu movimento de maneira a entrar no grupo, sendo a estabilidade assegurada às pressas por uma barreira¹². Ora é um animal preciso que traça e ocupa a borda enquanto chefe de matilha. Ora ainda a borda é definida, ou duplicada por um ser de uma outra natureza, que não pertence mais à matilha, ou jamais pertenceu, e que representa uma potência de outra ordem, agindo eventualmente tanto como ameaça quanto como treinador, outsider…, etc. Em todo caso, não há bando sem esse fenômeno de borda, ou anômalo. É verdade que os bandos são minados também por forças muito diferentes que instauram neles centros interiores de tipo conjugai e familiar, ou de tipo estatal, e que os fazem passar a uma forma de sociabilidade totalmente diferente, substituindo os afectos de matilha por sentimentos de família ou inteligibilidades de Estado. O centro, ou os buracos negros internos, ganham o papel principal. E aí que o evolucionismo pode ver um progresso, nessa aventura que acontece igualmente aos bandos humanos quando eles reconstituem um familialismo de grupo, ou até um autoritarismo, um fascismo de matilha.
Os feiticeiros sempre tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos ou dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se encontram na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos. O importante é sua afinidade com a aliança, com o pacto, que lhes dá um estatuto oposto ao da filiação. Com o anômalo, a relação é de aliança. O feiticeiro está numa relação de aliança com o demônio como potência do anômalo. Os antigos teólogos distinguiram claramente duas espécies de maldição que se exerciam sobre a sexualidade. A primeira concerne a sexualidade como processo de filiação através do qual ela transmite o pecado original. Mas a segunda a concerne como potência de aliança, e inspira uniões ilícitas ou amores abomináveis: ela difere da primeira mais ainda visto que tende a impedir a procriação, e visto que o demônio não tendo ele próprio o poder de procriar, deve passar por meios indiretos (assim, ser o súcubo fêmea de um homem para tornar-se o incubo macho de uma mulher à qual ele transmite o sêmen do primeiro). É verdade que a aliança e a filiação entram em relações reguladas pelas leis de casamento, mas mesmo então a aliança guarda uma potência perigosa e contagiosa. Leach pode mostrar que, apesar de todas as exceções que parecem desmentir essa regra, o feiticeiro pertence primeiro a um grupo que é unido só por aliança àquele sobre o qual ele exerce sua eficácia: assim, num grupo matrilinear, é do lado do pai que o feiticeiro ou a feiticeira devem ser procurados. E há toda uma evolução da feitiçaria dependendo de a relação de aliança adquirir uma permanência ou tomar um valor político¹³. Não basta parecer um lobo ou viver como um lobo para produzir lobisomens em sua própria família: é preciso que o pacto com o diabo se acompanhe de uma aliança com uma outra família, e é o retorno dessa aliança na primeira família, a reação dessa aliança sobre a primeira família, que produz os lobisomens como por efeito de feed-back. Um belo conto de Erckmann-Chatrian, Hughes le loup, recolhe as tradições sobre essa complexa situação.
Vemos dissolver-se cada vez mais a contradição entre os dois temas “contágio com o animal como matilha”, “pacto com o anômalo como ser excepcional”. Leach pode com razão reunir os dois conceitos de aliança e de contágio, pacto-epidemia; analisando a feitiçaria kachin, ele escreve: “a influência maléfica é supostamente transmitida pelo alimento que a mulher prepara (…). A feitiçaria kachin é contagiosa mais do que hereditária, (…) ela é associada à aliança, não à descendência”. A aliança ou o pacto são a forma de expressão, para uma infecção ou uma epidemia que são forma de conteúdo. Na feitiçaria, o sangue é de contágio e de aliança. Se dirá que um devir-animal é assunto de feitiçaria: 1) porque ele implica uma primeira relação de aliança como um demônio; 2) porque este demônio exerce a função de borda de uma matilha animal na qual o homem passa ou está em devir, por contágio; 3) porque este devir implica ele próprio uma segunda aliança, com outro grupo humano; 4) porque esta nova borda entre os dois grupos guia o contágio do animal e do homem no seio da matilha. Há toda uma política dos devires-animais, como uma política da feitiçaria: esta política se elabora em agenciamentos que não são nem os da família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos. Se o devir-animal toma a forma da Tentação, e de monstros suscitados na imaginação pelo demônio, é por acompanhar-se, em suas origens como em sua empreitada, por uma ruptura com as instituições centrais, estabelecidas ou que buscam se estabelecer.

Citemos desordenadamente, não como misturas a serem feitas, mas antes como diferentes casos a serem estudados: os devires-animais na máquina de guerra, homens-feras de todas as espécies, mas justamente a máquina de guerra vem de fora, extrínseca ao Estado que trata o guerreiro como potência anômala; os devires-animais nas sociedades de crime, homens-leopardos, homens-jacarés, quando o Estado proíbe as guerras locais e tribais; os devires-animais nos grupos de sublevação, quando a Igreja e o Estado encontram-se diante de movimentos camponeses com componente feiticeiro, e que irão reprimir, instaurando todo um sistema de tribunal e de direito próprio a denunciar os pactos com o demônio; os devires-animais nos grupos de ascese, o anacoreta roedor, ou besta fera, mas a máquina de ascese está em posição anômala, em linha de fuga, fora da Igreja, e contesta sua pretensão de erigir-se como instituição imperial14; os devires-animais nas sociedades de iniciação sexual do tipo “deflorador sagrado”, homens-lobos, homens-bodes, etc., que se valem de uma Aliança superior e exterior à ordem das famílias, enquanto que as famílias terão que conquistar contra eles o direito de ajustar suas próprias alianças, de determiná-las segundo relações de dependência complementar e de domesticar essa potência desenfreada da aliança15.
Então, evidentemente, a política dos devires-animais permanece extremamente ambígua, pois as sociedades, mesmo primitivas, não deixarão de apropriar-se desses devires para caçá-los e reduzi-los a relações de correspondência totêmica ou simbólica. Os Estados não deixarão de apropriar-se da máquina de guerra, sob forma de exércitos nacionais que limitam estritamente os devires do guerreiro. A Igreja não deixará de queimar os feiticeiros, ou então de reintegrar os anacoretas na imagem abrandada de uma série de santos que não têm mais com o animal senão uma relação estranhamente familiar, doméstica. As Famílias não deixarão de conjurar o Aliado demoníaco que as corrói, para ajustar as alianças convenientes entre si. Ver-se-á os feiticeiros servirem os chefes, colocarem-se a serviço do despotismo, fazerem uma contra-feitiçaria de exorcismo, passar para o lado da família e da dependência. Mas será também a morte do feiticeiro, como aquela do devir. Ver-se-á o devir parir apenas um grande cachorro doméstico, como na danação de Miller (“era melhor simular, fazer-se de animal, de cachorro por exemplo, agarrar o osso que jogariam para mim de tempos em tempos”) ou a de Fitzgerald (“tentarei ser um animal tão correto quanto possível, e se você me jogar um osso com bastante carne por cima, talvez serei até capaz de lamber sua mão”). Inverter a fórmula de Fausto: então era isso, a forma do Estudante ambulante? um reles cachorrinho!

Lembranças de um feiticeiro, III. — Não se deve atribuir aos devires-animais uma importância exclusiva. Seriam antes segmentos ocupando uma região mediana. Aquém deles encontramos devires-mulher, devires-criança (talvez o devir-mulher possua sobre todos os outros um particular poder de introdução, e é menos a mulher que é feiticeira e mais a feitiçaria é que passa por esse devir-mulher). Para além deles, ainda, encontramos devires-elementares, celulares, moleculares, e até devires-imperceptíveis. Em direção a que nada a vassoura das feiticeiras os arrastam? E para onde Moby Dick arrasta Ahab tão silenciosamente? Lovecraft faz com que seu herói atravesse estranhos animais, mas enfim penetre nas últimas regiões de um Continuum habitado por ondas inomináveis e partículas inencontráveis. A ficção científica tem toda uma evolução que a faz passar de devires animais, vegetais ou minerais, a devires de bactérias, de vírus, de moléculas e de imperceptíveis16. O conteúdo propriamente musical da música é percorrido por devires-mulher, devires-criança, devires-animal, mas, sob toda espécie de influências que concernem também os instrumentos, ele tende cada vez mais a devir molecular, numa espécie de marulho cósmico onde o inaudível se faz ouvir, o imperceptível aparece como tal: não mais o pássaro cantor, mas a molécula sonora. Se a experimentação de droga marcou todo mundo, até os não-drogados, é por ter mudado as coordenadas perceptivas do espaço-tempo, fazendo-nos entrar num universo de micropercepções onde os devires moleculares vêm substituir os devires animais. Os livros de Castañeda mostram bem essa evolução, ou antes essa involução, onde os afectos de um devir-cachorro, por exemplo, são substituídos por aqueles de um devir-molecular, micropercepções da água, do ar, etc. Aparece um homem cambaleando de uma porta a outra e desaparecendo no ar: “tudo o que eu posso te dizer, é que nós somos fluidos, seres luminosos feitos de fibras”17. Todas as viagens ditas iniciáticas comportam esses limiares e essas portas onde há um devir do próprio devir, e onde muda-se de devir, segundo as “horas” do mundo, os círculos de um inferno ou as etapas de uma viagem que fazem variar as escalas, as formas e os gritos. Dos uivos animais até os vagidos dos elementos e das partículas.
As matilhas, as multiplicidades não param, portanto, de se transformar umas nas outras, de passar umas pelas outras. Os lobisomens, uma vez mortos, transformam-se em vampiros. Não é de se espantar, a tal ponto o devir e a multiplicidade são uma só e mesma coisa. Uma multiplicidade não se define por seus elementos, nem por um centro de unificação ou de compreensão. Ela se define pelo número de suas dimensões; ela não se divide, não perde nem ganha dimensão alguma sem mudar de natureza. Como as variações de suas dimensões lhe são imanentes, dá no mesmo dizer que cada multiplicidade já é composta de termos heterogêneos em simbiose, ou que ela não pára de se transformar em outras multiplicidades de enfiada, segundo seus limiares e suas portas. É assim que, no Homem dos lobos, a matilha dos lobos tornava-se também um enxame de abelhas, e ainda campo de ânus, e coleção de buraquinhos e ulcerações finas (tema do contágio); são também todos esses elementos heterogêneos que compunham “a” multiplicidade de simbiose e de devir. Se imaginamos a posição de um Eu fascinado, é porque a multiplicidade em direção à qual ele se inclina, acaloradamente, é a continuação de uma outra multiplicidade que o trabalha e o distende a partir de dentro. Tanto que o eu é apenas um limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades. Cada multiplicidade é definida por uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas, uma linha contínua de bordas (fibra), de acordo com a qual a multiplicidade muda. E a cada limiar ou porta, um novo pacto? Uma fibra vai de um homem a um animal, de um homem ou de um animal a moléculas, de moléculas a partículas, até o imperceptível. Toda fibra é fibra de Universo. Uma fibra de enfiada de bordas constitui uma linha de fuga ou de desterritorialização. Vê-se que o Anômalo, o Outsider, tem muitas funções: ele não só bordeja cada multiplicidade cuja estabilidade temporária ou local ele determina, com a dimensão máxima provisória; ele não só é a condição da aliança necessária ao devir; como conduz as transformações de devir ou as passagens de multiplicidades cada vez mais longe na linha de fuga. Moby Dick é a Muralha branca que bordeja a matilha; ela é também o Termo da aliança demoníaca; ela é enfim a terrível Linha de pesca, tendo ela própria a extremidade livre, a linha que atravessa o muro e arrasta o capitão, até onde? ao nada…

O erro, do qual é preciso preservar-se, é o de acreditar numa espécie de ordem lógica nessa enfiada, nessas passagens ou transformações. Já é muito postular uma ordem que iria do animal ao vegetal, depois às moléculas, às partículas. Cada multiplicidade é simbiótica e reúne em seu devir animais, vegetais, microorganismos, partículas loucas, toda uma galáxia. Não há tampouco uma ordem lógica pré-formada entre esses heterogêneos, entre os lobos, as abelhas, os ânus e as pequenas cicatrizes do Homem dos lobos. Evidentemente, a feitiçaria não pára de codificar certas transformações de devires. Tomemos um romance cheio de tradições feiticeiras, como o Meneur de loups de Alexandre Dumas: num primeiro pacto, o homem das fronteiras obtém do diabo a realização de seus desejos, com a condição de que uma mecha de seus cabelos torne-se vermelha a cada vez. Estamos na multiplicidade-cabelos, com sua borda. O próprio homem instala-se na borda dos lobos como chefe de matilha. Depois, quando não tem mais um só cabelo humano, o segundo pacto o faz devir-lobo ele próprio, devir sem fim, ao menos em princípio, pois ele só é vulnerável um dia por ano. Entre a multiplicidade-cabelos e a multiplicidade-lobos, sabemos bem que uma ordem de semelhança (vermelha como o pêlo de um lobo) pode sempre ser induzida, mas permanece muito secundária (o lobo de transformação será negro, com um pelo branco). De fato, há uma primeira multiplicidade-cabelos tomada num devir-pêlo vermelho; uma segunda multiplicidade-lobos que toma por sua vez o devir-animal do homem. Limiar e fibra entre os dois, simbiose ou passagem de heterogêneos. É assim que operamos, nós feiticeiros, não segundo uma ordem lógica, mas segundo compatibilidades ou consistências alógicas. A razão disso é simples. É que ninguém, nem mesmo Deus, pode dizer de antemão se duas bordas irão enfileirar-se ou fazer fibra, se tal multiplicidade passará ou não a tal outra, ou se tais elementos heterogêneos entrarão em simbiose, farão uma multiplicidade consistente ou de co-funcionamento, apta à transformação. Ninguém pode dizer por onde passará a linha de fuga: ela se deixará atolar para recair no animal edipiano da família, um reles cachorrinho? ou então cairá num outro perigo, como virar linha de abolição, de aniquilamento, de autodestruição, Ahab, Ahab…? Sabemos demais dos perigos da linha de fuga, e suas ambigüidades. Os riscos estão sempre presentes, e a chance de se safar deles é sempre possível: é em cada caso que se dirá se a linha é consistente, isto é, se os heterogêneos funcionam efetivamente numa multiplicidade de simbiose, se as multiplicidades transformam-se efetivamente em devires de passagem. Que se tome um exemplo tão simples como: x se põe a tocar piano de novo… É um retorno edipiano à infância? E uma maneira de morrer numa espécie de abolição sonora? É uma nova borda, com uma linha ativa que vai provocar outros devires, devires inteiramente diferentes de tornar-se pianista ou de tornar a sê-lo, e que vai induzir uma transformação de todos os agenciamentos precedentes dos quais x era prisioneiro? Uma saída? Um pacto com o diabo? A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente rizoma, ou fazer devir, fazer população no teu deserto. Experimente.

E fácil dizer? Mas se não há ordem lógica pré-formada dos devires ou das multiplicidades, há critérios, e o importante é que esses critérios não venham depois, que se exerçam quando necessário, no momento certo, suficientes para nos guiar por entre os perigos. Se as multiplicidades definem-se e transformam-se pela borda, a qual determina a cada vez o número de suas dimensões, concebemos a possibilidade de estendê-las num mesmo plano onde as bordas se sucedem traçando uma linha quebrada. E só aparentemente, portanto, que um tal plano “reduz” as dimensões; pois ele as recolhe todas à medida que inscrevem-se nele multiplicidades planas, e, no entanto, com dimensões crescentes ou decrescentes. E em termos grandiosos e simplificados que Lovecraft tenta enunciar esta última palavra da feitiçaria: “As Ondas aumentaram sua potência e descobriram para Carter a entidade multiforme da qual seu atual fragmento era apenas uma ínfima parte. Elas lhe ensinaram que cada figura no espaço é apenas o resultado da intersecção, num plano, de alguma figura correspondente e de maior dimensão, assim como um quadrado é a secção de um cubo, e um círculo, a secção de uma esfera. Da mesma maneira que o cubo e a esfera, figuras de três dimensões, são a secção de formas correspondentes com quatro dimensões, que os homens só conhecem através de suas conjecturas ou seus sonhos. Por sua vez, tais figuras com quatro dimensões são a secção de formas de cinco dimensões, e assim por diante, remontando até as alturas inacessíveis e vertiginosas da infinidade arquetípica…” Longe de reduzir a dois o número de dimensões das multiplicidades, o plano de consistência as recorta todas, opera sua intersecção para fazer coexistir outras tantas multiplicidades planas com dimensões quaisquer. O plano de consistência é a intersecção de todas as formas concretas. Assim, todos os devires, como desenhos de feiticeiras, escrevem-se nesse plano de consistência, a última Porta, onde encontram sua saída. Este é o único critério que os impede de atolar, ou de cair no nada. A única questão é: um devir vai até aí? Pode uma multiplicidade achatar assim todas as suas dimensões conservadas, como uma flor que guardaria toda sua vida até em sua secura? Lawrence, em seu devir-tartaruga, passa do dinamismo animal o mais obstinado à pura geometria abstrata das escamas e das “secções”, sem, no entanto, nada perder do dinamismo: ele leva o devir-tartaruga até o plano de consistência18. Tudo se torna imperceptível, tudo é devir-imperceptível no plano de consistência, mas é justamente nele que o imperceptível é visto, ouvido. É o Planômeno ou a Rizosfera, o Criterium (e outros nomes ainda, segundo o crescimento das dimensões). Segundo n dimensões, o chamamos de Hiperesfera, Mecanosfera. É a Figura abstrata, ou melhor, pois ela própria não tem forma, a Máquina abstrata, da qual cada agenciamento concreto é uma multiplicidade, um devir, um segmento, uma vibração. E ela, a secção de todos.
As ondas são as vibrações, as bordas movediças que se inscrevem a cada vez como abstrações no plano de consistência. Máquina abstrata das ondas. Em As ondas, Virgínia Woolf, que soube fazer de toda sua vida e sua obra uma passagem, um devir, toda espécie de devires entre idades, sexos, elementos e reinos, mistura sete personagens, Bernard, Neville, Louis, Jinny, Rhoda, Suzanne e Perceval; mas cada um desses personagens, com seu nome, sua individualidade, designa uma multiplicidade (por exemplo, Bernard e o cardume de peixes); cada um está ao mesmo tempo nessa multiplicidade e na borda, e passa a outras. Perceval é como que o último, envolvendo o maior número de dimensões. Mas ainda não é ele que constitui o plano de consistência. Se Rhoda acredita vê-lo destacando-se do mar, não, não é ele, “quando ele repousa sobre seu joelho o cotovelo de seu braço, é um triângulo, quando ele fica de pé é uma coluna, se ele se debruça é a curva de uma fonte (…) o mar brame atrás dele, ele está para além de nossa espera”. Cada um avança como uma onda, mas, no plano de consistência, é uma só e mesma Onda abstrata, cuja vibração se propaga segundo a linha de fuga ou de desterritorialização que percorre todo o plano (cada capítulo do romance de Virgínia Woolf é precedi do de uma meditação sobre um aspecto das ondas, sobre uma de suas horas, sobre um de seus devires).

Lembranças de um teólogo. — A teologia é muito estrita no seguinte ponto: não há lobisomens, o homem não pode devir animal. É que não há transformação das formas essenciais, essas são inalienáveis e só mantêm entre si relações de analogia. O diabo e a feiticeira, e seu pacto, não são menos reais, pois há a realidade de um movimento local propriamente diabólico. A teologia distingue dois casos que servem de modelo para a Inquisição, o caso dos companheiros de Ulisses e o caso dos companheiros de Diomedes: visão imaginária e sortilégio. Ora o sujeito pensa que se transformou em bicho, porco, boi ou lobo, e os observadores também acreditam nisso; mas há aí um movimento local interno que leva as imagens sensíveis em direção à imaginação e as faz ricochetear sobre os sentidos externos. Ora o demônio “assume” corpos de animais reais, mesmo que tenha que transportar os acidentes e afectos que lhes acontecem a outros corpos aparentes (por exemplo, um gato ou um lobo, assumidos pelo demônio, podem receber feridas que serão exatamente transferidas para um corpo humano19 ). É um modo de dizer que o homem não se torna realmente animal, mas que há no entanto uma realidade demoníaca do devir-ani-mal do homem. Também é certo que o demônio opera transportes locais de toda espécie. O diabo é transportador, ele transporta humores, afectos ou mesmo corpos (a Inquisição não transige quanto a essa potência do diabo: a vassoura da feiticeira, ou “que o diabo te carregue”). Mas esses transportes não ultrapassam nem a barreira das formas essenciais, nem a das substâncias ou sujeitos.
Há ainda um problema totalmente diferente, do ponto de vista das leis da natureza, e que não concerne mais a demonologia, mas a alquimia e sobretudo a física. É aquele das formas acidentais, distintas das formas essenciais e dos sujeitos determinados. Pois as formas acidentais são suscetíveis de mais e de menos: mais ou menos caridoso, e também mais ou menos branco, mais ou menos quente. Um grau de calor é um calor perfeitamente individuado que não se confunde com a substância ou com o sujeito que a recebe. Um grau de calor pode compor-se com um grau de branco, ou com outro grau de calor, para formar uma terceira individualidade única que não se confunde com a do sujeito. O que é a individualidade de um dia, de uma estação ou de um acontecimento? Um dia mais curto ou um dia mais longo não são extensões propriamente ditas, mas graus próprios da extensão como há graus próprios do calor, da cor, etc. Uma forma acidental tem portanto uma “latitude”, constituída por outro tanto de individuações componíveis. Um grau, uma intensidade é um indivíduo, Hecceidade, que se compõe com outros graus, outras intensidades para formar um outro indivíduo. Dirão que essa latitude se explica porque o sujeito participa mais ou menos da forma acidental? Mas esses graus de participação não implicam na própria forma um borboleteamento, uma vibração que não se reduz às propriedades do sujeito? E mais, se intensidades de calor não se compõem por soma, é porque devem ser acrescentados seus respectivos sujeitos, os quais impedem justamente que o calor do conjunto se torne maior. Razão a mais para fazer repartições de intensidade, estabelecer as latitudes “disformementes disformes”, velocidades, lentidões e graus de toda espécie, correspondendo a um corpo ou a um conjunto de corpos tomados como longitude: uma cartografia20. Em suma, entre as formas substanciais e os sujeitos determinados, entre os dois, não há somente todo um exercício de transportes locais demoníacos, mas um jogo natural de hecceidades, graus, intensidades, acontecimentos, acidentes, que compõem individuações, inteiramente diferentes daquelas dos sujeitos bem formados que as recebem.
Lembranças a um espinosista, I. — Criticou-se as formas essenciais ou substanciais de maneiras muito diversas. Mas Espinosa procede radicalmente: chegar a elementos que não têm mais nem forma nem função, que são portanto abstratos nesse sentido, embora sejam perfeitamente reais. Distinguem-se apenas pelo movimento e o repouso, a lentidão e a velocidade. Não são átomos, isto é, elementos finitos ainda dotados de forma. Tampouco são indefinidamente divisíveis. São as últimas partes infinitamente pequenas de um infinito atual, estendido num mesmo plano, de consistência ou de composição. Elas não se definem pelo número, porque andam sempre por infinidades. Mas, segundo o grau de velocidade ou a relação de movimento e de repouso no qual entram, elas pertencem a este ou àquele Indivíduo, que pode ele mesmo ser parte de um outro Indivíduo numa outra relação mais complexa, ao infinito. Há, portanto, infinitos mais ou menos grandes, não de acordo com o número, mas de acordo com a composição da relação onde entram suas partes. Tanto que cada indivíduo é uma multiplicidade infinita, e a Natureza inteira uma multiplicidade de multiplicidades perfeitamente individuada. O plano de consistência da Natureza é como uma imensa Máquina abstrata, no entanto real e individual, cujas peças são os agenciamentos ou os indivíduos diversos que agrupam, cada um, uma infinidade de partículas sob uma infinidade de relações mais ou menos compostas. Há, portanto, unidade de um plano de natureza, que vale tanto para os inanimados, quanto para os animados, para os artificiais e os naturais. Esse plano nada tem a ver com uma forma ou uma figura, nem com um desenho ou uma função. Sua unidade não tem nada a ver com a de um fundamento escondido nas profundezas das coisas, nem de um fim ou de um projeto no espírito de Deus. É um plano de extensão, que é antes como a secção de todas as formas, a máquina de todas as funções, e cujas dimensões, no entanto, crescem com as das multiplicidades ou individualidades que ele recorta. Plano fixo, onde as coisas não se distinguem senão pela velocidade e a lentidão. Plano de imanência ou de univocidade, que se impõe à analogia. O Uno se diz num só e mesmo sentido de todo o múltiplo, o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo o que difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida.

A inextricável discussão Cuvier-Geoffroy Saint-Hilaire. Ambos concordam ao menos para denunciar as semelhanças ou as analogias sensíveis, imaginárias. Mas, em Cuvier, a determinação científica incide sobre as relações dos órgãos entre si, e dos órgãos com suas funções. Cuvier faz portanto a analogia passar ao estágio científico, analogia de proporcionalidade. A unidade do plano, segundo ele, só pode ser uma unidade de analogia, portanto transcendente, que só se realiza fragmentando-se em ramificações distintas, segundo composições heterogêneas, intransponíveis, irredutíveis. Baër acrescentará: segundo tipos de desenvolvimento e de diferenciação não comunicantes. O plano é um plano de organização escondida, estrutura ou gênese. Totalmente outro é o ponto de vista de Geoffroy, porque ultrapassa os órgãos e as funções em direção a elementos abstratos que ele chama de “anatômicos”, ou mesmo em direção a partículas, puros materiais que vão entrar em combinações diversas, formar tal órgão e tomar tal função, de acordo com seu grau de velocidade e lentidão. É a velocidade e a lentidão, o movimento e o repouso, a morosidade e a rapidez que subordinarão não só as formas de estrutura, mas os tipos de desenvolvimento. Essa direção se reencontrará ulteriormente, num sentindo evolucionista, nos fenômenos de taquigênese de Perrier, ou nas taxas de crescimentos diferenciais e na alometria: as espécies como entidades cinemáticas, precoces ou retardadas. (Mesmo a questão da fecundidade é menos de forma e de função que de velocidade; os cromossomas paternos virão cedo o bastante para serem incorporados aos núcleos?) Em todo caso, puro plano de imanência, de univocidade, de composição, onde tudo é dado, onde dançam elementos e materiais não formados que só se distinguem pela velocidade, e que entram nesse ou naquele agenciamento individuado de acordo com suas conexões, suas relações de movimentos. Plano fixo da vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita. Um só Animal abstrato para todos os agenciamentos que o efetuam. Um só e mesmo plano de consistência ou de composição para o cefalópode e o vertebrado, pois bastaria o vertebrado dobrar-se em dois suficientemente rápido para soldar os elementos das metades de suas costas, aproximar sua bacia de sua nuca, e juntar seus membros a uma das extremidades do corpo, tornando-se assim Polvo ou Sépia, tal “um saltimbanco que joga seus ombros e sua cabeça para trás para andar sobre sua cabeça e suas mãos”21.
Plicatura. A questão não é mais absolutamente a dos órgãos e das funções, e de um Plano transcendente que não poderia presidir à sua organização senão sob relações analógicas e tipos de desenvolvimento divergentes. A questão não é a da organização, mas da composição; não do desenvolvimento ou da diferenciação, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentidão. A questão é a dos elementos e partículas, que chegarão ou não rápido o bastante para operar uma passagem, um devir ou um salto sobre um mesmo plano de imanência pura. E se, com efeito, há saltos, fracassos entre agenciamentos, não é em virtude de sua irredutibilidade de natureza, mas porque há sempre elementos que não chegam a tempo, ou que chegam quando tudo acabou, tanto que é preciso passar por neblinas, ou vazios, avanços e atrasos que fazem parte eles próprios do plano de imanência. Até os fracassos fazem parte do plano. É preciso tentar pensar esse mundo onde o mesmo plano fixo, que chamaremos de imobilidade ou de movimento absolutos, encontra-se percorrido por elementos informais de velocidade relativa, entrando neste ou naquele agenciamento individuado, de acordo com seus graus de velocidade e de lentidão. Plano de consistência povoado por uma matéria anônima, parcelas infinitas de uma matéria impalpável que entram em conexões variáveis.

As crianças são espinosistas. Quando o pequeno Hans fala de um “faz-pipi”, não é um órgão nem uma função orgânica; é antes um material, isto é, um conjunto de elementos que varia de acordo com suas conexões, suas relações de movimento e repouso, os diversos agenciamentos individuados onde ele entra. Uma menina tem um faz-pipi? O menino diz sim, e não é por analogia, nem para conjurar o medo da castração. As meninas têm evidentemente um faz-pipi, pois elas fazem pipi efetivamente: funcionamento maquínico mais do que função orgânica. Simplesmente, o mesmo material não tem as mesmas conexões, as mesmas relações de movimento e repouso, não entra no mesmo agenciamento no menino e na menina (uma menina não faz pipi de pé e nem para longe). Uma locomotiva tem um faz-pipi? Sim, num outro agenciamento maquínico ainda. As cadeiras não o têm: mas é porque os elementos da cadeira não puderam tomar esse material em suas relações, ou decompuseram a relação o bastante para que ela desse uma coisa totalmente diferente, um bastão de cadeira por exemplo. Pudemos notar que um órgão, para as crianças, sofria “mil vicissitudes”, era “mal localizável, mal identificável, ora um osso, um trequinho, um excremento, o bebê, uma mão, o coração de papai…”. Mas não é absolutamente porque o órgão é vivido como objeto parcial. É porque o órgão será exatamente aquilo que seu elementos farão dele de acordo com sua relação de movimento e repouso, e a maneira como essa relação compõe-se ou decompõe-se com a dos elementos vizinhos. Não se trata de animismo, não mais do que de mecanismo, mas de um maquinismo universal: um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos. As perguntas das crianças são mal compreendidas enquanto não se enxerga nelas perguntas-máquinas; donde a importância dos artigos indefinidos nessas questões (um ventre, uma criança, um cavalo, uma cadeira, “como é que uma pessoa é feita?”). O espinosismo é o devir-criança do filósofo. Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que define o agenciamento individuado desse corpo.

Lembranças de um espinosista, II. — Há um outro aspecto em Espinosa. A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que agrupa uma infinidade de partes, corresponde um grau de potência. Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes. Os afectos são devires. Espinosa pergunta: o que pode um corpo? Chama-se latitude de um corpo os afectos de que ele é capaz segundo tal grau de potência, ou melhor, segundo os limites desse grau. A latitude é feita de partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude, de partes extensivas sob uma relação. Assim como evitávamos definir um corpo por seus órgãos e suas funções, evitamos defini-lo por características Espécie ou Gênero: procuramos enumerar seus afectos. Chamamos “etologia” um tal estudo, e é nesse sentido que Espinosa escreve uma verdadeira Ética. Há mais diferenças entre um cavalo de corrida e um cavalo de lavoura do que entre um cavalo de lavoura e um boi. Quando Von Uexküll define os mundos animais, ele procura os afectos ativos e passivos de que o bicho é capaz, num agenciamento individuado do qual ele faz parte. Por exemplo, o Carrapato, atraído pela luz, ergue-se até a ponta de um galho; sensível ao odor de um mamífero, deixa-se cair quando passa um mamífero sob o galho; esconde-se sob sua pele, num lugar o menos peludo possível. Três afectos e é tudo; durante o resto do tempo o carrapato dorme, às vezes por anos, indiferente a tudo o que se passa na floresta imensa. Seu grau de potência está efetivamente compreendido entre dois limites, o limite ótimo de seu festim depois do qual ele morre, o limite péssimo de sua espera durante a qual ele jejua. Dirão que os três afectos do carrapato já supõem características específicas e genéricas, órgãos e funções, patas e trompas. É verdade do ponto de vista da fisiologia; mas não do ponto de vista da Ética onde as características orgânicas decorrem ao contrário da longitude e de suas relações, da latitude e de seus graus. Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são seus afectos, como eles podem ou não compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente.

De novo recorreremos às crianças. Nota-se como elas falam dos animais e comovem-se com isso. Elas fazem uma lista de afectos. O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo. Ele não é o membro de uma espécie, mas um elemento ou um indivíduo num agenciamento maquínico: cavalo de tração-diligência-rua. Ele é definido por uma lista de afectos, ativos e passivos, em função desse agenciamento individuado do qual ele faz parte: ter os olhos tapados por viseiras, ter freio e rédeas, ser orgulhoso, ter um faz-pipi grande, puxar cargas pesadas, ser chicoteado, cair, espernear, morder…, etc. Esses afectos circulam e transformam-se no seio do agenciamento: o que “pode” um cavalo. Eles têm efetivamente um limite ótimo no topo da potência-cavalo, mas também um limiar péssimo: um cavalo cai na rua! e não pode reerguer-se sob a carga demasiadamente pesada e as chicotadas demasiadamente duras; um cavalo vai morrer! — espetáculo outrora ordinário (Nietzsche, Dostoievski, Nijinski o lamentam). Então, o que é o devir-cavalo do pequeno Hans? Também Hans está tomado num agenciamento, a cama de mamãe, o elemento paterno, a casa, o bar em frente, o entreposto vizinho, a rua, o direito à rua, a conquista desse direito, o orgulho, mas também os riscos dessa conquista, a queda, a vergonha… Não são fantasmas ou devaneios subjetivos: não se trata de imitar o cavalo, de se “fazer” de cavalo, de identificar-se com ele, nem mesmo de experimentar sentimentos de piedade ou simpatia. Não se trata tampouco de analogia objetiva entre os agenciamentos. Trata-se de saber se o pequeno Hans pode dar a seus próprios elementos, relações de movimento e de repouso, afectos que o fazem devir cavalo, independentemente das formas e dos sujeitos. Há um agenciamento ainda desconhecido que não seria nem o de Hans nem o do cavalo, mas o do devir-cavalo de Hans, e onde o cavalo por exemplo mostraria os dentes, mesmo que Hans tivesse que mostrar outra coisa, seus pés, suas pernas, seu faz-pipi, qualquer coisa? E em que avançaria o problema de Hans, em que se abriria uma saída antes entupida? Quando Hofmannsthal contempla a agonia de um rato, é nele que o animal “mostra os dentes ao destino monstruoso”. E não é um sentimento de piedade, precisa ele, menos ainda uma identificação; é uma composição de velocidades e de afectos entre indivíduos inteiramente diferentes, simbiose, e que faz com que o rato se torne um pensamento no homem, um pensamento febril, ao mesmo tempo que o homem se torna rato, rato que range os dentes e agoniza. O rato e o homem não são absolutamente a mesma coisa, mas o Ser se diz dos dois num só e mesmo sentido, numa língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos. Participação anti-natureza, mas justamente o plano de composição, o plano de Natureza, é para tais participações que não param de fazer e desfazer seus agenciamentos empregando todos os artifícios.
Não é nem uma analogia, nem uma imaginação, mas uma composição de velocidades e afectos nesse plano de consistência: um plano, um programa ou antes um diagrama, um problema, uma questão-máquina. Num texto curioso, Vladimir Slepian coloca o “problema”: tenho fome, fome o tempo todo, um homem não deve ter fome; tenho, então, que me tornar cachorro, mas como? Não se trata nem de imitar o cachorro, nem de uma analogia de relações. E preciso que eu consiga dar às partes de meu corpo relações de velocidade e lentidão que o façam tornar-se cachorro num agenciamento original que não procede por semelhança ou por analogia. Pois não posso tornar-me cachorro sem que o cachorro não se torne ele próprio outra coisa. Para resolver o problema, Slepian tem a idéia de utilizar sapatos, o artifício dos sapatos. Se minhas mãos estão calçadas, seus elementos entrarão numa nova relação donde decorrem o afecto ou o devir procurados. Mas como eu poderia amarrar o sapato em minha segunda mão, já estando a primeira tomada? Com minha boca que, por sua vez, encontra-se investida no agenciamento e que torna-se cara de cachorro à medida que a cara de cachorro serve agora para amarrar o sapato. A cada etapa do problema, é preciso não comparar órgãos, mas colocar elementos ou materiais numa relação que arranca o órgão à sua especificidade para fazê-lo devir “com” o outro. Mas eis que o devir, que já tomou os pés, as mãos, a boca, irá fracassar assim mesmo. Ele fracassa no rabo. Teria sido preciso investir o rabo, forçá-lo a depreender elementos comuns ao órgão sexual e ao apêndice caudal, para que o primeiro fosse tomado num devir-cachorro do homem, ao mesmo tempo que o segundo o fosse num devir do cachorro, num outro devir que faria parte do agenciamento. O plano fracassa, Slepian não o alcança nesse ponto. O rabo fica de uma parte e de outra, órgão do homem e apêndice do cachorro, que não compõem suas relações num novo agenciamento. Então é aí que surge a deriva psicanalítica, e que voltam todos os clichês sobre o rabo, a mãe, a lembrança de infância na qual a mãe enfiava agulhas, todas as figuras concretas e as analogias simbólicas22. Mas Slepian, nesse belo texto, o quer assim. Pois há uma maneira pela qual o fracasso do plano faz parte do próprio plano: o plano é infinito, você pode começá-lo de mil maneiras, sempre encontrará algo que chega tarde demais ou cedo demais, e que o força a recompor todas as tuas relações de velocidade e de lentidão, todos os teus afectos, e a remanejar o conjunto do agenciamento. Empreendimento infinito. Mas há também uma outra maneira pela qual o plano fracassa; dessa vez, porque um outro plano volta à força, e quebra o devir-animal, dobrando o animal sobre o animal e o homem sobre o homem, reconhecendo apenas semelhanças entre elementos e analogias entre relações. Slepian afronta os dois riscos.
Queremos dizer uma coisa simples sobre a psicanálise: ela encontrou freqüentemente, e desde o começo, a questão dos devires-animais do homem. Na criança, que não pára de atravessar tais devires. No fetichismo e sobretudo no masoquismo, que não param de enfrentar este problema. O que se pode dizer, no mínimo, é que os psicanalistas não entenderam, Jung inclusive, ou que quiseram não compreender. Eles massacraram o devir-animal, no homem e na criança. Não viram nada. No animal, vêem um representante das pulsões ou uma representação dos pais. Não vêem a realidade de um devir-animal, como ele é o afecto em si mesmo, a pulsão em pessoa, e não representa nada. Não há outras pulsões que não os próprios agenciamentos. Em dois textos clássicos, Freud só encontra o pai no devir-cavalo de Hans, e Ferenczi no devir-galo de Arpad. As viseiras do cavalo é o binóculo do pai, o preto em volta da boca, seu bigode, os coices são o “fazer amor” dos pais. Nenhuma palavra sobre a relação de Hans com a rua, sobre a maneira como a rua lhe foi proibida, o que é para uma criança o espetáculo “um cavalo é orgulhoso, um cavalo cegado puxa, um cavalo cai, um cavalo é chicoteado…” A psicanálise não tem o sentimento das participações anti-natureza, nem dos agenciamentos que uma criança pode montar para resolver um problema cujas saídas lhes estão sendo barradas: um plano, não um fantasma. Da mesma forma, diriam menos besteiras sobre a dor, a humilhação e a angústia no masoquismo, se vissem que são devires-animais que o conduzem e não o contrário. Aparelhos, ferramentas, apetrechos intervém sempre, sempre artifícios e coações para a Natureza maior. É que é preciso anular os órgãos, fechá-los de alguma forma, para que seus elementos liberados possam entrar em novas relações de onde decorrem o devir-animal e a circulação dos afectos no seio do agenciamento maquínico. Assim, vimos em outro lugar, a máscara, a rédea, o freio, o guarda-pênis em Equus eroticus: o agenciamento do devir-cavalo é tal que, paradoxalmente, o homem irá domar suas próprias forças “instintivas”, enquanto que o animal lhe transmite forças “adquiridas”. Reversão, participação anti-natureza. E as botas da mulher-dominadora têm por função anular a perna como órgão humano e colocar os elementos da perna numa relação conforme ao conjunto do agenciamento: “dessa maneira, não serão mais as pernas de mulheres que me farão efeito…”²³ . Mas, para quebrar um devir-animal, basta justamente extrair-lhe um segmento, abstrair-lhe um momento, não considerar as velocidades e as lentidões internas, parar a circulação dos afectos. Então não há mais do que semelhanças imaginárias entre termos, ou analogias simbólicas entre relações. Tal segmento remeterá ao pai, tal relação de movimento e de repouso à cena primitiva, etc. Sem dúvida, é preciso reconhecer que a psicanálise não basta para provocar esta quebra. Ela apenas desenvolve um risco compreendido no devir. Sempre o risco de voltar a se “fazer” de animal, o animal doméstico edipiano, Miller fazendo Au-Au e reivindicando um osso, Fitzgerald lambendo sua mão, Slepian voltando para a mãe, ou o velhote se fazendo de cavalo ou de cachorro num cartão postal erótico de 1900 (e se “fazer” de animal selvagem não seria melhor). Os devires-animais não param de atravessar esses perigos.
Lembranças de uma hecceidade. — Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como uma substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce. No plano de consistência, um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelo conjunto dos elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão (longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência (latitude). Somente afectos e movimentos locais, velocidades diferenciais. Coube a Espinosa ter destacado essas duas dimensões do Corpo e de ter definido o plano de Natureza como longitude e latitude puras. Latitude e longitude são os dois elementos de uma cartografia.

Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade 24 . Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado.
Quando a demonologia expõe a arte diabólica dos movimentos locais e dos transportes de afectos, ela marca simultaneamente a importância das chuvas, granizos, ventos, atmosferas pestilentas ou poluídas com suas partículas deletérias, favoráveis a esses transportes. Os contos devem comportar hecceidades que não são simples arranjos, mas individuações concretas valendo por si mesmas e comandando a metamorfose das coisas e dos sujeitos. Nos tipos de civilização, o Oriente tem muito mais individuações por hecceidade do que por subjetividade e substancialidade: assim o Hai-ku deve obrigatoriamente comportar indicadores como linhas flutuantes constituindo um indivíduo completo. Em Charlotte Brontë, tudo é em termos de vento, as coisas, as pessoas, os rostos, os amores, as palavras. O “cinco horas da tarde” de Lorca, quando o amor cai e o fascismo se levanta. Que terrível cinco horas da tarde! Dizemos: que história, que calor, que vida!, para designar uma individuação muito particular. As horas do dia em Lawrence, em Faulkner. Um grau de calor, uma intensidade de branco são perfeitas individualidades; e um grau de calor pode compor-se em latitude com um outro grau para formar um novo indivíduo, como num corpo que tem frio aqui e calor ali de acordo com sua longitude. Sorvete flambado com suspiro. Um grau de calor pode compor-se com uma intensidade de branco, como em certas atmosferas brancas de um verão quente. Não é absolutamente uma individualidade pelo instante, que se oporia à individualidade das permanências ou das durações. A efeméride não tem menos tempo do que um calendário perpétuo, embora não seja o mesmo tempo. Um animal não vive necessariamente mais do que um dia ou uma hora; inversamente, um grupo de anos pode ser tão longo quanto o sujeito ou o objeto mais duradouro. Pode-se conceber um tempo abstrato igual entre as hecceidades e os sujeitos ou as coisas. Entre as lentidões extremas e as velocidades vertiginosas da geologia ou da astronomia, Michel Tournier destaca a meteorologia, onde os meteoros vivem no nosso andamento: “Uma nuvem forma-se no céu como uma imagem em meu cérebro, o vento sopra como respiro, um arco-íris liga dois horizontes, o tempo que precisa meu coração para se reconciliar com a vida, o verão escoa como as férias passam”. Mas é por acaso que essa certeza, no romance de Tournier, só pode vir a um herói gemelar, deformado e dessubjetivado, tendo adquirido uma espécie de ubiqüidade25?
Mesmo quando os tempos são abstratamente iguais, a individuação de uma vida não é a mesma que a individuação do sujeito que a leva ou a suporta. E não é o mesmo Plano: plano de consistência ou de composição das hecceidades num caso, que só conhece velocidades e afectos; plano inteiramente outro das formas, das substâncias e dos sujeitos, no outro caso. E não é o mesmo tempo, a mesma temporalidade. Aion, que é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo não pára de dividir o que acontece num já-aí e um ainda-não-aí, um tarde-de-mais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo tempo vai se passar e acaba de se passar. E Cronos, ao contrário, o tempo da medida, que fixa as coisas e as pessoas, desenvolve uma forma e determina um sujeito. Boulez distingue na música o tempo e o não-tempo, o “tempo pulsado” de uma música formal e funcional fundada em valores, o “tempo não pulsado” para uma música flutuante, flutuante e maquínica, que só tem velocidades ou diferenças de dinâmica26. Em suma, a diferença não passa absolutamente entre o efêmero e o duradouro, nem mesmo entre o regular e o irregular, mas entre dois modos de individuação, dois modos de temporalidade.

Com efeito, seria preciso evitar uma conciliação simples demais, como se houvesse de um lado sujeitos formados, do tipo coisas ou pessoas, e de outro lado, coordenadas espaço-temporais do tipo hecceidades. Pois você não dará nada às hecceidades sem perceber que você é uma hecceidade, e que não é nada além disso. Quando o rosto torna-se uma hecceidade: “era uma curiosa mistura, o rosto de alguém que simplesmente encontrou o meio de se ajeitar com o momento presente, com o tempo que está fazendo, com essas pessoas que estão aí”27.
Você é longitude e latitude, um conjunto de velocidades e lentidões entre partículas não formadas, um conjunto de afectos não subjetivados. Você tem a individuação de um dia, de uma estação, de um ano, de uma vida (independentemente da duração); de um clima, de um vento, de uma neblina, de um enxame, de uma matilha (independentemente da regularidade). Ou pelo menos você pode tê-la, pode consegui-la. Um enxame de gafanhotos trazido pelo vento às cinco horas da tarde; um vampiro que sai na noite, um lobisomem na lua cheia. Não se acreditará que a hecceidade consista simplesmente num cenário ou num fundo que situaria os sujeitos, nem em apêndices que segurariam as coisas e as pessoas no chão. É todo o agenciamento em seu conjunto individuado que é uma hecceidade; é ele que se define por uma longitude e uma latitude, por velocidades e afectos, independentemente das formas e dos sujeitos que pertencem tão somente a outro plano. É o próprio lobo, ou o cavalo, ou a criança que param de ser sujeitos para se tornarem acontecimentos em agenciamentos que não se separam de uma hora, de uma estação, de uma atmosfera, de um ar, de uma vida. A rua compõe-se com o cavalo, como o rato que agoniza compõe-se com o ar, e o bicho e a lua cheia se compõem juntos. No máximo, se distinguira hecceidades de agenciamentos (um corpo que só é considerado como longitude e latitude), e hecceidades de inter-agenciamentos, que marcam igualmente potencialidades de devir no seio de cada agenciamento (o meio de cruzamento das longitudes e latitudes). Mas os dois são estritamente inseparáveis. O clima, o vento, a estação, a hora não são de uma natureza diferente das coisas, dos bichos ou das pessoas que os povoam, os seguem, dormem neles ou neles acordam. E é de uma só vez que é preciso ler: o bicho-caça-às-cinco-horas. Devir-tarde, devir-noite de um animal, núpcias de sangue. Cinco horas é este bicho! Este bicho é este lugar! “O cachorro magro corre na rua, este cachorro magro é a rua”, grita Virgínia Woolf. É preciso sentir assim. As relações, as determinações espaço-temporais não são predicados da coisa, mas dimensões de multiplicidades. A rua faz parte tanto do agenciamento cavalo de diligência, quanto do agenciamento Hans cujo devir-cavalo ela abre. Somos todos cinco horas da tarde, ou uma outra hora, e antes duas horas ao mesmo tempo, a ótima e a péssima, meio-dia-meia-noite, mas distribuídas de maneira variável. O plano de consistência só contém hecceidades segundo linhas que se entrecruzam. As formas e os sujeitos não são desse mundo-aí. O passeio de Virgínia Woolf na multidão, entre os táxis, mas justamente o passeio é uma hecceidade: nunca mais Mrs. Dalloway dirá “eu sou isto ou aquilo, ele é isto, ele é aquilo”. E “ela sentia-se muito jovem, ao mesmo tempo velha de um jeito que não dava para acreditar”, rápida e lenta, já aí e ainda não, “ela penetrava como uma lâmina através de todas as coisas, ao mesmo tempo ela estava fora e olhava, (…) lhe parecia sempre que era muito, muito perigoso viver, mesmo um só dia”. Hecceidade, neblina, luz crua. Uma hecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma. E não é a mesma linguagem, pelo menos o mesmo uso da linguagem. Pois se o plano de consistência só tem por conteúdo hecceidades, ele tem também toda uma semiótica particular que lhe serve de expressão. Plano de conteúdo e plano de expressão. Essa semiótica é sobretudo composta de nomes próprios, de verbos no infinitivo e de artigos ou de pronomes indefinidos. Artigo indefinido + nome próprio + verbo infinitivo constituem com efeito a cadeia de expressão de base, correlativa dos conteúdos minimamente formalizados, do ponto de vista de uma semiótica que se liberou das significâncias formais como das subjetivações pessoais. Em primeiro lugar, o verbo no infinitivo não é absolutamente indeterminado quanto ao tempo, ele exprime o tempo não pulsado flutuante próprio ao Aion, isto é, o tempo do acontecimento puro ou do devir, enunciando velocidades e lentidões relativas, independentemente dos valores cronológicos ou cronométricos que o tempo toma nos outros modos. Assim, estamos no direito de opor o infinitivo como modo e tempo do devir ao conjunto dos outros modos e tempos que remetem a Cronos, formando as pulsações ou os valores do ser (o verbo “ser” é precisamente o único que não tem infinitivo, ou melhor, cujo infinitivo é apenas uma expressão vazia indeterminada, tomada abstratamente para designar o conjunto dos modos e tempos definidos28). Em segundo lugar, o nome próprio não é absolutamente indicador de um sujeito: portanto, parece-nos que é perguntar em vão se sua operação assemelha-se ou não à nominação de uma espécie, dependendo de o sujeito ser considerado de natureza distinta da Forma que o classifica, ou apenas como o ato último dessa Forma, enquanto limite da classificação29.
Com efeito, se o nome próprio não indica um sujeito, não é tampouco em função de uma forma ou de uma espécie que um nome pode tomar um valor de nome próprio. O nome próprio designa antes algo que é da ordem do acontecimento, do devir ou da hecceidade. São os militares e os meteorologistas que têm os segredos dos nomes próprios, quando eles os dão a uma operação estratégica, ou a um tufão. O nome próprio não é o sujeito de um tempo, mas o agente de um infinitivo. Ele marca uma longitude e uma latitude. Se o Carrapato, o Lobo, o Cavalo, etc., são verdadeiros nomes próprios, não é em razão dos denominadores genéricos e específicos que os caracterizam, mas das velocidades que os compõem e dos afectos que os preenchem: o acontecimento que eles são para si mesmos e nos agenciamentos, devir-cavalo do pequeno Hans, devir-lobo do homem, devir-carrapato do Estóico (outros nomes próprios).

Em terceiro lugar, o artigo e o pronome indefinidos não são indeterminados, não mais do que o verbo infinitivo. Ou melhor, só lhes falta determinação à medida que os aplicamos a uma forma ela própria indeterminada, ou a um sujeito determinável. Em compensação, nada lhes falta quando eles introduzem hecceidades, acontecimentos cuja individuação não passa por uma forma e não se faz por um sujeito. Então o indefinido se conjuga com o máximo de determinação: era uma vez, bate-se numa criança, um cavalo cai… É que os elementos postos em jogo encontram aqui sua individuação no agenciamento do qual eles fazem parte, independentemente da forma de seu conceito e da subjetividade de sua pessoa. Notamos muitas vezes a que ponto as crianças manejam o indefinido não como um indeterminado, mas, ao contrário, como um individuante em um coletivo. É por isso que nos espantamos diante dos esforços da psicanálise, que quer a todo preço que, atrás dos indefinidos, haja um definido escondido, um possessivo, um pessoal: quando a criança diz “um ventre”, “um cavalo”, “como as pessoas crescem?”, “bate-se numa criança”, o psicanalista ouve “meu ventre”, “o pai”, “ficarei grande como meu papai?”. O psicanalista pergunta: quem está sendo batido, e por quem30? Mas a própria lingüística não está imune ao mesmo preconceito, dado que ela é inseparável de uma personologia; e não só ao artigo e ao pronome indefinidos, mas também à terceira pessoa do pronome pessoal, lhe parece faltar determinação de subjetividade, própria às duas primeiras pessoas, e que seria como que a condição de toda enunciação31.
Pensamos, ao contrário, que o indefinido da terceira pessoa IL, ILS, em francês, não implica qualquer indeterminação desse ponto de vista, e remete o enunciado não mais a um sujeito de enunciação, mas a um agenciamento coletivo como condição. Blanchot tem razão em dizer que o ON (se) e o IL (em francês) — on meurt (morre-se), il est malheureux (é triste) — não tomam absolutamente o lugar do sujeito, mas destituem todo sujeito em proveito de um agenciamento do tipo hecceidade, que abriga ou libera o acontecimento naquilo que ele tem de não formado, e de não efetuável por pessoas (“algo lhes acontece que eles não podem restituir a não ser destituindo-se de seu poder de dizer eu”32). O IL não representa um sujeito, mas diagramatiza um agenciamento. Ele não sobrecodifica os enunciados, não os transcende como as duas primeiras pessoas, mas, ao contrário, os impede de cair sob a tirania das constelações significantes ou subjetivas, sob o regime das redundâncias vazias. As cadeias de expressão que ele articula são aquelas cujos conteúdos podem ser agenciados em função de um máximo de ocorrências e devires. “Eles chegam como o destino… de onde eles vêm, como puderam penetrar até aqui…?”. // ou on (se), artigo indefinido, nome próprio, verbo infinitivo: UM HANS DEVIR CAVALO, UMA MATILHA CHAMADA LOBO OLHAR ELE, MORRE-SE, VESPA ENCONTRAR ORQUÍDEA, ELES CHEGAM, HUNOS. Anúncios, máquinas telegráficas no plano de consistência (de novo aí, é de se pensar nos procedimentos da poesia chinesa e nas regras de tradução que propõem os melhores comentadores33).
Lembranças de um planejador. — Talvez haja dois planos, ou duas maneiras de conceber o plano. O plano pode ser um princípio oculto, que dá a ver aquilo que se vê, a ouvir aquilo que se ouve…, etc., que faz a cada instante que o dado seja dado, sob tal estado, a tal momento. Mas ele próprio, o plano, não é dado. Ele é oculto por natureza. Só se pode inferi-lo, induzi-lo, concluí-lo a partir daquilo que ele dá (simultaneamente ou sucessivamente, em sincronia ou diacronia). Um tal plano, com efeito, é tanto de organização quanto de desenvolvimento: ele é estrutural ou genético, e os dois ao mesmo tempo, estrutura e gênese, plano estrutural das organizações formadas com seus desenvolvimentos, plano genético dos desenvolvimentos evolutivos com suas organizações. São apenas matizes nessa primeira concepção do plano. Atribuir importância demasiada a esses matizes impediria que captássemos algo de mais importante. É que o plano, assim concebido ou assim feito, concerne de todo modo o desenvolvimento das formas e a formação dos sujeitos. Uma estrutura oculta necessária às formas, um significante secreto necessário aos sujeitos. Sendo assim, é forçoso que o próprio plano não seja dado. Ele só existe, com efeito, numa dimensão suplementar àquilo que ele dá (n + 1). Nesse sentido, é um plano teleológico, um desenho, um princípio mental. E um plano de transcendência. É um plano de analogia, seja porque assinala o termo eminente de um desenvolvimento, seja porque estabelece as relações proporcionais da estrutura. Pode estar no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da linguagem: ele é sempre concluído de seus próprios efeitos. E sempre inferido. Mesmo que o digamos imanente, ele só o é por ausência, analogicamente (metaforicamente, metonimicamente, etc.). A árvore está dada no germe, mas em função de um plano que não é dado. Assim como na música, o princípio de organização ou de desenvolvimento não aparece por si mesmo em relação direta com aquilo que se desenvolve ou se organiza: há um princípio composicional transcendente que não é sonoro, que não é “audível” por si mesmo ou para si mesmo. Isto permite todas as interpretações possíveis. As formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e suas formações remetem a um plano que opera como unidade transcendente ou princípio oculto. Poderemos sempre expor o plano, mas como uma parte à parte, um não-dado naquilo que ele dá. Não é assim que mesmo Balzac, e até Proust, expõem o plano de organização ou de desenvolvimento de sua obra, como numa metalinguagem? Mas também Stockhausen não precisa expor a estrutura de suas formas sonoras como que “ao lado” delas, na falta de fazer ouvi-la? Plano de vida, plano de música, plano de escrita, é igual: um plano que não pode ser dado enquanto tal, que só pode ser inferido, em função das formas que desenvolve e dos sujeitos que forma, pois ele é para essas formas e esses sujeitos.

E depois há todo um outro plano, ou toda uma outra concepção do plano. Aqui não há mais absolutamente formas e desenvolvimentos de formas; nem sujeitos e formações de sujeitos. Não há nem estrutura nem gênese. Há apenas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre elementos não formados, ao menos relativamente não formados, moléculas e partículas de toda espécie. Há somente hecceidades, afectos, individuações sem sujeito, que constituem agenciamentos coletivos. Nada se desenvolve, mas coisas acontecem com atraso ou adiantadas, e formam esse ou aquele agenciamento de acordo com suas composições de velocidade. Nada se subjetiva, mas hecceidades formam-se conforme as composições de potências ou de afectos não subjetivados. A este plano, que só conhece longitudes e latitudes, velocidades e hecceidades, damos o nome de plano de consistência ou de composição (por oposição ao plano de organização e de desenvolvimento). E necessariamente um plano de imanência e de univocidade. Nós o chamamos, portanto, plano de Natureza, embora a natureza não tenha nada a ver com isso, pois esse plano não faz diferença alguma entre o natural e o artificial. Por mais que cresça em dimensões, ele jamais tem uma dimensão suplementar àquilo que se passa nele. Por isso mesmo é natural e imanente. É como para o princípio de contradição: podemos igualmente chamá-lo de não-contradição. O plano de consistência poderia ser nomeado de não-consistência. É um plano geométrico, que não remete mais a um desenho mental, mas a um desenho abstrato. E um plano cujas dimensões não param de crescer com aquilo que se passa, sem nada perder de sua planitude. E, portanto, um plano de proliferação, de povoamento, de contágio; mas essa proliferação de materiais nada tem a ver com uma evolução, com o desenvolvimento de uma forma ou a filiação de formas. É menos ainda uma regressão que remontaria a um princípio. É, ao contrário, uma involução, onde a forma não pára de ser dissolvida para liberar tempos e velocidades. É um plano fixo, plano fixo sonoro, visual ou escriturai, etc. Fixo não quer dizer aqui imóvel: é o estado absoluto do movimento tanto quanto do repouso no qual se desenha todas as velocidades e lentidões relativas e nada além delas. Certos músicos modernos opõem ao plano transcendente de organização, que se supõe ter dominado toda a música clássica ocidental, um plano sonoro imanente, sempre dado com aquilo que ele dá, que faz perceber o imperceptível, e não abriga mais do que velocidades e lentidões diferenciais numa espécie de marulho molecular: é preciso que a obra de arte marque os segundos, os décimos, os centésimos de segundo34.
Ou se trata antes de uma liberação do tempo, Aion, tempo não pulsado para uma música flutuante, como diz Boulez, música eletrônica onde as formas cedem lugar a puras modificações de velocidade. Foi sem dúvida John Cage o primeiro a desenvolver mais perfeitamente esse plano fixo sonoro que afirma um processo contra qualquer estrutura e gênese, um tempo flutuante contra o tempo pulsado ou o tempo, uma experimentação contra toda interpretação, e onde o silêncio como repouso sonoro marca igualmente o estado absoluto do movimento. Diríamos o mesmo do plano fixo visual: o plano fixo de cinema é efetivamente levado por Godard, por exemplo, a esse estado onde as formas se dissolvem para deixarem ver tão-somente minúsculas variações de velocidade entre movimentos compostos. Nathalie Sarraute propõe por sua vez uma clara distinção de dois planos de escrita: um plano transcendente que organiza e desenvolve formas (gêneros, temas, motivos), que consigna e faz evoluir sujeitos (personagens, temperamentos, sentimentos); e um plano totalmente distinto, que libera as partículas de uma matéria anônima, faz com que elas se comuniquem através do “envoltório” das formas e dos sujeitos, e só retém entre essas partículas relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, de afectos flutuantes, de tal modo que o próprio plano é percebido ao mesmo tempo que ele nos faz perceber o imperceptível (microplano, plano molecular35). Com efeito, do ponto de vista de uma abstração bem fundada, podemos fazer como se os dois planos, as duas concepções do plano, se opusessem claramente e absolutamente. Desse ponto de vista, dir-se-á: você vê bem a diferença entre os dois tipos de proposições seguintes: 1) formas desenvolvem-se, sujeitos formam-se, em função de um plano que só pode ser inferido (plano de organização-desenvolvimento); 2) só há velocidades e lentidões entre elementos não formados, e afectos entre potências não subjetivadas, em função de um plano que é necessariamente dado ao mesmo tempo que aquilo que ele dá (plano de consistência ou de composição)36.
Tomemos três casos maiores da literatura alemã no século XIX, Hölderlin, Kleist e Nietzsche. — A extraordinária composição de Hypérion, em Hölderlin, tal como Robert Rovini a analisou: a importância das hecceidades do tipo estações, que, ao mesmo tempo, constituem de dois modos diferentes, o “quadro da narrativa” (plano) e o detalhe do que se passa nele (os agenciamentos e inter-agenciamentos37). Mas ainda, na sucessão das estações, e na superposição de uma mesma estação de anos diferentes, a dissolução das formas e das pessoas, a liberação dos movimentos, velocidades, atrasos, afectos, como se algo escapasse de uma matéria impalpável à medida que a narrativa progride. E talvez também a relação com uma “real política”; com uma máquina de guerra; com uma máquina musical de dissonância. — Kleist: como, nele, em sua escrita como em sua vida, tudo se torna velocidade e lentidão. Sucessão de catatonias, e de velocidades extremas, de esvaecimentos e de flechas. Dormir em seu cavalo e galopar.
Saltar de um agenciamento a um outro, em prol de um esvaecimento, transpondo um vazio. Kleist multiplica os “planos de vida”, mas é sempre um só e mesmo plano que compreende seus vazios e seus fracassos, seus saltos, seus tremores de terra e suas pestes. O plano não é princípio de organização, mas meio de transporte. Nenhuma forma se desenvolve, nenhum sujeito se forma, mas afectos deslocam-se, devires catapultam-se e fazem bloco, como o devir-mulher de Aquiles e o devir-cadela de Pentesiléia. Kleist explicou maravilhosamente como as formas e as pessoas eram só aparências, produzidas pelo deslocamento de um centro de gravidade numa linha abstrata, e pela conjunção dessas linhas num plano de imanência. O urso lhe parece um animal fascinante, impossível de enganar, porque, com seus olhinhos cruéis, ele vê por trás das aparências a verdadeira “alma do movimento”, o Gemüt ou o afecto não subjetivo: devir-urso de Kleist. Até a morte pode ser pensada tão-somente como o cruzamento de reações elementares com velocidades demasiadamente diferentes. Um crânio explode, obsessão de Kleist. Toda a obra de Kleist é percorrida por uma máquina de guerra invocada contra o Estado, por uma máquina musical invocada contra a pintura ou o “quadro”. É curioso como Goethe e Hegel têm ódio dessa nova escrita. E que, para eles, o plano tem que ser indissoluvelmente desenvolvimento harmonioso da Forma e formação regulada do Sujeito, personagem ou caráter (a educação sentimental, a solidez substancial e interior do caráter, a harmonia ou a analogia das formas e a continuidade do desenvolvimento, o culto do Estado, etc.). E que eles têm do Plano uma concepção totalmente oposta à de Kleist. Anti-goetheismo, anti-hegelianismo de Kleist, e já de Hölderlin. Goethe vê o essencial quando ele recrimina Kleist pelo fato de, ao mesmo tempo, erigir um puro “processo estacionado” tal como o plano fixo efetivamente, introduzir vazios e saltos que impedem todo o desenvolvimento de um caráter central, mobilizar uma violência de afectos que acarreta uma grande confusão de sentimentos38.
Com Nietzsche acontece a mesma coisa com outros meios. Não há mais o desenvolvimento de formas nem formação de sujeitos. O que recrimina em Wagner é ter ainda preservado um excesso de forma de harmonia, e um excesso de personagens de pedagogia, de “temperamentos” : Hegel e Goethe em excesso. Bizet, ao contrário, dizia Nietzsche… Parece-nos que, em Nietzsche, o problema não é tanto o de uma escrita fragmentária. É mais o das velocidades ou lentidões: não se trata de escrever lenta ou rapidamente, mas que a escrita, e todo o resto, sejam produção de velocidades e lentidões entre partículas. Nenhuma forma resistirá a isso, nenhum caráter ou sujeito sobreviverá a isso. Zaratustra só tem velocidades e lentidões, e o eterno retorno, a vida do eterno retorno, é a primeira grande liberação concreta de um tempo não pulsado. Ecce Homo só tem individuações por hecceidades. É forçoso que o Plano, sendo assim concebido, fracasse sempre, mas que os fracassos façam parte integrante do plano: cf. a multidão de planos para A vontade de potência. Com efeito, dado um aforisma, será sempre possível, e mesmo necessário, introduzir entre seus elementos novas relações de velocidade e lentidão que o fazem verdadeiramente mudar de agenciamento, saltar de um agenciamento para um outro (a questão não é, portanto, a do fragmento). Como diz Cage, é próprio do plano que o plano fracasse39. Justamente porque não há organização, desenvolvimento ou formação, mas transmutação não voluntária. Ou Boulez: “programar a máquina para que cada vez que repassamos uma fita, ela dê características diferentes de tempo”. Então, o plano, plano de vida, plano de escrita, plano de música, etc., só pode fracassar, pois é impossível ser-lhe fiel; mas os fracassos fazem parte do plano, pois ele cresce e decresce com as dimensões daquilo que ele desenvolve a cada vez (planitude com n dimensões). Estranha máquina, ao mesmo tempo de guerra, de música e de contágio-proliferação-involução.
Por que a oposição dos dois tipos de planos remete, no entanto, a uma hipótese ainda abstrata? É que não paramos de passar de um ao outro, por graus insensíveis e sem sabê-lo, ou sabendo só depois. E que não paramos de reconstituir um no outro, ou de extrair um do outro. Por exemplo, basta afundar o plano flutuante de imanência, enterrá-lo nas profundezas da Natureza em vez de deixá-lo funcionar livremente na superfície, para que ele já passe para o outro lado, e tome o papel de um fundamento que não pode mais ser senão princípio de analogia do ponto de vista da organização, lei de continuidade do ponto de vista do desenvolvimento40.
É que o plano de organização ou de desenvolvimento cobre efetivamente aquilo que chamávamos de estratificação: as formas e os sujeitos, os órgãos e as funções são “estratos” ou relações entre estratos. Ao contrário, o plano, como plano de imanência, consistência ou composição, implica uma desestratificação de toda a Natureza, inclusive pelos meios os mais artificiais. O plano de consistência é o corpo sem órgãos. As puras relações de velocidade e lentidão entre partículas, tais como aparecem no plano de consistência, implicam movimentos de desterritorialização, como os puros afectos implicam um empreendimento de dessubjetivação. Mais ainda, o plano de consistência não preexiste aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires que o compõem. De modo que o plano de organização não pára de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir formas e sujeitos em profundidade. Inversamente, o plano de consistência não pára de se extrair do plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora dos estratos, de embaralhar as formas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos. Mas, ainda aqui, quanta prudência é necessária para que o plano de consistência não se torne um puro plano de abolição, ou de morte. Para que a involução não se transforme em regressão ao indiferenciado. Não será preciso guardar um mínimo de estratos, um mínimo de formas e de funções, um mínimo de sujeito para dele extrair materiais, afectos, agenciamentos?

Assim, devemos opor os dois planos como dois pólos abstratos: por exemplo, ao plano organizacional transcendente de uma música ocidental fundada nas formas sonoras e seu desenvolvimento, opomos um plano de consistência imanente da música oriental, feita de velocidades e lentidões, de movimentos e repouso. Mas, segundo a hipótese concreta, todo o devir da música ocidental, todo devir musical implica um mínimo de formas sonoras, e até de funções harmônicas e melódicas, através das quais se fará passar velocidades e lentidões, que as reduzem precisamente ao mínimo. Beethoven produz a mais espantosa riqueza polifônica com os temas relativamente pobres de três ou quatro notas. Há uma proliferação material que não faz senão uma com a dissolução da forma (involução), sendo ao mesmo tempo acompanhada de um desenvolvimento contínuo dessa forma. Talvez o gênio de Schumann seja o caso mais chocante, onde uma forma não é desenvolvida senão para as relações de velocidade e lentidão pelas quais ela é afetada material e emocionalmente. A música não parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem transformações temporais, aumentos ou diminuições, atrasos ou precipitações, que não se fazem apenas de acordo com as leis de organização e até de desenvolvimento. Os microintervalos, em expansão ou contração, atuam nos intervalos codificados. Com mais razão ainda Wagner e os pós-wagnerianos irão liberar as variações de velocidade entre partículas sonoras. Ravel e Debussy preservam da forma precisamente aquilo que é necessário para quebrá-la, afetá-la, modificá-la, sob as velocidades e as lentidões. O Bolero, caricaturizado, é o tipo de um agenciamento maquínico que conserva da forma o mínimo para levá-la à explosão. Boulez fala das proliferações de pequenos motivos, das acumulações de pequenas notas que procedem cinematicamente e afetivamente, que trazem consigo uma forma simples acrescentando-lhe indicações de velocidade, e permitem produzir relações dinâmicas extremamente complexas a partir de relações formais intrinsecamente simples. Mesmo um rubato de Chopin não pode ser reproduzido, pois terá a cada vez características diferentes de tempo41. É como se um imenso plano de consistência com velocidade variável não parasse de arrastar as formas e as funções, as formas e os sujeitos, para deles extrair partículas e afectos. Um relógio que daria toda uma variedade de velocidades.
O que é uma moça, o que é um grupo de moças? Ao menos Proust o mostrou de uma vez por todas: como sua individuação, coletiva ou singular, não procede por subjetividade, mas por hecceidade, pura hecceidade. “Seres de fuga”. São puras relações de velocidades e lentidões, nada além disso. Uma moça está atrasada por velocidade: ela fez coisa demais, atravessou muitos espaços em relação ao tempo relativo daquele que a esperava. Então, a lentidão aparente da moça transforma-se em velocidade louca de nossa espera. A esse respeito, e para o conjunto da Recherche du temps perdu, é preciso dizer que Swann não está absolutamente na mesma situação que o narrador. Swann não é um esboço ou precursor do narrador, a não ser secundariamente, e em raros momentos. Eles não estão absolutamente no mesmo plano. Swann não pára de pensar e sentir em termos de sujeito, de forma, de semelhança entre sujeitos, de correspondência entre formas. Uma mentira de Odette é para ele uma forma cujo conteúdo subjetivo secreto deve ser descoberto, e suscitar uma atividade de policial amador. A música de Vinteuil é para ele uma forma que deve lembrar outra coisa, rebater-se sobre outra coisa, fazer eco a outras formas, pinturas, rostos ou paisagens. Enquanto que o narrador, por mais que tenha seguido os traços de Swann, não deixa de estar num outro elemento, num outro plano. Uma mentira de Albertine não tem mais conteúdo algum; ela tende, ao contrário, a confundir-se com a emissão de uma partícula saída dos olhos da amada, e que vale por ela mesma, que anda depressa demais no campo visual ou auditivo do narrador, velocidade molecular insuportável na verdade, pois indica uma distância, uma vizinhança onde Albertine gostaria de estar e já está42. Assim o desempenho do narrador já não será principalmente o de um policial que interroga, mas, figura muito diferente, o de um carcereiro: como tornar-se senhor da velocidade, como suportá-la nervosamente como uma nevralgia, perceptivamente como um raio, como fazer uma prisão para Albertina? E se o ciúme não é o mesmo, quando se passa de Swann ao narrador, a percepção da música tampouco o é: Vinteuil deixa cada vez mais de ser apreendido de acordo com formas analógicas e sujeitos comparáveis, para tomar velocidades e lentidões inéditas que se acoplam num campo de consistência com variação, o mesmo plano da música e da Recherche (assim como os motivos wagnerianos abandonam qualquer fixidez de forma e qualquer atribuição de personagens). Diríamos que os efeitos desesperados de Swann para reterritorializar o fluxo das coisas (Odette num segredo, a pintura num rosto, a música no bosque de Boulogne) deu lugar ao movimento acelerado da desterritorialização, a uma acelerada linear da máquina abstrata, arrastando os rostos e as paisagens, e depois o amor, depois o ciúme, depois a pintura, depois a própria música, segundo coeficientes cada vez mais fortes que vão nutrir a Obra com o risco de dissolver tudo, e de morrer. Com efeito, o narrador, apesar das vitórias parciais, fracassará em seu projeto que não era absolutamente reencontrar o tempo nem forçar a memória, mas tornar-se senhor das velocidades, ao ritmo de sua asma. Era afrontar o aniquilamento. Uma outra saída possível, ou que Proust terá tornado possível.
Lembranças de uma molécula. — O devir-animal é apenas um caso entre outros. Vemo-nos tomados em segmentos de devir, entre os quais podemos estabelecer uma espécie de ordem ou de progressão aparente: devir-mulher, devir-criança; devir-animal, vegetal ou mineral; devires moleculares de toda espécie, devires-partículas. Fibras levam de uns aos outros, transformam uns nos outros, atravessam suas portas e limiares. Cantar ou compor, pintar, escrever não têm talvez outro objetivo: desencadear esses devires. Sobretudo a música; todo um devir-mulher, um devir-criança atravessam a música, não só no nível das vozes (a voz inglesa, a voz italiana, o contra-tenor, o castrato), mas no nível dos temas e dos motivos: o pequeno ritornelo, o rondo, as cenas de infância e as brincadeiras de criança. A instrumentação, a orquestração são penetradas de devires-animais, devires-pássaro primeiro, mas muitos outros ainda. Os marulhos, os vagidos, as estridências moleculares estão aí desde o início, mesmo se a evolução instrumental, somada a outros fatores, lhes dá uma importância cada vez maior, como o valor de um novo limiar do ponto de vista de um conteúdo propriamente musical: a molécula sonora, as relações de velocidade e lentidão entre partículas. Os devires-animais lançam-se em devires moleculares. Então, toda espécie de questões se coloca.

De certa maneira, é preciso começar pelo fim: todos os devires já são moleculares. E que devir não é imitar algo ou alguém, identificar-se com ele. Tampouco é proporcionar relações formais. Nenhuma dessas duas figuras de analogia convém ao devir, nem a imitação de um sujeito, nem a proporcionalidade de uma forma. Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. Esse princípio de proximidade ou de aproximação é inteiramente particular, e não reintroduz analogia alguma. Ele indica o mais rigorosamente possível uma zona de vizinhança ou de co-presença de uma partícula, o movimento que toma toda partícula quando entra nessa zona. Louis Wolfson lança-se numa empreitada estranha: esquizofrênico, ele traduz o mais rápido possível cada frase de sua língua materna em palavras estrangeiras que têm um som e um sentido semelhantes; anoréxico, ele se precipita em direção à geladeira, rasga as latas, arranca elementos com os quais empanturra-se o mais depressa possível43.
Seria falso acreditar que ele toma emprestado às línguas estrangeiras palavras “disfarçadas” das quais necessita. Muito antes, ele arranca de sua própria língua partículas verbais que não podem mais pertencer à forma dessa língua, assim como ele arranca às “comidas” partículas alimentares que não mais pertencem às substâncias nutritivas formadas: as duas espécies de partículas entram em vizinhança. Pode-se dizer igualmente: emitir partículas que tomam tais relações de movimento e repouso porque entram em tal zona de vizinhança; ou: que entram em tal zona porque tomam tais relações. Uma hecceidade não é separável da neblina ou da bruma que dependem de uma zona molecular, de um espaço corpuscular. A vizinhança é uma noção ao mesmo tempo topológica e quântica, que marca a pertença a uma mesma molécula, independentemente dos sujeitos considerados e das formas determinadas.

Schérer e Hocquenghem destacaram esse ponto essencial, quando reconsideraram o problema das crianças-lobos. Não se trata, é claro, de uma produção real como se a criança tivesse “realmente” se tornado animal; tampouco se trata de uma semelhança, como se a criança tivesse imitado animais que a teriam realmente criado; mas tampouco se trata de uma metáfora simbólica, como se a criança autista, abandonada ou perdida, tivesse apenas se tornado o “análogo” de um bicho. Schérer e Hocquenghem têm razão de denunciar esse falso raciocínio, fundado num culturalismo ou num moralismo que reivindicam a irredutibilidade da ordem humana: com efeito, segundo tal raciocínio, já que a criança não foi transformada em animal, ela estaria apenas numa relação metafórica com ele, induzida por sua enfermidade ou sua rejeição. Já os dois, por sua vez, invocam uma zona objetiva de indeterminação ou de incerteza, “algo de comum ou de indiscernível”, uma vizinhança “que faz com que seja impossível dizer onde passa a fronteira do animal e do humano”, não apenas nas crianças autistas, mas em todas as crianças, como se, independentemente da evolução que a puxa em direção ao adulto, haveria na criança lugar para outros devires, “outras possibilidades contemporâneas”, que não são regressões, mas involuções criadoras, e que testemunham “uma inumanidade vivida imediatamente no corpo enquanto tal”, núpcias anti-natureza “fora do corpo programado”. Realidade do devir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal. De nada serve, sendo assim, objetar que a criança-cachorro só se faz de cachorro nos limites de sua constituição formal, e não faz nada de canino que um outro ser humano não poderia ter feito se tivesse querido, pois o que é preciso explicar, é precisamente que todas as crianças, e até muitos adultos, o façam mais ou menos, e testemunhem com o animal uma conivência inumana mais do que uma comunidade simbólica edipiana44.
Não se trata de acreditar, tampouco, que as crianças que comem capim, ou terra, ou carne crua, encontrem aí apenas vitaminas ou elementos dos quais seu organismo estaria carente. Trata-se de fazer corpo com o animal, um corpo sem órgãos definido por zonas de intensidade ou de vizinhança. De onde vem então essa indeterminação, essa indiscernabilidade objetiva das quais falam Schérer e Hocquenghem? Por exemplo: não imitar o cão, mas compor seu organismo com outra coisa, de tal modo que se faça sair, do conjunto assim composto, partículas que serão caninas em função da relação de movimento e repouso, ou da vizinhança molecular nas quais elas entram. Evidentemente, essa outra coisa pode ser muito variada, e depender mais ou menos diretamente do animal em questão: pode ser o alimento natural do animal (a terra e o verme), pode ser suas relações exteriores com outros animais (tornar-se cachorro com gatos, tornar-se macaco com um cavalo), pode ser um aparelho ou prótese que o homem lhe impõe (focinheira, rédeas, etc.), pode ser algo que não tenha mais nem mesmo relação “localizável” com o animal considerado. Para este último caso, vimos como Slepian funda sua tentativa de devir-cachorro na idéia de calçar sapatos em suas mãos, amarrá-los com sua boca-cara. Philippe Gavi cita as performances de Lolito, comedor de garrafas, louças e porcelanas, de ferro, e até de bicicletas, que declara: “Considero-me metade bicho, metade homem. Mais bicho talvez do que homem. Adoro os bichos, os cachorros sobretudo, sinto-me ligado a eles. Minha dentição adaptou-se; de fato, quando não como vidro ou ferro, meu maxilar me dá coceira como o de um cachorrinho com vontade de ficar mordiscando um osso”45.
Interpretar a palavra “como” à maneira de uma metáfora, ou propor uma analogia estrutural de relações (homem-ferro = cachorro-osso), é não compreender nada do devir. A palavra “como” faz parte dessas palavras que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento em que as remetemos a hecceidades, a partir do momento em que fazemos delas expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes. Pode ser que um cachorro exercite seu maxilar no ferro, mas então ele exercita seu maxilar como órgão molar. Quando Lolito come ferro, é inteiramente diferente: ele compõe seu maxilar com o ferro de modo que ele próprio se torne um maxilar de cachorro-molecular. O ator De Niro, numa seqüência de filme, anda “como” um caranguejo; mas não se trata, ele diz, de imitar o caranguejo; trata-se de compor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver com o caranguejo46. E é isso o essencial para nós: ninguém torna-se-animal a não ser que, através de meios e de elementos quaisquer, emita corpúsculos que entrem na relação de movimento e repouso das partículas animais, ou, o que dá no mesmo, na zona de vizinhança da molécula animal. Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna cachorro molar latindo, mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-se um cachorro molecular. O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se mudasse de espécie molar; mas o vampiro e o lobisomem são devires do homem, isto é, vizinhanças entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. É claro que há lobisomens, vampiros, dizê-mo-lo de todo coração, mas não procure aí a semelhança ou a analogia com o animal, pois trata-se do devir-animal em ato, trata-se da produção do animal molecular (enquanto que o animal “real” é tomado em sua forma e sua subjetividade molares).
É em nós que o animal mostra os dentes como o rato de Hoffmanstahl, ou a flor, suas pétalas, mas é por emissão corpuscular, por vizinhança molecular, e não por imitação de um sujeito, nem proporcionalidade de forma. Albertine pode imitar uma flor o quanto quiser, mas é quando ela dorme, e compõe-se com as partículas do sono, que sua pinta e o grão de sua pele entram numa relação de repouso e movimento que a coloca na zona de um vegetal molecular: devir-planta de Albertine. E é quando está prisioneira que ela emite as partículas de um pássaro. E é quando foge, quando se lança em sua linha de fuga, que ela se torna cavalo, mesmo que seja o cavalo da morte. Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força de experiência, de ciência ou de hábito. Ora, se isso é verdade, é preciso dizê-lo das coisas humanas também: há um devir-mulher, um devir-criança, que não se parecem com a mulher ou com a criança como entidades molares bem distintas (ainda que a mulher ou a criança possam ter posições privilegiadas possíveis, mas somente possíveis, em função de tais devires). O que chamamos de entidade molar aqui, por exemplo, é a mulher enquanto tomada numa máquina dual que a opõe ao homem, enquanto determinada por sua forma, provida de órgãos e de funções, e marcada como sujeito. Ora, devir-mulher não é imitar essa entidade, nem mesmo transformar-se nela. Não se trata de negligenciar, no entanto, a importância da imitação, ou de momentos de imitação, em alguns homossexuais masculinos; menos ainda a prodigiosa tentativa de transformação real em alguns travestis. Queremos apenas dizer que esses aspectos inseparáveis do devir-mulher devem primeiro ser compreendidos em função de outra coisa: nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que entrem na relação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma microfeminilidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular, criar a mulher molecular. Não queremos dizer que tal criação seja o apanágio do homem, mas, ao contrário, que a mulher como entidade molar tem que devir-mulher, para que o homem também se torne mulher ou possa tornar-se. E certamente indispensável que as mulheres levem a cabo uma política molar, em função de uma conquista que elas operam de seu próprio organismo, de sua própria história, de sua própria subjetividade: “Nós, enquanto mulheres…” aparece então como sujeito de enunciação. Mas é perigoso rebater-se sobre tal sujeito, que não funciona sem secar uma fonte ou parar um fluxo. O canto da vida é freqüentemente entoado pelas mulheres mais secas, animadas de ressentimento, de vontade de potência e de maternagem fria. Como uma criança que secou consegue fazer-se de criança melhor ainda porque não emana mais dela qualquer fluxo de infância. Não basta tampouco dizer que cada sexo contém o outro, e deve desenvolver em si mesmo o pólo oposto. Bissexualidade não é um conceito melhor que o da separação dos sexos. Miniaturizar, interiorizar a máquina binária, é tão deplorável quanto exasperá-la, não é assim que se sai disso. É preciso, portanto, conceber uma política feminina molecular, que insinua-se nos afrontamentos molares e passa por baixo, ou através.
Quando se interroga Virgínia Woolf sobre uma escrita propriamente feminina, ela se espanta com a idéia de escrever “enquanto mulher”. É preciso antes que a escrita produza um devir-mulher, como átomos de feminilidade capazes de percorrer e de impregnar todo um campo social, e de contaminar os homens, de tomá-los num devir. Partículas muito suaves, mas também duras e obstinadas, irredutíveis, indomáveis. A ascensão das mulheres na escrita romanesca inglesa não poupará homem algum: aqueles que passam por mais viris, os mais falocratas, Lawrence, Miller, não pararão de captar e de emitir por sua vez essas partículas que entram na vizinhança ou na zona de indiscernibilidade das mulheres. Eles tornam-se-mulher escrevendo. É que a questão não é, ou não é apenas, a do organismo, da história e do sujeito de enunciação que opõem o masculino e o feminino nas grandes máquinas duais. A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que se rouba esse corpo: pare de se comportar assim, você não é mais uma menininha, você não é um moleque, etc. É à menina, primeiro, que se rouba seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. A vez do menino vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima, mas ela deve também servir de exemplo e de cilada. É por isso que, inversamente, a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de uma mulher molecular. Sem dúvida, a moça torna-se mulher, no sentido orgânico ou molar. Mas, inversamente, o devir-mulher ou a mulher molecular são a própria moça. A moça certamente não se define por sua virgindade, mas por uma relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, por uma combinação de átomos, uma emissão de partículas: hecceidade. Ela não pára de correr num corpo sem órgãos. Ela é linha abstrata ou linha de fuga. Por isso as moças não pertencem a uma idade, a um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens, entre os atos, as idades, os sexos; elas produzem n sexos moleculares na linha de fuga, em relação às máquinas duais que elas atravessam de fora a fora. A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua obra, não parando de devir. A moça é como o bloco de devir que permanece contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto. Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça universal; não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal. Trost, autor misterioso, fez um retrato de moça ao qual ele liga o destino da revolução: sua velocidade, seu corpo livremente maquínico, suas intensidades, sua linha abstrata ou de fuga, sua produção molecular, sua indiferença à memória, seu caráter não figurativo — “o não figurativo do desejo”47.
Joana d’Arc? Particularidade da moça no terrorismo russo, a moça da bomba, guardiã de dinamite? É certo que a política molecular passa pela moça e pela criança. Mas é certo também que as moças e as crianças não extraem suas forças do estatuto molar que as doma, nem do organismo e da subjetividade que recebem; elas extraem todas suas forças do devir molecular que elas fazem passar entre os sexos e as idades, devir-criança do adulto como da criança, devir-mulher do homem como da mulher. A moça e a criança não se tornam, é o próprio devir que é criança ou moça. A criança não se torna adulto, assim como a moça não se torna mulher; mas a moça é o devir-mulher de cada sexo, como a criança é o devir-jovem de cada idade. Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade. Saber amar não é permanecer homem ou mulher, é extrair de seu sexo as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos, os n sexos que constituem a moça desta sexualidade. É a própria Idade que é um devir-criança, como a Sexualidade, qualquer sexualidade, um devir-mulher, isto é, uma moça. — A fim de responder a questão estúpida: por que Proust fez de Alberto, Albertine?

Ora, se todos os devires já são moleculares, inclusive o devir-mulher, é preciso dizer também que todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires. Que o homem de guerra se disfarce de mulher, que ele fuja disfarçado de donzela, que ele se esconda como donzela, não é um incidente provisório vergonhoso em sua carreira. Esconder-se, camuflar-se, é uma função guerreira; e a linha de fuga atrai o inimigo, atravessa algo e faz fugir o que a atravessa; é no infinito de uma linha de fuga que surge o guerreiro. Mas se a feminilidade do homem de guerra não é acidental, nem por isso se pensará que ela seja estrutural, ou regulada por uma correspondência de relações. Não dá para vislumbrar como a correspondência entre as duas relações “homem-guerra” e “mulher-casamento” poderia acarretar uma equivalência do guerreiro com a donzela enquanto mulher que se recusa a casar.48
Tampouco dá para vislumbrar como a bissexualidade geral, ou mesmo a homossexualidade das sociedades militares, explicariam esse fenômeno que não é mais imitativo do que estrutural, mas que representa antes uma anomia essencial ao homem de guerra. É em termos de devir que é preciso compreender o fenômeno. Vimos como o homem de guerra, por seu furor e sua celeridade, era tomado em devires-animais irresistíveis. São esses devires que encontram sua condição no devir-mulher do guerreiro, ou em sua aliança com a donzela, em seu contágio com ela. O homem de guerra não é separável das Amazonas. A união da donzela e do homem de guerra não produz animais, mas produz ao mesmo tempo o devir-mulher de um e o devir-animal do outro, num só e mesmo ” bloco”, onde o guerreiro torna-se animal por sua vez por contágio da donzela, ao mesmo tempo que a donzela torna-se guerreira por contágio do animal. Tudo se reúne num bloco de devir assimétrico, um ziguezague instantâneo. É na sobrevivência de uma dupla máquina de guerra, a dos gregos que irá em breve fazer-se suplantar pelo Estado, e a das Amazonas que irá em breve dissolver-se, é numa série de atordoamentos, vertigens e esvaecimentos moleculares que Aquiles e Pentesiléia se escolhem, o último homem de guerra, a última rainha das donzelas, Aquiles do devir-mulher e Pentesiléia do devir-cadela.

Os ritos de transvestismo, de travestimento, nas sociedades primitivas onde o homem torna-se mulher, não se explicam nem por uma organização social que faria corresponder relações dadas, nem por uma organização psíquica que faria com que o homem desejasse ser mulher tanto quanto a mulher ser homem49.
A estrutura social, a identificação psíquica deixam de lado demasiados fatores especiais: o encadeamento, a precipitação e a comunicação de devires que o travesti desencadeia; a potência do devir-animal que decorre disso; e, sobretudo, a pertença desses devires a uma máquina de guerra específica. É a mesma coisa para a sexualidade: esta se explica mal pela organização binária dos sexos, e não se explica melhor por uma organização bissexuada de cada um dos dois. A sexualidade coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são como n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa. O que não pode ser remetido às deploráveis metáforas entre o amor e a guerra, a sedução e a conquista, a luta dos sexos e a briga de casal, ou mesmo a guerra-Strindberg: é só quando o amor acabou, a sexualidade secou, que as coisas aparecem assim. Mas o que conta é que o próprio amor é uma máquina de guerra dotada de poderes estranhos e quase terrificantes. A sexualidade é uma produção de mil sexos, que são igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem e pelo devir-animal do humano: emissão de partículas. Não é preciso bestialismo para isso, se bem que o bestialismo possa aparecer aí, e muitas anedotas psiquiátricas dão testemunho disso de uma maneira interessante, mas simples demais, portanto deturpada, que fica boba demais. Não se trata de se “fazer” de cachorro, como um velho no cartão postal; não se trata tanto de fazer amor com os bichos. Os devires-animais são, antes, de uma outra potência, pois eles não têm sua realidade no animal que se imitaria ou ao qual se corresponderia, mas em si mesmos, naquilo que nos toma de repente e nos faz devir, uma vizinhança, uma indiscernibilidade; que extrai do animal algo de comum, muito mais do que qualquer domestificação, qualquer utilização, qualquer imitação: “a Besta”.

Se o devir-mulher é o primeiro quantum, ou segmento molecular, e depois os devires-animais que se encadeiam na seqüência, em direção a que precipitam-se todos eles? Sem dúvida alguma, em direção a um devir-imperceptível. O imperceptível é o fim imanente do devir, sua fórmula cósmica. Assim, O homem que encolheu, de Matheson, passa através dos reinos, desliza entre as moléculas até tornar-se uma partícula impossível de ser encontrada que medita ao infinito sobre o infinito. O Monsieur Zero, de Paul Morand, foge dos grande países, atravessa os menores, desce a escala dos Estados para constituir em Lichtenstein uma sociedade anônima só dele, e morrer imperceptível formando com seus dedos a partícula O: “Eu sou um homem que foge nadando entre duas águas e no qual todos os fuzis do mundo atiram. (…) Seria preciso não oferecer mais alvo”. Mas o que significa devir-imperceptível, ao fim de todos os devires moleculares que começavam pelo devir-mulher? Devir imperceptível quer dizer muitas coisas. Que relação entre o imperceptível (anorgânico), o indiscernível (assignificante) e o impessoal (assubjetivo)?

Diríamos, primeiro: ser como todo mundo. E o que conta Kierkegaard, em sua história do “cavaleiro da fé”, o homem do devir: por mais que o observemos, não notamos nada, um burguês, nada além de um burguês. E o que vivia Fitzgerald: quando se sai de uma verdadeira ruptura, consegue-se… realmente ser como todo mundo. E não é nada fácil, não se fazer notar. Ser desconhecido, mesmo para sua zeladora e seus vizinhos. Se é tão difícil ser “como” todo mundo, é porque há uma questão de devir. Não é todo mundo que se torna como todo mundo, que faz de todo mundo um devir. É preciso para isso muita ascese, sobriedade, involução criadora: uma elegância inglesa, um tecido inglês, confundir-se com as paredes, eliminar o percebido-demais, o excessivo-para-perceber. “Eliminar tudo que é dejeto, morte e superfluidade”, queixa e ofensa, desejo não satisfeito, defesa ou arrazoado, tudo que enraíza alguém (todo mundo) em si mesmo, em sua molaridade. Pois todo mundo é o conjunto molar, mas devir todo mundo é outro caso, que põe em jogo o cosmo com seus componentes moleculares. Devir todo mundo é fazer mundo, fazer um mundo. A força de eliminar, não somos mais do que uma linha abstrata, ou uma peça de quebra-cabeça em si mesmo abstrata. É conjugando, continuando com outras linhas, outras peças que se faz um mundo, que poderia recobrir o primeiro, como em transparência. A elegância animal, o peixe-camuflador, o clandestino: ele é percorrido por linhas abstratas que não se parecem com nada, e que não seguem nem mesmo suas divisões orgânicas; mas, assim desorganizado, desarticulado, ele faz mundo com as linhas de um rochedo, da areia e das plantas, para devir imperceptível. O peixe é como o pintor poeta chinês: nem imitativo, nem estrutural, mas cósmico. François Cheng mostra que o poeta não persegue a semelhança, como tampouco calcula “proporções geométricas”. Ele retém, ele extrai somente as linhas e os movimentos essenciais da natureza, ele procede tão-somente por meio de “traços” continuados ou superpostos50.
É nesse sentido que devir todo mundo, fazer do mundo um devir, é fazer mundo, é fazer um mundo, mundos, isto é, encontrar suas vizinhanças e suas zonas de indiscernibilidade. O Cosmo como máquina abstrata e cada mundo como agenciamento concreto que o efetua. Reduzir-se a uma ou várias linhas abstratas, que vão continuar e conjugar-se com outras, para produzir imediatamente, diretamente, um mundo, no qual é o mundo que entra em devir e nós nos tornamos todo mundo. Que a escrita seja como a linha do desenho-poema chinês, era o sonho de Kérouac, ou já o de Virgínia Woolf. Ela diz que é preciso “saturar cada átomo” e, para isso, eliminar, eliminar tudo o que é semelhança e analogia, mas também “tudo colocar”, eliminar tudo o que excede o momento, mas colocar tudo que ele inclui — e o momento não é o instantâneo, é a hecceidade, na qual nos insinuamos, e que se insinua em outras hecceidades por transparência51. Estar na hora do mundo. Eis a ligação entre imperceptível, indiscernível, impessoal, as três virtudes. Reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, para encontrar sua zona de indiscernibilidade com outros traços e entrar, assim, na hecceidade como na impersonalidade do criador. Então se é como o capim: se fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se fez um mundo necessariamente comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que impedia de deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas. Combinou-se o “tudo”, o artigo indefinido, o infinitivo-devir e o nome próprio ao qual se está reduzido. Saturar, eliminar, colocar tudo.
O movimento está numa relação essencial com o imperceptível, ele é por natureza imperceptível. E que a percepção só pode captar o movimento como uma translação de um móvel ou o desenvolvimento de uma forma. Os movimentos e os devires, isto é, as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afectos, estão abaixo ou acima do limiar de percepção. Sem dúvida, os limiares de percepção são relativos, havendo sempre, portanto, alguém capaz de captar o que escapa a outro: o olho da águia… Mas o limiar adequado, por sua vez, só poderá proceder em função de uma forma perceptível e de um sujeito percebido, notado. Assim, por si mesmo, o movimento continua passando alhures: se constituímos a percepção em série, o movimento ocorre sempre além do limiar máximo e aquém do limiar mínimo, em intervalos em expansão ou em contração (microintervalos). É como os enormes lutadores japoneses, cujo passo é demasiadamente lento e o golpe demasiadamente rápido e repentino para ser visto: então, o que se acopla, são menos os lutadores do que a infinita lentidão de uma espera (o que vai se passar?) com a velocidade infinita de um resultado (o que se passou?). Seria preciso atingir o limiar fotográfico ou cinematográfico, mas em relação à foto, o movimento e o afecto de novo refugiaram-se abaixo ou acima. Quando Kierkegaard lança sua maravilhosa divisa “Eu olho tão-somente os movimentos”, ele pode comportar-se como um admirável precursor do cinema e multiplicar as versões de um roteiro de amor, Agnes e o Tritão, segundo velocidades e lentidões variáveis. Há mais razões ainda para precisar que só há movimento do infinito; que o movimento do infinito só pode fazer-se por afecto, paixão, amor, num devir que é moça, mas sem referência a qualquer “meditação”; e que esse movimento, enquanto tal, escapa à percepção mediadora, pois ele já é efetuado a todo o momento, e que o dançarino, ou o amante, já está de novo “em pé andando”, no próprio segundo em que ele cai, e mesmo no instante em que ele salta52. Tal como a moça, enquanto ser de fuga, o movimento não pode ser percebido.
No entanto, é preciso corrigir imediatamente: o movimento também “deve” ser percebido, e só pode ser percebido; o imperceptível é também o percipiendum. Não há contradição nisso. Se o movimento é imperceptível por natureza, é sempre em relação a um limiar qualquer de percepção, ao qual é próprio ser relativo, desempenhar assim o papel de uma mediação, num plano que opera a distribuição dos limiares e do percebido, que dá a sujeitos perceptivos formas a serem percebidas: ora é esse plano de organização e de desenvolvimento, plano de transcendência que dá a perceber sem poder ser percebido, sem que ele próprio seja percebido. Mas, no outro plano, de imanência ou de consistência, é o próprio princípio de composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido, ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe ou dá. Aqui, o movimento deixa de ser remetido à mediação de um limiar relativo ao qual ele escapa por natureza ao infinito; ele atingiu, seja qual for sua velocidade ou sua lentidão, um limiar absoluto, se bem que diferenciado, que faz um com a construção desta ou daquela região do plano continuado. Diremos igualmente que o movimento pára de ser o procedimento de uma desterritorialização sempre relativa, para tornar-se o processo da desterritorialização absoluta. É a diferença dos dois planos que faz com que aquilo que não pode ser percebido num deles só pode ser percebido no outro. É aí que o imperceptível torna-se o necessariamente-percebido, saltando de um plano ao outro, ou dos limiares relativos ao limiar absoluto que coexiste com eles. Kierkegaard mostra que o plano do infinito, o que ele chama de plano da fé, deve tornar-se puro plano de imanência que não pára de dar imediatamente, de voltar a dar, de recolher o finito: contrariamente ao homem da resignação infinita, o cavaleiro da fé, isto é, o homem do devir, terá a donzela, ele terá todo o finito, e perceberá o imperceptível, enquanto “herdeiro direto do mundo finito”. É que a percepção não estará mais na relação entre um sujeito e um objeto, mas no movimento que serve de limite a essa relação, no período que lhe está associado. A percepção se verá confrontada com seu próprio limite; ela estará entre as coisas, no conjunto de sua própria vizinhança, como a presença de uma hecceidade em outra, apreensão de uma pela outra ou a passagem de uma a outra: olhar apenas os movimentos.

É curioso que a palavra “fé” sirva para designar um plano que vira imanência. Mas, se o cavaleiro é o homem do devir, há cavaleiros de toda espécie. Não existe até cavaleiros da droga, no sentido em que a fé é uma droga, muito diferente do sentido em que a religião é um ópio? Esses cavaleiros pretendem que a droga, em condições de prudência e de experimentação necessárias, é inseparável da instauração de um plano. E nesse plano, não só conjugam-se devires-mulher, devires-animais, devires-moleculares, devires-imperceptível, mas o próprio imperceptível torna-se um necessariamente percebido, ao mesmo tempo em que a percepção torna-se necessariamente molecular: chegar a buracos, microintervalos entre as matérias, cores e sons, onde se precipitam as linhas de fuga, linhas do mundo, linhas de transparência e de secção53.
Mudar a percepção; o problema está colocado em termos corretos, porque ele dá um conjunto pregnante “da” droga, independentemente das distinções secundárias (alucinatórias ou não, pesadas ou leves, etc.). Todas as drogas concernem primeiro as velocidades, e as modificações de velocidade. O que permite descrever um agenciamento Droga, sejam quais forem as diferenças, é uma linha de causalidade perceptiva que faz com que: 1) o imperceptível seja percebido, 2) a percepção seja molecular, 3) o desejo invista diretamente a percepção e o percebido. Os americanos da beat generation já tinham se engajado nessa via, e falavam de uma revolução molecular própria à droga. Depois, essa espécie de grande síntese de Castañeda.

Fiedler marcou os pólos do Sonho americano: emperrado entre dois pesadelos, o do genocídio indígena e o do escravagismo negro, os americanos faziam do negro uma imagem recalcada da força de afecto, de uma multiplicação de afectos, mas do índio, a imagem reprimida de uma fineza de percepção, de uma percepção cada vez mais fina, dividida, infinitamente desacelarada ou acelerada54. Na Europa, Henri Michaux tendia a livrar-se mais à vontade dos ritos e das civilizações, para erigir protocolos de experiências admiráveis e minuciosas, depurar a questão de uma causalidade da droga, cercá-la ao máximo, separá-la dos delírios e das alucinações. Mas, precisamente nesse ponto, tudo se junta: mais uma vez, o problema está bem colocado quando se diz que a droga faz perder as formas e as pessoas, faz funcionar as loucas velocidades de droga e as prodigiosas lentidões do após-droga, acopla umas às outras como lutadores, dá à percepção a potência molecular de captar microfenômenos, microoperações, e dá ao percebido a força de emitir partículas aceleradas ou desaceleradas, segundo um tempo flutuante que não é mais o nosso, e hecceidades que não são mais deste mundo: desterritorialização, “eu estava desorientado…” (percepção de coisas, de pensamentos, de desejo, onde o desejo, o pensamento, a coisa invadiram toda a percepção, o imperceptível enfim percebido). Nada mais que o mundo das velocidades e das lentidões sem forma, sem sujeito, sem rosto. Nada mais que o ziguezague de uma linha, como “a correia do chicote de um carroceiro em fúria”, que rasga rostos e paisagens55. Todo um trabalho rizomático da percepção, o momento em que desejo e percepção se confundem.
Esse problema de uma causalidade específica é importante. Enquanto se invoca causalidades mais gerais ou extrínsecas, psicológicas, sociológicas, para dar conta de um agenciamento, é como se não se dissesse nada. Hoje instaurou-se um discurso sobre a droga que só faz agitar generalidades sobre o prazer e a infelicidade, sobre as dificuldades de comunicação, sobre causas que vêm sempre de outra parte. Mais finge-se compreender um fenômeno quanto mais se é incapaz de captar sua causalidade própria em extensão. Sem dúvida, um agenciamento jamais comporta uma infra-estrutura causai. Ele comporta, no entanto, e no mais alto ponto, uma linha abstrata de causalidade específica ou criadora, sua linha de fuga, de desterritorialização, que só pode efetuar-se em relação com causalidades gerais ou de uma outra natureza, mas que não se explica absolutamente por elas. Nós dizemos que os problemas de droga só podem ser captados no nível onde o desejo investe diretamente a percepção, e onde a percepção torna-se molecular, ao mesmo tempo que o imperceptível torna-se percebido. A droga aparece então como o agente desse devir. É aí que haveria uma fármaco-análise que seria preciso ao mesmo tempo comparar e opor à psicanálise, pois em relação a esta há motivos para fazer dela ao mesmo tempo um modelo, um oposto e uma traição. A psicanálise, com efeito, pode ser considerada como um modelo de referência porque, em relação a fenômenos essencialmente afectivos, ela soube construir o esquema de uma causalidade própria, distinto das generalidades psicológicas ou sociais ordinárias. Mas esse esquema causai permanece tributário de um plano de organização que nunca pode ser captado por si mesmo, sempre concluído de outra coisa, inferido, subtraído ao sistema da percepção, e que recebe precisamente o nome de Inconsciente. O plano do Inconsciente permanece, portanto, um plano de transcendência, que deve caucionar, justificar a existência do psicanalista e a necessidade de suas interpretações. Esse plano do Inconsciente opõe-se molarmente ao sistema percepção-consciência e, como o desejo deve ser traduzido para esse plano, ele próprio é acorrentado a robustas molaridades como à face oculta do iceberg (estrutura de Édipo ou rochedo da castração). Então, quanto mais o imperceptível opõe-se ao percebido numa máquina dual, mais ele permanece imperceptível. Tudo muda num plano de consistência ou de imanência, que se encontra necessariamente percebido por conta própria ao mesmo tempo em que é construído: a experimentação substitui a interpretação; o inconsciente tornado molecular, não figurativo e não simbólico, é dado enquanto tal às micropercepções; o desejo investe diretamente o campo perceptível onde o imperceptível aparece como o objeto percebido do próprio desejo, “o não-figurativo do desejo”.

O inconsciente não designa mais o princípio oculto do plano de organização transcendente, e sim o processo do plano de consistência imanente, à medida que ele aparece em si mesmo ao longo de sua construção, pois o inconsciente está para ser feito e não para ser reencontrado. Não há mais uma máquina dual consciência-inconsciente, porque o inconsciente está, ou melhor, é produzido aí onde a consciência é levada pelo plano. A droga dá ao inconsciente a imanência e o plano que a psicanálise não parou de deixar escapar (pode ser, desse ponto de vista, que o célebre episódio da cocaína tenha marcado uma virada, forçando Freud a renunciar a uma aproximação direta do inconsciente). Mas, se é verdade que a droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta toda a questão de saber se ela consegue efetivamente traçar o plano que condiciona seu exercício. Ora, a linha causai da droga, sua linha de fuga, não pára de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do dopar-se, da dose e do traficante. Mesmo que em sua forma flexível ela possa mobilizar gradientes e limiares de percepção de modo a determinar devires-animais, devires-moleculares, tudo se faz ainda numa relatividade de limiares que se contenta em imitar um plano de consistência em vez de traçá-lo num limiar absoluto. Para que serve perceber tão depressa quanto um pássaro rápido, se a velocidade e o movimento continuam a fugir alhures? As desterritorializações permanecem relativas, compensadas pelas reterritorializações as mais abjetas, de modo que o imperceptível e a percepção não param de perseguir-se ou de correr um atrás do outro sem nunca acoplar-se de fato. Em vez de os buracos no mundo permitirem que as próprias linhas do mundo fujam, as linhas de fuga enrolam-se e põem-se a rodopiar em buracos negros, cada drogado em seu buraco, grupo ou indivíduo, como um caramujo. Caindo mais no buraco do que no barato. As micropercepções moleculares são recobertas de antemão, conforme a droga considerada, por alucinações, delírios, falsas percepções, fantasmas, surtos paranóicos, restaurando a cada instante formas e sujeitos, como fantasmas ou duplos que não parariam de obstruir a construção do plano. Bem mais, é como ouvimos anteriormente na enumeração dos perigos: o plano de consistência não só corre o risco de ser traído ou desviado sob a influência de outras causalidades que intervém num tal agenciamento, mas o próprio plano engendra seus próprios perigos de acordo com os quais ele se desfaz ao longo de sua construção. Não somos mais, ele mesmo não é mais senhor das velocidades. Em vez de fazer um corpo sem órgãos suficientemente rico ou pleno para que as intensidades passem, as drogas erigem um corpo vazio ou vitrificado, ou um corpo canceroso: a linha causai, a linha criadora ou de fuga, vira imediatamente linha de morte e de abolição. A abominável vitrificação das veias, ou a purulência do nariz, o corpo vítreo do drogado. Buracos negros e linhas de morte, as advertências de Artaud e de Michaux se juntam (mais técnicas, mais consistentes do que o discurso sócio-psicológico, ou psicanalítico, ou informacional, dos centros de assistência e de tratamento). Artaud dizendo: você não evitará as alucinações, as percepções errôneas, os fantasmas descarados ou os maus sentimentos, como tantos buracos negros nesse plano de consistência, pois tua consciência irá também nessa direção cheia de armadilhas56. Michaux dizendo: você não será mais senhor de tuas velocidades, você entrará numa corrida louca do imperceptível e da percepção, que gira mais em falso ainda porque tudo aí é relativo57.
Você irá inchar de si mesmo, perder o controle, estar num plano de consistência, num corpo sem órgãos, mas exatamente no lugar onde você não parará de deixá-los escapar, esvaziar, e de desfazer o que você faz, farrapo imóvel. Que palavras mais simples do que “percepções errôneas” (Artaud), “maus sentimentos” (Michaux), para dizer no entanto a coisa mais técnica: como a causalidade imanente do desejo, molecular e perceptiva, fracassa no agenciamento-droga. Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam fugir: uma segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma terrritorialização mais artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser considerados como precursores ou experimentadores que retraçam incansavelmente um novo caminho de vida; mas mesmo sua prudência não tem as condições da prudência. Então, ou eles recaem na coorte de falsos heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e um longo cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma tentativa que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou que não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado da droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um plano de consistência. Seria o erro dos drogados o de partir do zero a cada vez, seja para tomar droga, seja para abandoná-la, quando se precisaria partir para outra coisa, partir “no meio”, bifurcar no meio? Conseguir embriagar-se, mas com água pura (Henry Miller). Conseguir drogar-se, mas por abstenção, “tomar e abster-se, sobretudo abster-se”, eu sou um bebedor de água (Michaux). Chegar ao ponto onde a questão não é mais “drogar-se ou não”, mas que a droga tenha mudado suficientemente as condições gerais da percepção do espaço e do tempo, de modo que os não-drogados consigam passar pelos buracos do mundo e sobre as linhas de fuga, exatamente no lugar onde é preciso outros meios que não a droga. Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga que permite ficar sem ela. É covardia, coisa de aproveitador, esperar que os outros tenham se arriscado? Antes retomar uma empreitada sempre pelo meio, mudar seus meios. Necessidade de escolher, de selecionar a boa molécula, a molécula de água, a molécula de hidrogênio ou de hélio. Não é uma questão de modelo, todos os modelos são molares: é preciso determinar as moléculas e as partículas em relação às quais as “vizinhanças” (indiscernibilidade, devires) engendram-se e se definem. O agenciamento vital, o agenciamento-vida, é teoricamente ou logicamente possível com toda espécie de moléculas, por exemplo o silício. Mas acontece que esse agenciamento não é maquinicamente possível com o silício: a máquina abstrata não o deixa passar, porque ele não distribui as zonas de vizinhança que constroem o plano de consistência58. Veremos que as razões maquínicas são totalmente diferentes das razões ou possibilidades lógicas. Não se trata de conformar-se a um modelo, mas de insistir numa linha. Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptível, e para devir imperceptíveis, eles acreditaram que a droga lhes daria o plano, quando é o plano que deve destilar suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades e das vizinhanças.
Lembranças do segredo. — O segredo está numa relação privilegiada, mas muito variável, com a percepção e o imperceptível. O segredo concerne primeiro certos conteúdos. O conteúdo é grande demais para sua forma… ou os conteúdos têm neles mesmos uma forma, mas tal forma é recoberta, duplicada ou substituída por um simples continente, envoltório ou caixa, cujo papel é suprimir suas relações formais. São conteúdos que achamos bom isolar, ou disfarçar, por razões elas próprias variáveis. Mas, justamente, fazer uma lista dessas razões (o vergonhoso, o tesouro, o divino, etc.) não tem muito interesse, enquanto opomos o segredo e a sua descoberta, como numa máquina binária onde só haveria dois termos, segredo e divulgação, segredo e profanação. Com efeito, de um lado, o segredo como conteúdo se ultrapassa em direção a uma percepção do segredo, que não é menos secreta do que ele. Pouco importam os fins e se essa percepção tem por meta uma denúncia, uma divulgação final, um desvendamento. Do ponto de vista da anedota, a percepção do segredo é o contrário dele, mas do ponto de vista do conceito, ela faz parte dele. O que conta é que a própria percepção do segredo só pode ser secreta: o espião, o voyeur, o dedo-duro, o autor de cartas anônimas não são menos secretos do que aquilo que eles têm a descobrir, seja qual for sua meta ulterior. Haverá sempre uma mulher, uma criança, um pássaro para perceber secretamente o segredo. Haverá sempre uma percepção mais fina do que a sua, uma percepção de seu imperceptível, daquilo que há em sua caixa. Prevê-se até um segredo profissional para aqueles que estão em situação de perceber o segredo. E quem protege o segredo não está necessariamente ao par, mas também ele remete a uma percepção, pois tem que perceber e detectar aqueles que querem descobrir o segredo (contra-espionagem). Há, portanto, uma primeira direção, na qual o segredo vai no sentido de uma percepção não menos secreta, uma percepção que se quereria por sua vez imperceptível. Toda espécie de figuras muito diferentes podem girar em torno desse primeiro ponto. Por outro lado, há um segundo ponto que tampouco é separável do segredo como conteúdo: a maneira pela qual ele se impõe e se espalha. Aqui ainda, sejam quais forem as finalidades ou os resultados, o segredo tem uma maneira de se espalhar que é por sua vez tomada no segredo. O segredo como secreção. É preciso que o segredo se insira, se insinue, se introduza entre as formas públicas, faça pressão sobre elas e faça agir sujeitos conhecidos (influência do tipo “lobby”, mesmo que este não seja em si mesmo uma sociedade secreta). Em suma, o segredo, definido como conteúdo que escondeu sua forma em proveito de um simples continente, é inseparável de dois movimentos que podem acidentalmente interromper seu curso ou traí-lo, mas fazem parte dele essencialmente: algo deve transpirar da caixa, algo será percebido através da caixa ou na caixa entreaberta. O segredo foi inventado pela sociedade, é uma noção social ou sociológica. Todo segredo é um agenciamento coletivo. O segredo não é absolutamente uma noção estática ou imobilizada, só os devires são secretos; o segredo tem um devir. O segredo tem sua origem na máquina de guerra, é ela que traz o segredo, com seus devires-mulheres, seus devires-crianças, seus devires-animais59. Uma sociedade secreta sempre age na sociedade como máquina de guerra. Os sociólogos que se ocuparam das sociedades secretas destacaram muitas leis dessas sociedades, proteção, igualização e hierarquia, silêncio, ritual, desindividuação, centralização, autonomia, compartimentação, etc.60
Mas talvez eles não tenham dado importância suficiente às duas principais leis que regem o movimento do conteúdo: 1) Toda sociedade secreta engloba uma sociedade encoberta ainda mais secreta, que é depositária do segredo, ou que o protege, ou que executa as sanções de sua divulgação (ora, não há qualquer petição de princípio em definir a sociedade secreta por sua sociedade secreta encoberta: uma sociedade é secreta a partir do momento em que ela comporta essa duplicação, essa seção especial); 2) Toda sociedade secreta comporta seu modo de ação, ele próprio secreto, por influência, deslizamento, insinuação, transpiração, pressão, irradiação negra, de onde nascem “as senhas” e as linguagens secretas (não há nisso contradição alguma; a sociedade secreta não pode viver fora do projeto universal de penetrar toda a sociedade, de insinuar-se em todas as formas da sociedade, desordenando sua hierarquia e sua segmentação: a hierarquia secreta conjuga-se com uma conspiração dos iguais; a sociedade secreta ordena que seus membros estejam na sociedade como peixes na água, mas ela também deve ser como a água entre os peixes; ela necessita da cumplicidade de toda uma sociedade ambiente). Vê-se bem isso em casos tão diferentes quanto o são as sociedades de gangsters nos Estados Unidos, ou as sociedades de homens-animais na África: de um lado, o modo de influência da sociedade secreta e de seus chefes sobre os homens públicos ou políticos do entorno; de outro lado, o modo de duplicação da sociedade secreta numa sociedade encoberta, que pode ser feita de uma seção especial de pistoleiros ou de guardas61. Influência e duplicação, secreção e concreção, todo segredo avança assim entre dois “discretos” que, aliás, em alguns casos, podem encontrar-se, confundir-se. O segredo de criança combina maravilhosamente esses elementos: o segredo como conteúdo numa caixa, a influência ou a propagação secreta do segredo, a percepção secreta do segredo (o segredo de criança não é feito com segredos de adulto miniaturizados, mas é necessariamente acompanhado por uma percepção secreta do segredo de adulto). Uma criança descobre um segredo…
Mas o devir do segredo leva-a a não contentar-se em esconder sua forma num simples continente ou de trocá-la por um continente. E preciso agora que o segredo adquira sua própria forma como segredo. O segredo eleva-se do conteúdo finito à forma infinita do segredo. E aqui que o segredo atinge o imperceptível absoluto, ao invés de remeter a todo um jogo de percepções e reações relativas. Vamos de um conteúdo bem determinado, localizado ou passado, à forma geral a priori de um algo que se passou, não localizável. Vai-se do segredo definido como conteúdo histérico de infância ao segredo definido como forma paranóica eminentemente viril. Reencontra-se sob essa forma até os dois concomitantes do segredo, a percepção secreta e o modo de ação, a influência secreta, mas esses concomitantes tornaram-se “traços” da forma, traços que não param de reconstituí-la, reformá-la, recarregá-la. De um lado, o paranóico denuncia o complô internacional daqueles que roubam seus segredos, seus pensamentos os mais íntimos; ou então declara seu dom de perceber os segredos do outro antes que estejam formados (o ciumento paranóico não capta o outro como escapando dele, mas, ao contrário, adivinha ou prevê sua menor intenção). De outro lado, o paranóico age ou padece por irradiações que ele emite ou recebe (dos raios de Raymond Roussel aos de Schreber). A influência por irradiação e a duplicação por roubo ou eco são agora o que dá ao segredo sua forma infinita, onde as percepções como as ações passam para o imperceptível. O juízo-julgamento do paranóico é como uma antecipação da percepção, que substitui as pesquisas empíricas das caixas e seu conteúdo: culpado a priori, e de todas as maneiras! (tal como a evolução do narrador em La recherche em relação a Albertine). Pode-se dizer sumariamente que a psicanálise foi de uma concepção histérica a uma concepção cada vez mais paranóica do segredo62. Psicanálise interminável: o Inconsciente recebeu a incumbência cada vez mais pesada de ser ele próprio a forma infinita do segredo, ao invés de ser apenas uma caixa de segredos. Você dirá tudo, mas, ao dizer tudo, você não dirá nada, pois é necessário toda a “arte” do psicanalista para medir seus conteúdos pela forma pura. No entanto, nesse ponto, uma aventura inevitável acontece, quando o segredo é assim elevado à forma. Quando a pergunta “O que se passou?” atinge essa forma viril infinita, a resposta é forçosamente que nada se passou, destruindo forma e conteúdo. A notícia de que o segredo dos homens não era nada, absolutamente nada na verdade, espalha-se rapidamente. Édipo, o falo, a castração, “o espinho na carne”, era isso o segredo? É de fazer rirem as mulheres, as crianças, os loucos e as moléculas.
Quanto mais se faz dele uma forma organizadora estruturante, mais o segredo fica mirrado e espalhado por toda a parte, mais seu conteúdo torna-se molecular, ao mesmo tempo que sua forma se dissolve. Era realmente pouca coisa, como diz Jocasta. Nem por isso o segredo desaparece, mas ele toma agora um estatuto mais feminino. O que já havia no segredo paranóico do presidente Schreber, senão um devir feminino, um devir-mulher? É que as mulheres não têm absolutamente a mesma maneira de tratar o segredo (a não ser quando elas reconstituem uma imagem invertida do segredo viril, uma espécie de segredo de gineceu). Os homens as acusam ora por sua indiscrição, seu falatório, ora por sua falta de solidariedade, sua traição. No entanto, é curioso como a mulher pode ser secreta não escondendo nada, à força de transparência, inocência e velocidade. O agenciamento complexo do segredo, no amor cortês, é propriamente feminino e opera na maior transparência. Celeridade contra gravidade. Celeridade de uma máquina de guerra contra gravidade de um aparelho de Estado. Os homens tomam uma atitude grave, cavaleiros do segredo, “vejam sob que peso eu vergo, minha gravidade, minha discrição”, mas eles acabam dizendo tudo, e não era nada. Há mulheres, ao contrário, que dizem tudo, falam até com uma terrível tecnicidade; no entanto, no fim, não se saberá nada a mais do que no começo; terão tudo escondido por celeridade, limpidez. Elas não têm segredo, porque tornaram-se, elas próprias, um segredo. Seriam mais políticas do que nós? Ifigênia. Inocente a priori, é isto que a moça reivindica por sua vez, contra o julgamento proferido pelos homens: “Culpado a priori”… É aí que o segredo atinge um último estado: seu conteúdo é molecularizado, tornou-se molecular, ao mesmo tempo que sua forma se desfaz para tornar-se uma pura linha móvel, — no sentido em que se pode dizer de tal linha que é o “segredo” de um pintor, ou de tal célula rítmica, de tal molécula sonora, que não constitui um tema ou uma forma, que é o “segredo” de um músico.

Se um escritor teve de se haver com o segredo, este foi Henry James. Ele tem toda uma evolução a esse respeito, que é como que a perfeição de sua arte. Primeiro, ele busca o segredo em conteúdos, mesmo insignificantes, entreabertos, entrepercebidos. Depois, ele evoca a possibilidade de uma forma infinita do segredo que nem precisaria mais de conteúdo e que teria conquistado o imperceptível. Mas ele só evoca essa possibilidade para colocar a pergunta: o segredo está no conteúdo ou na forma? — e a resposta já está dada: nem em um nem no outro61 .
E que James faz parte desses escritores tomados num devir-mulher irresistível. Ele não cessará de perseguir sua meta, e de inventar os meios técnicos necessários. Molecularizar o conteúdo do segredo, linearizar a forma. James terá explorado tudo, do devir-criança do segredo (sempre uma criança que descobre segredos, o que sabia Maisie) ao devir-mulher do segredo (um segredo por transparência, e que é tão-somente uma linha pura, mal deixando o traço de sua passagem, a admirável Daisy Miller). James está menos próximo de Proust do que se diz; é ele que faz valer o grito: “Inocente a priori!” (Daisy só pedia um pouco de estima, ela teria dado o seu amor por isso…) contra o “Culpado a priori” que condena Albertine. O que conta no segredo são menos seus três estados, conteúdo de criança, forma infinita viril, pura linha feminina, do que os devires que estão ligados a ele, o devir-criança do segredo, seu devir-feminino, seu devir-molecular — lá onde precisamente o segredo já não tem conteúdo nem forma; o imperceptível enfim percebido, o clandestino que nada mais tem a esconder. Da eminência parda à imanência parda. Édipo passa pelos três segredos, o segredo da esfinge cuja caixa ele desvenda, o segredo que pesa sobre ele como a forma infinita de sua própria culpabilidade, enfim o segredo em Colona que o torna inacessível e confunde-se com a linha pura de sua fuga e de seu exílio; ele, que nada mais tem a esconder ou que, como um velho ator do Nô, tem tão-somente uma máscara de moça para cobrir sua ausência de rosto. Alguns podem falar, nada esconder, não mentir: eles são secretos por transparência, impenetráveis como a água, incompreensíveis na verdade, enquanto que os outros têm um segredo sempre desvendado, ainda que eles o cerquem com um muro espesso ou o elevem à forma infinita.
Lembranças e devires, pontos e blocos. — Por que há tantos devires do homem, mas não um devir-homem? É primeiro porque o homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário. Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso. Não se trata de saber se há mais mosquitos ou moscas do que homens, mas como “o homem” constituiu no universo um padrão em relação ao qual os homens formam necessariamente (analiticamente) uma maioria. Da mesma forma que a maioria na cidade supõe um direito de voto, e não se estabelece somente entre aqueles que possuem esse direito, mas se exerce sobre aqueles que não o possuem, seja qual for seu número, a maioria no universo supõe já dados o direito ou o poder do homem64. É nesse sentido que as mulheres, as crianças, e também os animais, os vegetais, as moléculas são minoritários. É talvez até a situação particular da mulher em relação ao padrão-homem que faz com que todos os devires, sendo minoritários, passem por um devir-mulher. No entanto, é preciso não confundir “minoritário” enquanto devir ou processo, e “minoria” como conjunto ou estado. Os judeus, os ciganos, etc., podem formar minorias nessas ou naquelas condições; ainda não é o suficiente para fazer delas devires. Reterritorializamo-nos, ou nos deixamos reterritorializar numa minoria como estado; mas desterritorializamo-nos num devir. Até os negros, diziam os Black Panthers, terão que devir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher. Mesmo os judeus terão que devir-judeu (não basta certamente um estado). Mas, se é assim, o devir-judeu afeta necessariamente o não-judeu tanto quanto o judeu…, etc. O devir-mulher afeta necessariamente os homens tanto quanto as mulheres. De uma certa maneira, é sempre “homem” que é o sujeito de um devir; mas ele só é um tal sujeito, ao entrar num devir-minoritário que o arranca de sua identidade maior. Como no romance de Arthur Miller, Focus, ou no filme de Losey, M. Klein, é o não-judeu que se torna judeu, que é tomado, levado por esse devir, quando ele é arrancado de seu metro padrão. Inversamente, se os próprios judeus têm que devir-judeu, as mulheres que devir-mulher, as crianças que devir-criança, os negros que devir-negro, é porque só uma minoria pode servir de termo médium ativo ao devir, mas em condições tais que ela pare por sua vez de ser um conjunto definível em relação à maioria. O devir-judeu, o devir-mulher, etc., implicam, portanto, a simultaneidade de um duplo movimento, um movimento pelo qual um termo (o sujeito) se subtrai à maioria, e outro pelo qual um termo (o termo médium ou o agente) sai da minoria. Há um bloco de devir indissociável e assimétrico, um bloco de aliança: os dois “Monsieur Klein”, o judeu e o não judeu, entram num devir-judeu (o mesmo em Focus).
Uma mulher tem que devir-mulher, mas num devir-mulher do homem por inteiro. Um judeu torna-se judeu, mas num devir-judeu do não-judeu. Um devir minoritário só existe através de um termo médium e de um sujeito desterritorializados que são como seus elementos. Só há sujeito do devir como variável desterritorializada da maioria, e só há termo médium do devir como variável desterritorializante de uma minoria. O que nos precipita num devir pode ser qualquer coisa, a mais inesperada, a mais insignificante. Você não se desvia da maioria sem um pequeno detalhe que vai se pôr a estufar, e que lhe arrasta. É porque o herói de Focus, americano médio, precisa de óculos que dão a seu nariz um ar vagamente semita, é “por causa dos óculos” que ele será precipitado nessa estranha aventura do devir-judeu de um não-judeu. No caso, qualquer coisa serve, mas o caso revela-se político. Devir-minoritário é um caso político, e apela a todo um trabalho de potência, uma micropolítica ativa. É o contrário da macropolítica, e até da História, onde se trata de saber sobretudo como se vai conquistar ou obter uma maioria. Como dizia Faulkner, não havia outra escolha senão devir-negro, para não acabar fascista65. Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um passado da revolução; ele passa entre os dois. Todo devir é um bloco de coexistência. As sociedades ditas sem história colocam-se fora da história, não porque se contentariam em reproduzir modelos imutáveis ou porque seriam regidas por uma estrutura fixa, mas sim porque são sociedades de devir (sociedades de guerra, sociedades secretas, etc.). Só há história de maioria, ou de minorias definidas em relação à maioria. Mas “como conquistar a maioria” é um problema inteiramente secundário em relação aos caminhos do imperceptível.
Tentemos dizer as coisas de outro modo: não há devir-homem, porque o homem é a entidade molar por excelência, enquanto que os devires são moleculares. A função de rostidade mostrou-nos de que forma o homem constituía a maioria ou, antes, o padrão que a condicionava: branco, macho, adulto, “razoável”, etc., em suma o europeu médio qualquer, o sujeito de enunciação. Segundo a lei da arborescência, é esse Ponto central que se desloca em todo o espaço ou sobre toda a tela, e que vai alimentar a cada vez uma oposição distintiva conforme o traço de rostidade retido: assim macho-(fêmea); adulto-(criança); branco-(negro, amarelo ou vermelho); razoável-(animal). O ponto central, ou terceiro olho, tem portanto a propriedade de organizar as distribuições binárias nas máquinas duais, de se reproduzir no termo principal da oposição, ao mesmo tempo que a oposição inteira ressoa nele. Constituição de uma “maioria” como redundância. E o homem se constitui assim como uma gigantesca memória, com a posição do ponto central, sua freqüência, visto ser ele necessariamente reproduzido por cada ponto dominante, sua ressonância, dado que o conjunto dos pontos remete a ele. Fará parte da rede de arborescência toda linha que vai de um ponto a outro no conjunto do sistema molar, e define-se, pois, por pontos que respondem a essas condições memoriais de freqüência e de ressonância66

É a submissão da linha ao ponto que constitui a arborescência. É claro que a criança, a mulher, o negro têm lembranças; mas a Memória que recolhe essas lembranças não deixa de ser sua instância viril majoritária, instância que as toma como “lembranças de infância”, como lembranças conjugais ou coloniais. Pode-se operar por conjunção ou justaposição de pontos contíguos, em vez de por relação de pontos distantes: teremos então fantasmas, no lugar de lembranças. Assim, a mulher pode ter um ponto fêmea e um ponto macho unidos, e o homem um ponto macho e um ponto fêmea. A constituição desses híbridos, no entanto, não nos faz avançar mais no sentido de um verdadeiro devir (a bissexualidade, por exemplo, como o notam os psicanalistas, não impede absolutamente a prevalência do masculino ou a maioria do “falo”). Não se rompe com o esquema de arborescência, não se atinge o devir e nem o molecular, enquanto uma linha for remetida a dois pontos distantes, ou for composta de pontos contíguos. Uma linha de devir não se define nem por pontos que ela liga nem por pontos que a compõem: ao contrário, ela passa entre os pontos, ela só cresce pelo meio, e corre numa direção perpendicular aos pontos que distinguimos primeiro, transversal à relação localizável entre pontos contíguos ou distantes67.
Um ponto é sempre de origem. Mas uma linha de devir não tem nem começo nem fim, nem saída nem chegada, nem origem nem destino; e falar de ausência de origem, erigir a ausência de origem em origem, é um mau jogo de palavras. Uma linha de devir só tem um meio. O meio não é uma média, é um acelerado, é a velocidade absoluta do movimento. Um devir está sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio. Um devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois. Se o devir é um bloco (bloco-linha), é porque ele constitui uma zona de vizinhança e de indiscernibilidade, um no man’s land, uma relação não localizável arrastando os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a vizinhança do outro, — e a vizinhança-fronteira é tão indiferente à contigüidade quanto à distância. Na linha ou bloco do devir que une a vespa e a orquídea produz-se como que uma desterritorialização, da vespa enquanto ela se torna uma peça liberada do aparelho de reprodução da orquídea, mas também da orquídea enquanto ela se torna objeto de um orgasmo da própria vespa liberada de sua reprodução. Coexistência de dois movimentos assimétricos que fazem bloco numa linha de fuga onde se precipita a pressão seletiva. A linha, ou o bloco, não liga a vespa e a orquídea, como tampouco as conjuga ou as mistura: ela passa entre as duas, levando-as para uma vizinhança comum onde desaparece a discernibilidade dos pontos. O sistema-linha (ou bloco) do devir opõe-se ao sistema-ponto da memória. O devir é um movimento pelo qual a linha libera-se do ponto, e torna os pontos indiscerníveís: rizoma, o oposto da arborescência, livrar-se da arborescência. O devir é uma anti-memória. Sem dúvida há uma memória molecular, mas como fator de integração a um sistema molar ou majoritário. A lembrança tem sempre uma função de reterritorialização. Ao contrário, um vetor de desterritorialização não é absolutamente indeterminado, mas diretamente conectado nos níveis moleculares, e tanto mais conectado quanto mais desterritorializado: é a desterritorialização que faz “manter-se” juntos os componentes moleculares. Opõe-se desse ponto de vista um bloco de infância, ou um devir-criança, à lembrança de infância: “uma” criança molecular é produzida… “uma” criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos — contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro. “Será a infância, mas não deve ser minha infância”, escreve Virgínia Woolf. (Orlando já não operava por lembranças, mas por blocos, blocos de idades, blocos de épocas, blocos de reinos, blocos de sexos, formando igualmente devires entre as coisas, ou linhas de desterritorialização68.) Cada vez que empregamos a palavra “lembrança” nas páginas precedentes foi, portanto, erroneamente, queríamos dizer “devir”, diríamos devir.
Se a linha opõe-se ao ponto (ou o bloco à lembrança, o devir à memória), não é de maneira absoluta: um sistema pontual comporta uma certa utilização das linhas, e o próprio bloco atribui ao ponto funções novas. Num sistema pontual, com efeito, um ponto remete primeiro a coordenadas lineares. E não só representamos uma linha horizontal e uma linha vertical, mas a vertical desloca-se paralelamente a si mesma, e a horizontal se sobrepõe a outras horizontais, de modo que todo ponto é determinado em relação às duas coordenadas de base, mas também marcado numa linha horizontal de sobreposição, e numa linha ou num plano vertical de deslocamento. Enfim, dois pontos estão ligados quando uma linha qualquer é traçada de um ao outro. Um sistema será dito pontual enquanto as linhas forem consideradas nele como coordenadas, ou como ligações localizáveis: por exemplo, os sistemas de arborescência, ou os sistemas molares e memoriais em geral, são pontuais. A Memória tem uma organização pontual porque todo o presente remete ao mesmo tempo à linha horizontal do curso do tempo (cinemática), que vai de um antigo presente ao atual, a uma linha vertical da ordem do tempo (estratigráfica), que vai do presente ao passado ou à representação do antigo presente. Sem dúvida, é um esquema de base que não se desenvolve sem grandes complicações, mas que reencontraremos nas representações da arte formando uma “didática”, isto é, uma mnemotecnia. A representação musical traça uma linha horizontal, melódica, a linha baixa, à qual se sobrepõem outras linhas melódicas, onde pontos são determinados, que entram de uma linha à outra em relações de contraponto; de outro lado, uma linha ou um plano vertical, harmônico, que se desloca ao longo das horizontais, mas não depende mais delas, indo de cima para baixo, e fixando um acorde capaz de encadear-se com os seguintes. A representação pictural, com seus meios próprios, tem uma forma análoga: não só porque o quadro tem uma vertical e uma horizontal, mas porque os traços e as cores, cada um por sua conta, remetem a verticais de deslocamento e a horizontais de sobreposição (assim, a vertical e a forma fria, ou o branco, ou a luz, ou o tonal; a horizontal e a forma quente, ou o negro, o cromático, o modal, etc). Para ficar apenas em exemplos bastante recentes, vemos isso bem nos sistemas didáticos como o de Kandinsky, de Klee, de Mondrian, que implicam necessariamente uma confrontação com a música.

Resumamos as características principais de um sistema pontual: 1) tais sistemas comportam duas linhas de base, horizontal e vertical, que servem de coordenadas para a determinação de pontos; 2) a linha horizontal pode sobrepor-se verticalmente, a linha vertical deslocar-se horizontalmente, de tal maneira que novos pontos sejam produzidos ou reproduzidos, em condições de freqüência horizontal e ressonância vertical; 3) de um ponto ao outro, uma linha pode (ou não) ser traçada, mas como ligação localizável; as diagonais desempenharão então o papel de ligações para pontos de nível e de momento diferentes, instaurando por sua vez freqüências e ressonâncias com esses pontos da horizontal e da vertical, pontos variáveis, contíguos ou distantes69. — Estes sistemas são arborescentes, memoriais, molares, estruturais, de territorialização ou reterritorialização. A linha e a diagonal permanecem inteiramente subordinadas ao ponto, porque servem de coordenadas a um ponto, ou de ligações localizáveis para um ponto e um outro, de um ponto a outro.
O que se opõe ao sistema pontual são sistemas lineares ou, antes, multilineares. Liberar a linha, liberar a diagonal: não há músico nem pintor que não tenham essa intenção. Elabora-se um sistema pontual ou uma representação didática, mas com o objetivo de fazê-los detonar, de fazer passar um abalo sísmico. Um sistema pontual será mais interessante à medida que um músico, um pintor, um escritor, um filósofo se oponha a ele, e até o fabrique para opor-se a ele, como um trampolim para saltar. A história só é feita por aqueles que se opõem à história (e não por aqueles que se inserem nela, ou mesmo a remanejam). Não é por provocação, mas porque o sistema pontual, que encontravam todo pronto ou que eles próprios inventavam, devia permitir essa operação: liberar a linha e a diagonal, traçar a linha em vez de coordenadas, produzir uma diagonal imperceptível, em vez de se agarrar a uma vertical e a uma horizontal mesmo que complicadas ou reformadas. Isso recai sempre na História, mas nunca veio dela. A história pode tentar à vontade romper seus laços com a memória; ela pode complicar os esquemas de memória, superpor e deslocar as coordenadas, sublinhar as ligações ou aprofundar os cortes: a fronteira, no entanto, não se encontra aí. A fronteira não passa entre a história e a memória, mas entre os sistemas pontuais “história-memória” e os agenciamentos multilineares ou diagonais, que não são absolutamente o eterno, mas sim devir, um pouco de devir em estado puro, trans-histórico. Não há ato de criação que não seja trans-histórico, e que não pegue ao contrário, ou não passe por uma linha liberada. Nietzsche opõe a história, não ao eterno, mas ao sub-histórico, ou ao sobre-histórico: o Intempestivo, outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência). “O que é não histórico se parece com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se, para desaparecer de novo com o aniquilamento dessa atmosfera. (…) Onde há atos que o homem tenha sido capaz de realizar sem estar primeiro envolvido nessa nuvem negra não histórica?”70 As criações são como linhas abstratas mutantes que se livraram da incumbência de representar um mundo, precisamente porque elas agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode recuperar ou recolocar nos sistemas pontuais.
Quando Boulez se faz historiador da música, é para mostrar como, cada vez de maneira bem diferente, um grande músico inventa e faz passar uma espécie de diagonal entre a vertical harmônica e o horizonte melódico. E cada vez é uma outra diagonal, uma outra técnica e uma criação. Então, nessa linha transversal que é realmente de desterritorialização, move-se um bloco sonoro, que não tem mais ponto de origem, pois ele está sempre, e já, no meio da linha; que não tem mais coordenadas horizontais e verticais, pois ele cria suas próprias coordenadas; que não forma mais ligações localizáveis de um ponto a outro, porque ele está num “tempo não pulsado”: um bloco rítmico desterritorializado, abandonando pontos, coordenadas e medida, como um barco bêbado que se confunde, ele próprio, com a linha, ou que traça um plano de consistência. Velocidades e lentidões inserem-se na forma musical, impelindo-a ora a uma proliferação, a microproliferações lineares, ora a uma extinção, uma abolição sonora, involução, e os dois ao mesmo tempo. O músico pode dizer por excelência: “Odeio a memória, odeio a lembrança”, e isso porque ele afirma a potência do devir. Pode-se encontrar o quadro exemplar de uma tal diagonal, de uma linha-bloco, na escola vienense. Mas poder-se-ia dizer igualmente que a escola vienense encontra um novo sistema de territorialização, de pontos, de verticais e de horizontais que a situa na História. Uma outra tentativa, um outro ato criador vem depois. O importante é que todo músico procedeu sempre assim: traçar sua diagonal, mesmo que frágil, fora dos pontos, fora das coordenadas e das ligações localizáveis, para fazer flutuar um bloco sonoro numa linha liberada, criada, e soltar no espaço esse bloco móvel e mutante, uma hecceidade (por exemplo, o cromatismo, os agregados e notas complexas, mas já todos os recursos e possibilidades da polifonia, etc.71 ). Pôde-se falar de “vetores oblíquos” a propósito do órgão. A diagonal é freqüentemente feita de linhas e espaços sonoros extremamente complexos. Estaria aí o segredo de uma pequena frase ou de um bloco rítmico? Sem dúvida, então, o ponto conquista uma nova função criadora essencial: não se trata mais simplesmente do destino inevitável que reconstitui um sistema pontual; ao contrário, é agora o ponto que se encontra subordinado à linha, e é ele que marca a proliferação da linha, ou seu brusco desvio, sua precipitação, sua desaceleração, sua fúria ou sua agonia. Os “microblocos” de Mozart. Acontece até de o bloco ses reduzido a um ponto, como a uma só nota (bloco-ponto): o Si de Berg em Wozzeck, o Lá de Schumann. Homenagem a Schumann, loucura de Schumann: através do quadriculado da orquestração, o violoncelo erra, e traça sua diagonal onde passa o bloco sonoro desterritorializado; ou uma espécie de ritornelo extremamente sóbrio é “tratado” por uma linha melódica e uma arquitetura polifônica muito elaboradas.
Tudo se faz ao mesmo tempo, num sistema multilinear: a linha libera-se do ponto como origem; a diagonal libera-se da vertical e da horizontal como coordenadas; da mesma forma, a transversal libera-se da diagonal como ligação localizável de um ponto a outro; em suma, uma linha-bloco passa no meio dos sons, e brota ela mesma por seu próprio meio não localizável. O bloco sonoro é o intermezzo. Corpo sem órgãos, anti-memória, que passa através da organização musical, e por isso mais sonora: “O corpo schumanniano não pára no lugar. (…) O intermezzo [é] consubstanciai a toda obra. (…) No limite, só há intermezzi. (…) O corpo schumanniano só conhece bifurcações: ele não se constrói, ele diverge, perpetuamente, ao sabor de uma acumulação de intermédios. (…) A batida schumanniana é desnorteada, mas ela é também codificada; e é porque o desnorteio das batidas mantém-se aparentemente nos limites de uma língua sensata, que ele passa ordinariamente despercebido. (…) Imaginemos para a tonalidade dois estatutos contraditórios e, no entanto, concomitantes: de um lado, uma tela (…), uma língua destinada a articular o corpo segundo uma organização conhecida (…), de um outro lado, contraditoriamente, a tonalidade torna-se a serva hábil das batidas que num outro nível ela pretende domesticar”72.
Será a mesma coisa, estritamente a mesma coisa, em pintura? Com efeito, não é o ponto que faz a linha, é a linha que arrasta o ponto desterritorializado, que o arrasta para sua influência exterior; então, a linha não vai de um ponto a outro, mas entre os pontos ela corre numa outra direção que os torna indiscerníveis. A linha tornou-se a diagonal que se libera da vertical e da horizontal; mas a diagonal já se tornou a transversal, a semi-diagonal ou a direita livre, a linha quebrada ou angular, ou então a curva, sempre no meio delas mesmas. Entre o branco vertical e o negro horizontal, o cinza de Klee, o vermelho de Kandinsky, o violeta de Monet, cada um forma um bloco de cor. A linha sem origem, pois ela começou sempre fora do quadro que apenas a toma pelo meio; sem coordenadas, pois ela própria se confunde com um plano de consistência onde ela flutua e que ela cria; sem ligação localizável, pois ela perdeu não só sua função representativa mas toda função de cercar uma forma qualquer — a linha tornou-se através disso abstrata, verdadeiramente abstrata e mutante, bloco visual, e o ponto, nessas condições, encontra de novo funções criadoras, como ponto-cor ou ponto-linha73. A linha está entre os pontos, no meio dos pontos, e não de um ponto a outro. Ela não cerca mais um contorno. “Ele não pintava as coisas, mas entre as coisas.” Não há problema mais falso em pintura do que o da profundidade e, particularmente, o da perspectiva, pois a perspectiva é tão somente uma maneira histórica de ocupar as diagonais ou transversais, as linhas de fuga, isto é, de reterritorializar o bloco visual móvel. Dizemos “ocupar” no sentido de dar uma ocupação, fixar urna memória num código, atribuir uma função. Mas as linhas de fuga, as transversais, são suscetíveis de muitas outras funções além dessa função molar. Em vez de as linhas de fuga serem feitas para representar a profundidade, são elas que inventam além do mais a possibilidade de uma tal representação, que só as ocupa um instante, em tal momento. A perspectiva, e até a profundidade, são a territorialização das linhas de fuga que, sozinhas, criavam a pintura, levando-a mais longe. A perspectiva dita central, especialmente, precipita num buraco negro pontual a multiplicidade das fugas e o dinamismo das linhas. É verdade que, inversamente, os problemas de perspectiva desencadearam todo um pululamento de linhas criadoras, todo um afrouxamento de blocos visuais, no momento mesmo em que eles pretendiam tornar-se seus senhores. Através de cada um de seus atos de criação, terá a pintura se engajado num devir tão intenso quanto a música?
Devir música. — A respeito da música ocidental (mas as outras músicas encontram-se diante de um problema análogo, sob outras condições, e que elas resolvem de outro modo), tentamos definir um bloco de devir no nível da expressão, um bloco de expressão, graças às transversais que não param de escapar das coordenadas ou dos sistemas pontuais funcionando nesse ou naquele momento como códigos musicais. É claro que um bloco de conteúdo corresponde a esse bloco de expressão. Não é nem mesmo uma correspondência; não haveria bloco móvel se um conteúdo, ele próprio musical (não um sujeito nem um tema) não interferisse sem parar na expressão. Ora, o que está em causa na música, qual é seu conteúdo indissociável da expressão sonora? É difícil dizer, mas é algo como: uma criança morre, uma criança brinca, uma mulher nasce, uma mulher morre, um pássaro chega, um pássaro se vai. Queremos dizer que não há aí temas acidentais da música, mesmo que se possa multiplicar os exemplos, e menos ainda exercícios imitativos, mas sim algo de essencial. Por que uma criança, uma mulher, um pássaro? É porque a expressão musical é inseparável de um devir-mulher, um devir-criança, um devir-animal que constituem seu conteúdo. Por que a criança morre, ou o pássaro cai, como que atravessado por uma flecha? Exatamente por causa do “perigo” próprio a toda linha que escapa, a toda linha de fuga ou de desterritorialização criadora: virar destruição, abolição. Melisande, uma mulher-criança, um segredo, morre duas vezes (“é a vez agora da pobre pequena”). A música nunca é trágica, a música é alegria. Mas acontece, necessariamente, de ela nos dar o gosto de morrer, menos de felicidade do que de morrer com felicidade, desvanecer. Não em virtude de um instinto de morte que ela suscitaria em nós, mas de uma dimensão própria a seu agenciamento sonoro, à sua máquina sonora, o momento que é preciso afrontar, quando a transversal vira linha de abolição. Paz e exasperação74. A música tem sede de destruição, todos os tipos de destruição, extinção, quebra, desmembramento. Não está aí seu “fascismo” potencial? Mas, a cada vez que um músico escreve In memoriam, trata-se não de um motivo de inspiração, uma lembrança, mas, ao contrário, de um devir que afrontou tão-somente seu próprio perigo, mesmo que tenha de cair para daí renascer: um devir-criança, um devir-mulher, um devir-animal, uma vez que eles são o próprio conteúdo da música e vão até a morte.
Diríamos que o ritornelo é o conteúdo propriamente musical, o bloco de conteúdo próprio da música. Uma criança tranquiliza-se no escuro, ou bate palmas, ou inventa um passo, adapta-o aos traços da calçada, ou salmodia “Fort-Da” (os psicanalistas falam muito mal do Fort-Da, querendo encontrar aí uma oposição fonológica ou um componente simbólico para o inconsciente-linguagem, quando o que se tem aí é um ritornelo). Trá lá lá. Uma mulher cantarola, “eu a ouvia cantarolando uma ária, com voz baixa, suavemente”. Um pássaro lança seu ritornelo. A música inteira é atravessada pelo canto dos pássaros, de mil maneiras, de Jannequin a Messiaen. Frrr, Frrr. A música é atravessada por blocos de infância e de feminilidade. A música é atravessada por todas as minorias e, no entanto, compõe uma potência imensa. Ritornelos de crianças, de mulheres, de etnias, de territórios, de amor e de destruição: nascimento do ritmo. A obra de Schumann é feita de ritornelos, de blocos de infância, que ele submete a um tratamento muito especial: seu próprio devir-criança, seu próprio devir-mulher, Clara. Poderíamos estabelecer o catálogo da utilização diagonal ou transversal do ritornelo na história da música, todos os Jogos de infância e os Kinderszenen, todos os cantos de pássaro. O catálogo seria inútil, porque faria supor uma multiplicação de exemplos como se fossem concernentes a temas, sujeitos, motivos, quando se trata, na verdade, do mais essencial e mais necessário conteúdo da música. O motivo do ritornelo pode ser a angústia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o território…, mas quanto ao ritornelo, ele é o conteúdo da música.

Não dizemos absolutamente que o ritornelo seja a origem da música, ou que a música comece com ele. Não se sabe muito bem quando começa a música. O ritornelo seria antes um meio de impedir, de conjurar a música ou de poder ficar sem ela. Mas a música existe porque o ritornelo existe também, porque a música toma, apodera-se do ritornelo como conteúdo numa forma de expressão, porque faz bloco com ele para arrastá-lo para outro lugar. O ritornelo de criança, que não é música, faz bloco com o devir-criança da música: uma vez mais foi necessária essa composição assimétrica. “Ah vous diraisje maman” em Mozart, os ritornelos de Mozart. Tema em Dó seguido de doze variações: não só cada nota do tema é duplicada, mas o tema duplica-se no interior. A música submete o ritornelo a esse tratamento muito especial da diagonal ou da transversal, ela o arranca de sua territorialidade. A música é a operação ativa, criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo. Enquanto que o ritornelo é essencialmente territorial, territorializante ou reterritorializante, a música faz dele um conteúdo desterritorializado para uma forma de expressão desterritorializante. Que nos perdoem uma frase dessas, seria preciso que ele fosse musical, escrevê-lo em música, o que fazem os músicos. Ao invés disso, damos um exemplo figurativo: a Berceuse de Mussorgski, em Chants et danses de la mort, apresenta uma mãe extenuada que vela seu filho doente; ela se faz revezar por uma visitante, a Morte, que canta uma canção de ninar na qual cada estrofe termina por um ritornelo sóbrio obsessivo, ritmo repetitivo de uma só nota, bloco-ponto, “psiu, criancinha, dorme minha criancinha” (não só a criança morre, mas a desterritorialização do ritornelo é duplicada pela Morte em pessoa que substitui a mãe).

A situação da pintura é semelhante, e de que forma? Não acreditamos absolutamente num sistema das belas-artes, mas em problemas muito diferentes que encontram suas soluções em artes heterogêneas. A Arte nos parece um falso conceito, unicamente nominal; o que não impede de fazer uso simultâneo das artes numa multiplicidade determinável. A pintura inscreve-se num “problema” que é o do rosto-paisagem. A música, num problema totalmente outro, que é o do ritornelo. Cada uma surge num certo momento e em certas condições, na linha de seu problema; mas nenhuma correspondência simbólica ou estrutural é possível entre as duas, senão quando as traduzimos em sistemas pontuais. Do lado do problema rosto-paisagem, tínhamos distinguido como que três estados: 1) semióticas de corporeidade, silhuetas, posturas, cores e linhas (estas semióticas já estão presentes e abundantes nos animais, a cabeça neles faz parte do corpo, o corpo tem por correlato o meio, o biótipo; vê-se surgir aí linhas já muito puras, como nas condutas de “galhinho”); 2) uma organização de rosto, parede branca-buracos negros, face-olhos, ou face vista de perfil e olhos oblíquos (esta semiótica de rostidade tem por correlato a organização da paisagem: rostificação de todo o corpo e paisagificação de todos os meios, ponto central europeu o Cristo); 3) uma desterritorialização dos rostos e das paisagens, em proveito de dispositivos rastreadores, com linhas que não delimitam mais forma alguma, que não formam mais contorno algum, cores que não distribuem mais paisagem alguma (é a semiótica pictural, fazer fugir rosto e paisagem: exemplo, o que Mondrian chama de “paisagem”, e que ele tem razão de chamar assim, pura paisagem, já que desterritorializada até o absoluto). — Para facilitar, apresentaremos três estados bem distintos e sucessivos, mas a título provisório. Não podemos decidir se os animais já não fazem pintura, embora eles não pintem sobre quadros, e mesmo quando hormônios induzem suas cores e suas linhas: mesmo aí, uma distinção bem marcada animal-homem seria pouco fundada. Inversamente, devemos dizer que a pintura não começa com a arte dita abstrata, mas recria as silhuetas e as posturas da corporeidade, e também já opera plenamente na organização rosto-paisagem (como os pintores “trabalham” o rosto do Cristo, e o fazem fugir em todas as direções fora do código religioso). A pintura nunca terá deixado de ter como meta a desterritorialização dos rostos e paisagens, seja pela reativação da corporeidade, seja pela liberação das linhas e das cores, os dois ao mesmo tempo. Há muitos devires-animais, devires-mulher e criança na pintura. Ora, o problema da música é diferente, se é verdade que seja o do ritornelo. Desterritorializar o ritornelo, inventar linhas de desterritorialização para o ritornelo, implica procedimentos e construções que nada têm a ver com os da pintura (a não ser vagas analogias, como os pintores tentaram às vezes). Sem dúvida, aqui ainda, não é certeza que se possa fazer passar uma fronteira entre o animal e o homem: não há pássaros músicos, como o pensa Messiaen, por diferença em relação a pássaros não-músicos? Será o ritornelo do pássaro forçosamente territorial, ou será que o pássaro já se serve dele em desterritorializações muito sutis, em linhas de fuga seletivas? Não é certamente a diferença do barulho e do som que permite definir a música, nem mesmo distinguir os pássaros músicos e os pássaros não-músicos, mas sim o trabalho do ritornelo: será que ele permanece territorial e territorializante, ou é arrastado num bloco móvel que traça uma transversal através de todas as coordenadas — e todos os intermediários entre os dois? A música é precisamente a aventura de um ritornelo: a maneira pela qual a música vira de novo ritornelo (em nossa cabeça, na cabeça de Swann, nos dispositivos pseudo-rastreadores da tevê e do rádio, um grande músico como prefixo musical, ou a musiquinha); a maneira pela qual ela se apropria do ritornelo, torna-o cada vez mais sóbrio, algumas notas, para levá-lo numa linha criadora com isso enriquecida, da qual não se vê nem a origem, nem o fim…

Leroi-Gourhan estabelecia uma distinção e uma correlação entre dois pólos, “mão-ferramenta” e “rosto-linguagem”. Mas tratava-se de distinguir uma forma de conteúdo e uma forma de expressão. Agora que consideramos expressões que têm seu conteúdo nelas mesmas, temos uma outra distinção: o rosto com seus correlatos visuais (olhos) remete à pintura; a voz remete à música com seus correlatos auditivos (a orelha é ela própria um ritornelo, ela tem a forma do ritornelo). A música é primeiro uma desterritorialização da voz, que se torna cada vez menos linguagem, assim como a pintura é uma desterritorialização do rosto. Ora, os traços de vocabilidade podem efetivamente ser indexados nos traços de rostidade, como quando se lê palavras no rosto; mas esses traços não têm correspondência, e cada vez menos, à medida que são levados pelos movimentos respectivos da música e da pintura. A voz está muito adiantada em relação ao rosto, muito na frente. Intitular uma obra musical Visage (rosto] parece nesse aspecto o maior paradoxo sonoro75.
Sendo assim, a única maneira de “arrumar” os dois problemas, o da pintura e o da música, é tomar um critério extrínseco à ficção de um sistema das belas-artes, comparando as forças de desterritorialização nos dois casos. Ora, parece que a música tem uma força desterritorializante muito maior, muito mais intensa e coletiva ao mesmo tempo, e a voz, igualmente, uma potência de ser desterritorializada muito maior. É talvez esse traço que explica a fascinação coletiva exercida pela música, e mesmo a potencialidade do perigo “fascista” do qual falávamos há pouco: a música, tambores, trombetas, arrasta os povos e os exércitos, numa corrida que pode ir até o abismo, muito mais do que o fazem os estandartes e as bandeiras, que são quadros, meios de classificação ou de reunião. Pode ser que os músicos sejam individualmente mais reacionários que os pintores, mais religiosos, menos “sociais”; mesmo assim, eles manejam uma força coletiva infinitamente superior à da pintura: “E uma ligação muito potente o coro formado pela assembléia do povo…” Pode-se sempre explicar essa força pelas condições materiais da emissão e da recepção musicais, mas o inverso é preferível, são antes essas condições que se explicam pela força de desterritorialização da música. Diríamos que a pintura e a música não correspondem aos mesmos limiares do ponto de vista de uma máquina abstrata mutante, ou que a máquina pictural e a máquina musical não têm o mesmo índice. Há um “atraso” da pintura em relação à música, como o constatava Klee, o mais músico dos pintores76. É talvez por isso que muitas pessoas preferem a pintura, ou que a estética tomou a pintura como modelo privilegiado: não há dúvida que ela dá menos “medo”. Mesmo suas relações com o capitalismo, e com as formações sociais, não são absolutamente do mesmo tipo.

Sem dúvida, em todos os casos, devemos fazer funcionar ao mesmo tempo fatores de territorialidade, de desterritorialização, mas também de reterritorialização. Os ritornelos do animal e da criança parecem territoriais: é por isso que eles não são “música”. Mas quando a música se apropria do ritornelo para desterritorializá-lo, e desterritorializar a voz, quando ela se apropria do ritornelo para fazê-lo correr num bloco sonoro e rítmico, quando o ritornelo “torna-se” Schumann ou Debussy, é através de um sistema de coordenadas harmônicas e melódicas onde a música se reterritorializa nela mesma, enquanto música. Inversamente, veremos que mesmo um ritornelo animal, em certos casos, já tinha forças de desterritorialização muito mais intensas do que as silhuetas, posturas e cores animais. E preciso, portanto, levar em conta muitos fatores: as territorialidades relativas, as desterritorializações respectivas, mas também as reterritorializações correlativas, e ainda muitos tipos de reterritorializações, por exemplo intrínsecas como as coordenadas musicais, ou extrínsecas como a decadência do ritornelo em refrão, ou da música em cançãozinha. Que não haja desterritorialização sem reterritorialização especial deve nos fazer pensar de outra maneira a correlação que subsiste sempre entre o molar e o molecular: nenhum fluxo, nenhum devir-molecular escapam de uma formação molar sem que componentes molares os acompanhem, formando passagens ou referências perceptíveis para processos imperceptíveis.

O devir-mulher, o devir-criança da música aparecem no problema de uma maquinação da voz. Maquinar a voz é a primeira operação musical. Sabe-se como o problema foi resolvido na música ocidental, na Inglaterra e na Itália, de duas maneiras diferentes: de um lado, a voz de cabeça da contralto, que canta “para além de sua voz”, ou cuja voz trabalha na cavidade dos selos paranasais, a parte anterior da garganta e o palato, sem apoiar-se no diafragma nem transpor os brônquios; por outro lado, a voz de ventre dos castrati, “mais forte, mais volumosa, mais lânguida”, como se eles tivessem dado uma matéria carnal ao imperceptível, ao impalpável e ao aéreo. Dominique Fernandez escreveu sobre isso um belo livro, onde, precavendo-se felizmente de qualquer consideração psicanalítica sobre uma ligação da música e da castração, mostra que o problema musical de uma maquinaria da voz implicava necessariamente a abolição da robusta máquina dual, isto é, da formação molar que distribui as vozes em “homem ou mulher”77.
Ser homem ou mulher não existe mais em música. Não é certeza, no entanto, que o mito do andrógino invocado por Fernandez seja suficiente. Não se trata de mito, mas de devir real. É preciso que a própria voz atinja um devir-mulher ou um devir-criança. E está nisso o prodigioso conteúdo da música. Sendo assim, como o nota Fernandez, não se trata de imitar a mulher ou de imitar a criança, mesmo se é uma criança que canta. É a própria voz musical que se torna criança, mas, ao mesmo tempo, a criança se torna sonora, puramente sonora. Jamais criança alguma teria podido fazê-lo ou, se o faz, é tornando-se também outra coisa que não criança, criança de um outro mundo estranhamente celeste e sensual. Em suma, a desterritorialização é dupla: a voz desterritorializa-se num devir-criança, mas a própria criança que ela se torna é desterritorializada, inengendrada, está em devir. “Asas deram impulso à criança”, diz Schumann. Reencontramos o mesmo movimento de ziguezague nos devires-animais da música: Mareei More mostra como a música de Mozart é atravessada por um devir-cavalo, ou por devires-pássaro. Mas nenhum músico se diverte “fazendo-se” de cavalo ou de pássaro. O bloco sonoro não tem por conteúdo um devir-animal sem que o animal ao mesmo tempo não se torne em sonoridade alguma outra coisa, algo de absoluto, a noite, a morte, a alegria — certamente não uma generalidade nem uma simplicidade, mas uma hecceidade, a morte que está aqui, a noite que está ali. A música toma por conteúdo um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as pequenas batidas de timbale, aladas como tamancos que vêm do céu ou do inferno; e os pássaros tomam expressão em grupetos (gruppeti), apojaturas, notas picadas que fazem deles almas78. O que forma a diagonal em Mozart são os acentos, primeiro os acentos. Se não seguimos os acentos, se não os observamos, recaímos num sistema pontual relativamente pobre.

O homem músico desterritorializa-se no pássaro, mas é um pássaro ele mesmo desterritorializado, “transfigurado”, um pássaro celeste que entra num devir tanto quanto aquilo que entra num devir com ele. O capitão Ahab está engajado num devir-baleia irresistível com Moby Dick; mas é preciso ao mesmo tempo que o animal, Moby Dick, torne-se pura brancura insustentável, pura muralha branca resplandecente, puro fio de prata que se estende e se torna flexível “como” uma moça, ou se retorce como um chicote, ou ergue-se como um parapeito. Pode ser que a literatura alcance às vezes a pintura, e até a música? E que a pintura alcance a música? (More cita os pássaros de Klee; em compensação, ele não compreende Messiaen quanto ao canto dos pássaros.) Nenhuma arte é imitativa, não pode ser imitativa ou figurativa: suponhamos que um pintor “represente” um pássaro; de fato, é um devir-pássaro que só pode acontecer à medida que o próprio pássaro esteja em vias de devir outra coisa, pura linha e pura cor. De modo que a imitação destrói a si própria, à medida que aquele que imita entra sem saber num devir que se conjuga com o devir daquilo que ele imita, sem que ele o saiba. Só se imita, portanto, caso se fracasse, quando se fracassa. Nem o pintor e nem o músico imitam um animal; eles é que entram em um devir-animal, ao mesmo tempo que o animal torna-se aquilo que eles queriam, no mais profundo de seu entendimento com a Natureza79. Que o devir funcione sempre a dois, que aquilo em que nos tornamos entra num devir tanto quanto aquele que se torna, é isso que faz um bloco, essencialmente móvel, jamais em equilíbrio. O quadrado perfeito é o de Mondrian, que bascula numa ponta e produz uma diagonal entreabrindo seu fechamento, arrastando um e outro lado.

Devir nunca é imitar. Quando Hitchcock faz o pássaro, ele não reproduz nenhum grito de pássaro, ele produz um som eletrônico como um campo de intensidades ou uma onda de vibrações, uma variação continua, como uma terrível ameaça que sentimos em nos mesmos80. E não são apenas as “artes”: as páginas de Moby Dick valem também pela pura vivência do duplo devir, e não teriam essa beleza de outro modo. A tarantela é a estranha dança que conjura ou exorciza as supostas vítimas de uma picada de tarântula: mas, quando a vítima faz sua dança, pode-se dizer que ela está imitando a aranha, que identifica-se com ela, mesmo numa identificação de luta “agonística”, “arquetípica”? Não, pois a vítima, o paciente, o doente não se torna aranha dançante a não ser na medida em que a aranha por sua vez é suposta devir pura silhueta, pura cor e puro som, segundo os quais o outro dança8l.

Não se imita; constitui-se um bloco de devir, a imitação não intervém senão para o ajuste de tal bloco, como numa última preocupação de perfeição, uma piscada de olho, uma assinatura. Mas tudo o que importa passou-se em outro lugar: devir-aranha da dança, à condição de que a aranha torne-se ela mesma som e cor, orquestra e pintura. Tomemos o caso de um herói local folclórico, Alexis o Trotador, que corria “como” um cavalo, numa velocidade extraordinária, chicoteava-se com uma bengalinha, relinchava, levantava as pernas, dava coices, curvava-se à maneira dos cavalos, rivalizando com eles em corridas, com bicicletas ou trens. Ele imitava o cavalo para fazer rir. Mas ele tinha uma zona de vizinhança ou de indiscernibilidade mais profunda. Informações revelam que ele jamais era mais cavalo do que quando tocava gaita: justamente porque não tinha mais necessidade nem mesmo de imitação secundária ou reguladora. Diz-se que ele chamava a gaita seu “derruba-beiços”, e que dublava todo mundo com esse instrumento, duplicava o tempo do acorde, impunha um tempo não humano82. Alexis tornava-se tanto mais cavalo quanto o freio do cavalo tornava-se gaita, e o trote do cavalo dupla-medida. E, de novo, já é preciso dizê-lo dos próprios animais, pois estes têm não só cores e sons, mas não esperam o pintor ou o músico para fazer deles uma pintura, uma música, isto é, para entrar em devires-cores e devires-sons determinados (veremos isso adiante) através dos componentes de desterritorialização. A etologia está bastante avançada para ter abordado esse domínio.

Não militamos absolutamente por uma estética das qualidades, como se a qualidade pura (a cor, o som, etc.) contivesse o segredo de um devir sem medida, à maneira de Filebo. As qualidades puras parecem-nos ainda sistemas pontuais: são reminiscências, sejam lembranças flutuantes ou transcendentes, sejam germes de fantasma. Uma concepção funcionalista, ao contrário, só considera em uma qualidade a função que ela preenche em um agenciamento preciso, ou na passagem de um agenciamento a outro. É a qualidade que deve ser considerada no devir que dela se apodera, e não o devir em qualidades intrínsecas que teriam o valor de arquétipos ou lembranças filogenéticas. Por exemplo, a brancura, a cor, é apanhada num devir-animal, que pode ser o do pintor ou do capitão Ahab, ao mesmo tempo que num devir-cor, um devir-brancura, que pode ser o do próprio animal. A brancura de Moby Dick é o índice especial de seu devir-solitário. As cores, as silhuetas e os ritornelos animais são índices de devir-conjugal ou de devir-social que implicam também componentes de desterritorialização. Uma qualidade só funciona como linha de desterritorialização de um agenciamento ou indo de um agenciamento a outro. É bem nesse sentido que um bloco-animal não é a mesma coisa do que uma lembrança filogenética, e que um bloco de infância não é a mesma coisa do que uma lembrança de infância. Em Kafka, jamais uma qualidade funciona por si mesma ou como lembrança, mas retifica um agenciamento no qual ela se desterritorializa, e ao qual ela dá, inversamente, uma linha de desterritorialização: assim, o sino de infância passa pela torre do castelo, toma-a no nível de sua zona de indiscernibilidade (“as ameias incertas”) para lançá-la numa linha de fuga (como se um habitante “tivesse furado” o telhado). Se é mais complicado, menos sóbrio, para Proust, é porque as qualidades guardam nele um ar de reminiscência ou de fantasma: no entanto, também aí são blocos funcionais agindo não como lembranças e fantasmas, mas como devir-criança, devir-mulher, como componentes de desterritorialização, passando de um agenciamento a outro.
Aos teoremas de desterritorialização simples que tínhamos encontrado (por ocasião do rosto) 83, podemos agora acrescentar outros, concernentes à dupla desterritorialização generalizada. Quinto teorema: a desterritorialização é sempre dupla, porque implica a coexistência de uma variável maior e de uma variável menor, que estão ao mesmo tempo em devir (num devir, os dois termos não se intercambiam, não se identificam, mas são arrastados num bloco assimétrico, onde um não muda menos do que o outro, e que constitui sua zona de vizinhança). — Sexto teorema: a dupla desterritorialização não simétrica permite determinar uma força desterritorializante e uma força desterritorializada, mesmo que a mesma força passe de um valor ao outro conforme o “momento” ou o aspecto considerado; e mais do que isso, o menos desterritorializado sempre precipita a desterritorialização do mais desterritorializante, que reage mais ainda sobre ele. — Sétimo teorema: o desterritorializante tem o papel relativo de expressão, e o desterritorializado tem o papel relativo de conteúdo (como se vê efetivamente nas artes); ora, não só o conteúdo não tem nada a ver com um objeto ou um sujeito exteriores, pois ele faz bloco assimétrico com a expressão, mas a desterritorialização leva a expressão e o conteúdo a uma tal vizinhança que sua distinção deixa de ser pertinente, ou que a desterritorialização cria sua indiscernibilidade (exemplo: a diagonal sonora como forma de expressão musical e os devires-mulher, criança, animal como conteúdos propriamente musicais, ritornelos). — Oitavo teorema: um agenciamento não tem as mesmas forças ou as mesmas velocidades de desterritorialização que um outro; é preciso a cada vez calcular os índices e coeficientes conforme os blocos de devir considerados, e as mutações de uma máquina abstrata (por exemplo, uma certa lentidão, uma certa viscosidade da pintura em relação à música; porém, mais do que isso, não se poderá fazer passar fronteira simbólica entre o homem e o animal, podendo-se apenas calcular e comparar potências de desterritorialização).
Eis que Fernandez mostrou a presença de devires-mulher, de devires-criança na música vocal. Depois ele protesta contra a ascensão da música instrumental e orquestral; ele acusa particularmente Verdi e Wagner de terem ressexualizado as vozes, de terem restaurado a máquina binária conformando-se às exigências do capitalismo, que quer que um homem seja um homem, uma mulher uma mulher, e que cada um tenha a sua voz: as vozes-Verdi, as vozes-Wagner são reterritorializadas em homem e mulher. Ele explica o desaparecimento prematuro de Rossini e de Bellini, a retirada de um e a morte do outro, pelo sentimento desesperado de que os devires vocais da ópera não eram mais possíveis. No entanto, Fernandez não pergunta com qual benefício, e quais novos tipos de diagonal. É verdade, primeiro, que a voz deixa de ser maquinada por si mesma, com simples acompanhamento instrumental: ela deixa de ser um estrato ou uma linha de expressão valendo por si. Mas por que razão? A música transpôs um novo limiar de desterritorialização, onde é o instrumento que maquina a voz, onde a voz e o instrumento são projetados para o mesmo plano, numa relação ora de afrontamento, ora de substituição, ora de troca e de complementaridade. É talvez no lied, e sobretudo no lied de Schumann, que aparece pela primeira vez esse puro movimento que coloca a voz e o piano num mesmo plano de consistência, e faz do piano um instrumento de delírio, numa direção que prepara a ópera wagneriana. Até um caso como o de Verdi: foi dito freqüentemente que sua ópera permanece lírica e vocal, apesar da destruição que ele opera do bel canto, e apesar da importância da orquestração nas obras finais; resta que as vozes são instrumentadas, e ganham singularmente em tessitura ou em extensão (produção do barítono-Verdi, do soprano-Verdi). Não se trata no entanto de tal compositor, sobretudo não de Verdi, nem desse ou daquele gênero, mas do movimento mais geral que afeta a música, lenta mutação da máquina musical. Se a voz reencontra uma distribuição binária dos sexos, é em relação com os agrupamentos binários de instrumentos na orquestração. Há sempre sistemas molares na música como coordenadas; mas, quando se reencontra no nível da voz o sistema dualista dos sexos, essa distribuição pontual e molar é uma condição para novos fluxos moleculares que vão cruzar-se, conjugar-se, arrebatar-se numa instrumentação e numa orquestração que tendem a fazer parte da própria criação. As vozes podem ser reterritorializadas na distribuição dos dois sexos, mas o fluxo sonoro e contínuo passa mais ainda entre os dois como numa diferença de potencial.
E é esse o segundo ponto que seria preciso marcar: se, com esse novo limiar de desterritorialização da voz, o problema principal não é mais o de um devir-mulher ou um devir-criança, propriamente vocal, é porque o problema agora é o de um devir-molecular, onde a própria voz encontra-se instrumentada. Certamente, os devires-mulher e criança guardam toda sua importância, irão até descobrir para si uma nova importância, mas à medida que liberam uma outra verdade: o que era produzido, já era uma criança molecular, uma mulher molecular… Basta pensar em Debussy: o devir-criança, o devir-mulher são intensos, mas não são mais separáveis de uma molecularização do motivo, verdadeira “química” que se faz com a orquestração. A criança e a mulher não são mais separáveis do mar, da molécula de água {Sirenes é precisamente uma das primeiras tentativas completas para integrar a voz à orquestra). Já a propósito de Wagner, e para recriminá-lo, falava-se do caráter “elementar” dessa música, de seu aquatismo, ou então da “atomização” do motivo, “uma subdivisão em unidades infinitamente pequenas”. Vê-se isso melhor ainda quando se pensa no devir-animal: os pássaros guardaram toda sua importância e, no entanto, é como se a idade dos insetos tivesse substituído o reino dos pássaros, com vibrações, estridulações, rangidos, zumbidos, estalidos, arranhões, fricções muito mais moleculares. Os pássaros são vocais, mas os insetos, instrumentais, tambores e violinos, guitarras e címbalos84.
Um devir-inseto substituiu o devir-pássaro, ou faz bloco com ele. O inseto está mais próximo, o que torna audível essa verdade de que todos os devires são moleculares (cf. as ondas Martenot, a música eletrônica). É que o molecular tem a capacidade de fazer comunicar o elementar e o cósmico: precisamente porque ele opera uma dissolução da forma que coloca em relação as longitudes e latitudes as mais diversas, as velocidades e lentidões as mais variadas, e que assegura um continuum estendendo a variação muito além de seus limites formais. Redescobrir Mozart, e que o “tema” já era a variação. Varèse explica que a molécula sonora (o bloco) dissocia-se em elementos dispostos de diversas maneiras conforme as relações de velocidade variáveis, mas também como ondas ou fluxos de uma energia sônica irradiando todo o universo, linha de fuga desvairada. É assim que ele povoou o deserto de Gobi de insetos e estrelas que formavam um devir-música do mundo, uma diagonal para um cosmo. Messiaen coloca frente a frente durações cromáticas múltiplas, em coalescência, “alternando as maiores e as menores, a fim de sugerir a idéia das relações entre os tempos infinitamente longos das estrelas e das montanhas, e infinitamente curtos dos insetos e dos átomos: poder elementar, cósmico, que (…) vem antes de mais nada do trabalho rítmico85. Aquilo que faz com que o músico descubra os pássaros, o faz também descobrir o elementar e o cósmico. Um e o outro fazem bloco, fibra de universo, diagonal ou espaço complexo. A música envia fluxos moleculares. Certamente, como diz Messiaen, a música não é privilégio do homem: o universo, o cosmo é feito de ritornelos; a questão da música é a de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos não menos do que o homem. Trata-se, antes, daquilo que não é musical no homem, e daquilo que já o é na natureza. E mais, o que os etólogos descobriam do lado do animal, Messiaen o descobria do lado da música: não há qualquer privilégio do homem, com exceção dos meios de sobrecodificar, de fazer sistemas pontuais. É até o contrário de um privilégio; através dos devires-mulher, criança, animal ou molécula, a natureza opõe sua potência, e a potência da música, àquela das máquinas do homem, tumulto das fábricas e dos bombardeiros. E é preciso ir até esse ponto, que o som não musical do homem faça bloco com o devir-música do som, que eles se afrontem ou se atraquem, como dois lutadores que não podem mais derrotar um ao outro, e deslizam numa linha de declive: “Que o coro represente os sobreviventes (…). Ouve-se o fraco rumor das cigarras. Depois os trinados de uma cotovia, depois o canto do pássaro zombeteiro. Alguém ri, uma mulher soluça convulsivamente. Um homem solta um grande grito: ‘Estamos perdidos!’ Uma voz de mulher: ‘Estamos salvos!’ Gritos explodem em toda parte: ‘Perdidos! Salvos! Perdidos! Salvos!86

Notas

1 Sobre esta complementaridade série-estrutura, e a diferença em relação ao evolucionismo, cf. H. Daudin, Cuvier et L.amarck: les classes zoologiques et l’idée de série animale, e M. Foucault, Les mots et les choses, capítulo V.
2 Cf. Jung, principalmente Métamorphoses de l’âme et ses symboles, Libraire de l’Université, Genève. E Bachelard, Lautréamont, Corti.
3 Lévi-Strauss, Le totémisme aujord’bui, P.U.F., p. 112.
4 J.-P. Vernant, in Problèmes de Ia guerre en Grèce ancienne, Mouton, pp. 15-16.
5 Sobre a oposição da série sacrificial e da estrutura totêmica, cf. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Plon, pp. 295-302. Mas, apesar de toda sua severidade para com a série, Lévi-Strauss reconhece os compromissos dos dois temas: é que a própria estrutura implica um sentimento muito concreto das afinidades (51-52) e se estabelece por sua conta sobre duas séries entre as quais ela organiza suas homologias de relações. Sobretudo o “devir histórico” pode acarretar complicações ou degradações que substituem essas homologias por semelhanças e identificações de termos (pp. 152 ss., e aquilo que Lévi-Strauss chama de “o avesso do totemismo”).
6 Cf. J. Duvignaud, L’anomie, Ed. Anthropos.
7 Hugo von Hofmannsthal, I.ettres du voyageur à son retaur, Mercure de France.
8 Cf. J.C. Bailly, La legende dispersée, antbologie du romantisme allemand, 10-18, pp. 36-43.
9 Sobre o homem de guerra, sua posição extrínseca em relação ao Estado, à família, à religião, sobre os devires-animais, os devires-feras nos quais ele entra, cf. Dumézil, especialmente Mythes et dieux des Germains; Horace et les Curiaces; Heur et malheur du guerrier; Mythe et épopée, t. II. Remetemos também aos estudos sobre as sociedades dos homens-leopardos, etc., na África negra: é provável que essas sociedades tenham sua origem nas confrarias guerreiras. Mas, à medida que o Estado colonial proíbe as guerras tribais, elas transformam-se em sociedades de crime, preservando ao mesmo tempo sua importância política e territorial. Um dos melhores estudos a esse respeito é o de P. E. Joset, Les sociétés secrètes des hommes-léopards en Afrique noire, Payot. Os devires-animais próprios a esses grupos parecem-nos muito diferentes das relações simbólicas homem-animal tal como aparecem nos aparelhos de Estado, mas também nas instituições pré-estatais do tipo totemismo. Lévi-Strauss mostra bem como o totemismo já implica uma espécie de embrião de Estado, dado que ultrapassa as fronteiras tribais (La pensée sauvage, pp. 220 ss.).
10 Cf. Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, P.U.F.,pp. 81-82.
11 D.H. Lawrence: “Estou cansado de ouvir dizer que não há animais deste tipo. (…) Se eu sou uma girafa, e os ingleses ordinários que escrevem sobre mim gentis cachorrinhos bem-educados, é isso aí, os animais são diferentes. (…) Vocês não gostam de mim, vocês detestam instintivamente o animal que sou”. (Lettres choisies, Plon, t. II, p. 237).
12 René Thom, Stabilité structurelle et morphogenèse, Ed. W.A. Benjamin, p. 319.
13 E.R. Leach, Critique de 1’anthropologie, P.U.F., pp. 40-50.
14 Cf. Jacques Lacarrière, Les bommes ivres de Dieu, Fayard.
15 Pierre Gordon (Uinitiation sexuelle et Vévolution religieuse, P.U.F.) estudou o papel dos homens-animais nos ritos de “defloração sagrada”. Esses homens-animais impõem uma aliança ritual aos grupos de filiação, pertencendo eles próprios a confrarias exteriores ou em borda, e são mestres do contágio, da epidemia. Gordon analisa a reação dos vilarejos e das cidades quando entram em luta contra esses homens-animais para conquistar o direito de operar suas próprias iniciações e de ajustar suas alianças de acordo com suas respectivas filiações (assim a luta contra o dragão). — Mesmo tema, por exemplo, para “O homem-hiena na tradição sudanesa” (cf. G. Calame-Griaule e Z. Ligers, in L’homme, maio 1961): o homem-hiena vive na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos, e vigia as duas direções. Um herói, ou mesmo dois heróis dos quais cada um tem sua noiva no vilarejo do outro, triunfarão sobre o homem-animal. É como se fosse preciso distinguir dois estados muito diferentes da aliança: uma aliança demoníaca, que se impõe de fora, e que impõe sua lei a todas as filiações (aliança forçada com o monstro, com o homem-animal); depois, uma aliança consentida, que se conforma ao contrário à lei das filiações, quando os homens dos vilarejos venceram o monstro e organizam suas próprias relações. A questão do incesto pode ser então modificada. Pois não basta dizer que a proibição do incesto vem das exigências positivas da aliança em geral. Há antes uma aliança que é tão estranha à filiação, tão hostil à filiação, que ela toma necessariamente posição de incesto (o homem-animal está sempre em relação com o incesto). A segunda aliança proíbe o incesto porque ela só pode subordinar-se aos direitos da filiação se estabelecer precisamente entre filiações distintas. O incesto aparece duas vezes, como potência monstruosa da aliança quando esta derruba a filiação, mas também como potência proibida da filiação quando esta subordina a aliança e deve reparti-la entre linhagens distintas.
16 Matheson e Asimov têm uma particular importância nessa evolução (Asimov desenvolveu muito o tema da simbiose).
17 Castañeda, Histoires de pouvoir, Gallimard, p. 153.
18 Cf. Lawrence, o primeiro e o último poemas de Tortoises.
19 Cf. o manual de Inquisição Le marteau des sorcières, reedição Plon: I, 10 e II, 8. O primeiro caso, o mais simples, remete aos companheiros de Ulisses, que pensam, e os outros também pensam, que se transformaram em porcos (ou o rei Nabucodonosor, em boi). O segundo caso é mais complicado: os companheiros de Diomedes não pensam que se transformaram em pássaros, pois estão mortos, mas os demônios pegam corpos de pássaros que eles fazem passar como sendo os dos companheiros de Diomedes. A necessidade de distinguir esse caso mais complexo explica-se pelos fenômenos de transferência de afectos: por exemplo, um senhor caçador corta a pata de um lobo e, voltando para a sua casa, encontra sua mulher, que no entanto não saiu, com a mão cortada; ou então um homem bate em gatos, e suas feridas se reproduzem exatamente em mulheres.
20 Sobre o problema das intensidades na Idade Média, sobre a proliferação de teses a esse respeito, sobre a constituição de uma cinemática e uma dinâmica, e o papel particularmente importante de Nicolau de Oresme, cf. a obra clássica de Pierre Duhem, Le système du monde, t. VII, Hermann.
21 Etienne Geoffroy Saint-Hilaire, Príncipes de philosophie zoologique. E, sobre as partículas e seus movimentos, Notions synthétiques.
22 Vladimir Slepian, “Fils de chien”, Minuit n° 7, janeiro de 1974. A apresentação que estamos fazendo desse texto é muito simplificada.
23 Cf. Roger Dupouy, “Du masochisme”, Annales médico-psychologiques, 1929,11.
24 Acontece de se escrever “ecceidade”, derivando a palavra de ecce, eis aqui. E um erro, pois Duns Scot cria a palavra e o conceito a partir de Haec, “esta coisa”. Mas é um erro fecundo, porque sugere um modo de individuação que não se confunde precisamente com o de uma coisa ou de um sujeito.
25 Michel Tournier, Les météores, Gallimard, capítulo XXII, “L’âme déployée”.
26 Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, pp. 88-91 (“os fenômenos de tempo são fenômenos que não se pode introduzir numa música calculada puramente eletronicamente, por comprimento expresso em segundos ou em minissegundos”).
27 Ray Bradbury, Les macbines à bonbeur, Denoèl, p. 67.
28 G. Guillaume propôs uma concepção muito interessante do verbo, onde ele distingue um tempo interior, envolvido no “processo”, e um tempo exterior que remete à distinção das épocas (“Epoques et niveaux temporels dans le système de la conjugaison française”, Cahiers de linguistique structurale, Canadá, 1955). Parece-nos que esses dois pólos correspondem, um ao infinitivo-devir, Aion, o outro ao presente-ser, Cronos. Cada verbo inclina-se mais ou menos para um pólo ou para o outro, não só de acordo com sua natureza, mas de acordo com as nuanças de seus modos e tempos. Com exceção de “devir” e “ser”, que correspondem a cada um dos dois pólos. Em seu estudo sobre o estilo de Flaubert, Proust mostra como o tempo do imperfeito em Flaubert toma o valor de um infinitivo-devir (Chroniques, Gallimard, pp. 197-199).
29 Sobre esse problema dos nomes próprios (em que sentido o nome próprio está fora dos limites da classificação e é de outra natureza, ou está em seu limite e ainda faz parte dela?), cf. Gardiner, The Theory of Proper Names, Londres, e Lévi-Strauss, La pensée sauvage, cap. VII.
30 Já encontramos este problema, a propósito da indiferença da psicanálise em relação ao emprego do artigo ou do pronome indefinidos, tal como aparece nas crianças: em Freud, e mais ainda em Melanie Klein (as crianças que ela analisa, especialmente o pequeno Richard, falam em termos de “um”, “se”, “gente”, mas Melanie Klein força a barra incrivelmente para remetê-los a locuções familiares, possessivas e pessoais). No campo da psicanálise, parece-nos que só Laplanche e Pontalis tiveram o sentimento de um papel particular dos indefinidos e protestaram contra toda redução interpretativa demasiadamente rápida: “Fantasma originário…”, Temps modernes .º 215, abril 1964, pp. 1861, 1868.
31 Cf. a concepção personalista ou subjetivista da linguagem em E. Benveniste: Problèmes de linguistique générale, caps. XX e XXI (especialmente pp. 255, 261).
32 Os textos essenciais de Maurice Blanchot valem como uma refutação da teoria dos “embreantes” e da personologia em lingüística: cf. L’entretien infini, Gallimard, pp. 556-567. E, sobre a diferença entre as duas proposições “je suis malheureux” (eu sou infeliz) e “il est malheureux” (é triste), ou então “je meurs” (eu morro) e “on meurt” (morre-se), cf. La part du feu, pp. 29-30, e L’espace littéraire, pp. 105, 155, 160-161. Blanchot mostra em todos esses casos que o indefinido nada tem a ver com a “banalidade cotidiana”, que estaria mais do lado do pronome pessoal.
33 Por exemplo, François Cheng, L’écriture poétique chinoise, Ed. du Seuil: sua análise daquilo que ele chama “procedimentos passivos”, pp. 30 ss.
34 Cf. as declarações dos músicos americanos ditos “repetitivos”, especialmente de Steve Reich e Phil Glass.
35 Nathalie Sarraute, em L’ère du soupçon, mostra como Proust, por exemplo, fica dividido entre os dois planos, dado que extrai de seus personagens “as parcelas ínfimas de uma matéria impalpável”, mas também recolhe todas as suas partículas numa forma coerente, deslizando-as para dentro do envoltório deste ou daquele personagem: cf. pp. 52, 100.
36 Cf. a distinção dos dois Planos em Artaud, dos quais um é denunciado como a fonte de todas as ilusões: Les Tarahumaras, (Euvres completes, IX, pp. 34-35.
37 Hölderlin, Hypérion, introdução de Robert Rovini, 10-18.
38 Utilizamo-nos de um estudo inédito de Mathieu Carrière sobre Kleist.
39 “De onde veio o seu título, A Year from Monday? — “De um plano que tínhamos feito com um grupo de amigos, de nos encontrarmos na cidade do México, na próxima segunda-feira dentro de um ano. Estávamos reunidos num sábado, e nosso plano nunca pôde se realizar. É uma forma de silêncio. (…) Pelo próprio fato de nosso plano ter fracassado, pelo fato de que fomos incapazes de nos encontrar, nada fracassou, o plano não foi um fracasso” (John Cage, Pour les oiseaux, entrevistas a D. Charles, Belfond, p. 111).
40 É por isso que pudemos tomar Goethe como exemplo de um Plano transcendente. Goethe passa, no entanto, por espinosista; seus estudos botânicos e zoológicos descobrem um plano de composição imanente, que o aproxima de Geoffroy Saint-Hilaire (essa semelhança foi assinalada inúmeras vezes). Acontece que Goethe guardará sempre a dupla idéia de um desenvolvimento da Forma e de uma formação-educação do Sujeito: por aí seu plano de imanência já passa para o outro lado, em direção ao outro pólo.
41 Sobre todos esses pontos (proliferações-dissoluções, acumulações, indicações de velocidade, papel dinâmico e afectivo), cf. Pierre Boulez, Par volante et par basard, pp. 22-24, 88-91. Num outro texto, Boulez insiste sobre um aspecto desconhecido de Wagner: não só os leitmotiv liberam-se de sua subordinação aos personagens cênicos, mas as velocidades de desenvolvimento liberam-se do controle de um “código formal” ou de um tempo (“Le temps re-cherché”, em Das Rheingold Programmheft I, Bayreuth, 1976, pp. 3-11). Boulez presta homenagem a Proust, por ter sido um dos primeiros a compreender esse fator transformável e flutuante dos motivos wagnerianos.
42 Os temas de velocidade e lentidão estão particularmente desenvolvidos no La prisonnière: “Para compreender as emoções que [os seres de fuga] dão e que outros seres, mesmo mais belos, não dão, é preciso calcular que eles não estão imóveis, mas em movimento, e acrescentar à sua pessoa um signo correspondendo ao que em física é o signo que significa velocidade. (…) A estes seres, estes seres de fuga, sua natureza, nossa inquietação atribui asas.”
43 Louis Wolfson, Le schizo et les langues, Gallimard.
44 René Schérer e Guy Hocquenghem, Co-ire, Recherches, pp. 76-82: sua crítica da tese de Bettelheim, que só vê nos devires-animais da criança uma simbólica autista, exprimindo, aliás, mais a angústia dos pais do que uma realidade infantil (cf. La forteresse vide, Gallimard).
45 Philippe Gavi, “Les philosophes du fantastique”, em Liberation, 31 de março de 1977. Para os casos precedentes, seria preciso conseguir compreender certos comportamentos ditos neuróticos em função dos devires-animais, ao invés de remeter os devires-animais a uma interpretação psicanalítica desses comportamentos. Nós o vimos no caso do masoquismo (e Lolito explica que a origem de suas proezas está em certas experiências masoquistas; um belo texto de Christian Maurel conjuga um devir-macaco e um devir-cavalo num casal masoquista). Seria preciso considerar também a anorexia do ponto de vista do devir-animal.
46 Cf. Newsweek, 16 de maio de 1977, p. 57.
47 Cf. Trost, Visible et invisible, Arcanes, e Librement mécanique, Minotaure: “Ela estava ao mesmo tempo em sua realidade sensível e no prolongamento ideal de suas linhas como a projeção de um grupo humano por vir”.
48 Cf. os exemplos e a explicação estrutural proposta por J.-P. Vernant, in Problèmes de la guerre en Grèce ancienne, Mouton, pp. 15-16.
49 Sobre o transvestismo nas sociedades primitivas, cf. Bruno Bettelheim, Les blessures symboliques, Gallimard (que dá uma interpretação psicológica identificatória), e sobretudo Gregory Bateson, LA cerimonie du Naven, Ed. de Minuit (que propõe uma interpretação estrutural original).
50 François Cheng, L’écriture poétique chinoise, pp. 20 ss.
51 Virgínia Woolf, Journal d’un écrivain, t. I, 10-18, p. 230: “Veio-me a idéia de que o que eu queria fazer agora é saturar cada átomo”, etc. Sobre todos esses pontos, utilizamo-nos de um estudo inédito de Fanny Zavin sobre Virgínia Woolf.
52 Remetemo-nos a Frygt og Baeven (Tremor e Medo), que nos parece o maior livro de Kierkegaard, por sua maneira de colocar o problema do movimento e da velocidade, não só em seu conteúdo, mas em seu estilo e sua composição.
53 Carlos Castañeda, passim, e sobretudo Voyage à Ixtlan, pp. 233 ss.
54 Leslie Fiedler, Le retour du Peau-rouge, F.d. du Seuil. Fiedler explica a aliança secreta do americano branco com o negro ou o índio por um desejo de fugir da forma e do domínio molar da mulher americana.
55 Michaux, Misérable miracle, Gallimard, p. 126: “O horror estava sobretudo em eu não ser senão uma linha. Na vida normal, somos uma esfera, uma esfera que descobre panoramas. (…) Aqui apenas uma linha. (…) O acelerado linear que eu me tornara…” Cf. os desenhos lineares de Michaux. Mas é em Les grandes épreuves de l’esprit, nas oitenta primeiras páginas desse livro, que Michaux vai o mais longe na análise das velocidades, das percepções moleculares e dos “microfenômenos” ou “microoperações”.
56 Artaud, Les Tarakumaras, (Euvres completes, t. IX, pp. 34-36.
57 Michaux, Misérable miracle, p. 164 (“Rester maitre de sa vitesse”).
58 Sobre as possibilidades do silício, e sua relação com o carbono, do ponto de vista da química orgânica, cf. o artigo “Silicium” in Encyclopedia Universalis.
59 Luc de Heusch mostra como é o homem de guerra que traz o segredo: ele pensa, come, ama, julga e chega em segredo, enquanto que o homem de Estado procede publicamente (Le roi ivre ou l’origine de l’Etat). A idéia do segredo de Estado é tardia, e supõe a apropriação da máquina de guerra pelo aparelho de Estado.
60 Especialmente Georg Simmel, cf. The Sociology of Georg Simmel, Glencoe, cap. III.
61 P. E. Joset marca bem esses dois aspectos da sociedade secreta de iniciação, o Mambela do Congo: de um lado, sua relação de influência sobre os chefes políticos habituais, que vai até uma transferência dos poderes sociais; de outro lado, sua relação de fato com os Anioto, como sociedade secreta encoberta, de crime ou de homens-leopardos (mesmo que os Anioto tenham uma origem diferente do Mambela). Cf. Les sociétés secrètes des hommes-léopards en Afrique noire, cap. V.
62 Sobre as concepções psicanalíticas do segredo, cf. “Du secret”, Nouvelle revue de psychanalyse n” 14; e para a evolução de Freud, o artigo de Claude Girard, “Le secret aux origines”.
61 Bernard Pingaud, apoiando-se no texto exemplar de James, “The Figure in the Carpet”, mostra como o segredo salta do conteúdo à forma, e escapa aos dois: “Du secret”, pp. 247-249. Comentou-se muitas vezes esse texto de James de um ponto de vista que interessa à psicanálise; primeiramente, J.-B. Pontalis, Après freud, Gallimard. Mas a psicanálise permanece prisioneira de um conteúdo necessariamente disfarçado, assim como de uma forma necessariamente simbólica (estrutura, causa ausente…), num nível que define ao mesmo tempo o inconsciente e a linguagem. É por isso que, em suas aplicações literárias ou estéticas, ela não consegue alcançar o segredo num autor assim como o segredo de um autor. É como para o segredo de Édipo: ocupam-se dos dois primeiros segredos, mas não do terceiro que, no entanto, é o mais importante.
64 Sobre as obscuridades da idéia de maioria, cf. os dois temas célebres do “efeito-Condorcet” e do “teorema de decisão coletiva” de Arrow.
65 Cf. Faulkner, L’Intrus, Gallimard, p. 264. Falando dos brancos do Sul depois da guerra de Secessão, não só dos pobres, mas das antigas famílias ricas, Faulkner escreve: “Estamos na situação do alemão após 1933, que não tinha outra alternativa senão a de ser nazista ou judeu”.
66 A submissão da linha ao ponto aparece bem nos esquemas de arborescência: cf. Julien Pacotte, Le réseau arborescent, Hermann; e o estatuto dos sistemas hierárquicos ou centrados segundo P. Rosenstiehl e J. Petitot, “Automate asocial e systèmes acentrés” (Communications n.º 22, 1974). Poderíamos apresentar o esquema arborescente de maioria da seguinte forma:
diagrama 1
67 Linha de devir, em relação à ligação localizável de A e B (distância), ou em relação à sua contigüidade:
diagrama 2
68 Virginia Woolf, Journal d’un écrivain, 10-18, t. I, p. 238. É a mesma coisa em Kafka: com ele, os blocos de infância funcionam ao contrário das lembranças de infância. O caso de Proust é mais complicado, porque ele opera uma mistura dos dois. A psicanálise está na situação de captar as lembranças ou fantasmas, mas nunca os blocos de infância.
69 Por exemplo, no sistema da memória, a formação da lembrança implica uma diagonal que faz passar um presente A em representação A’ em relação ao novo presente B, em A” em relação a C, etc:
diagrama 3
Cf. Husserl, Leçons pour une phénoménologie de Ia conscicnce intime du temps, P.U.F.
70 Nietzsche, Considérations intempestives, “Utilité et inconvénient des études historiques”, § 1.
71 Sobre todos esse temas, cf. Pierre Boulez: 1″) como, a cada vez, transversais tendem a escapar-se das coordenadas horizontais e verticais da música, traçando até por vezes “linhas virtuais”, Releves d’apprenti, Ed. du Seuil, pp. 230, 290-297, 372. 2″) Sobre a idéia de bloco sonoro ou “bloco de duração”, em relação com essa transversal, Penserla musique aujourd’huí, Gonthier, pp. 59-63; sobre a distinção dos pontos c dos blocos, dos “conjuntos pontuais” e dos “conjuntos agregativos” com individualidade variável, “Sonate que me veux-tu?”, in Médiations n” 7, 1964. O ódio à memória aparece freqüentemente em Boulez: cf. “Eloge de 1’amnésie” (Musique en jeu n” 4, 1 971), “J’ai horreur du souvenir” (in Roger Desormière et son temps, Ed. du Rocher). Para ficar apenas em exemplos contemporâneos, encontraríamos declarações análogas em Stravinski, Cage, Berio. E claro que há uma memória musical ligada às coordenadas, e que se exerce nos quadros sociais (levantar, deitar, baterem retirada). Mas a percepção de uma “frase” musical apela menos a uma memória, mesmo do tipo reminiscência, do que a uma extensão ou contração da percepção do tipo encontro. Seria preciso estudar como cada músico faz funcionar verdadeiros blocos de esquecimento: por exemplo, aquilo que Barraqué diz das “fatias de esquecimento” e dos “desenvolvimentos ausentes” em Debussy (Debussy, pp. 169-171). Remetemos a um estudo geral de Daniel Charles, “La musique et l’oubli”, Traverses n” 4, 1976.
72 Roland Barthes, “Rasch”, in Langue, discours, société, VA. du Seuil, pp. 217-228.
73 Há muitas diferenças entre os pintores, sob todos esses aspectos, mas também um movimento de conjunto: cf. Kandinsky, Point, ligue, piau; Klee, Théorie de l’art moderne, Gonthier. Declarações como as de Mondrian, sobre o valor exclusivo da vertical e da horizontal, têm por objetivo mostrar em que condições estas bastam para lançar uma diagonal que não precisa nem mesmo ser traçada: por exemplo, porque as coordenadas de espessura desigual cortam-se no interior do quadro, e prolongam-se fora do quadro, abrindo um “eixo dinâmico” em transversal (cf. os comentários de Michel Butor, Répertoire III, “Le carré et son habitant”, Ed. de Minuit). Pode-se consultar também o artigo de Michel Fried sobre a linha de Pollock (“Trois peintres américains”, in Peindre, 10-18), e as páginas de Henry Miller sobre a linha de Nash (Virage à quatre-vingts. Livre de Poche).
74 “Havia algo de tenso, de exasperado, algo que ia quase até uma intolerável cólera em seu peito de homem de bem, enquanto ele tocava essa fina e nobre música de paz. Quanto mais deliciosa era a música, mais ele a executava com perfeição numa completa felicidade; e, ao mesmo tempo, a louca exasperação que havia nele crescia proporcionalmente” (Lawrence, La verge d’Aaron, Gallimard, p. 16).
75 Embora Berio dê outras indicações, parece-nos que sua obra Visage é composta segundo os três estados de rostidade: primeiro, uma multiplicidade de corpos e de silhuetas sonoras; depois, um curto momento de organização dominante e sinfônica do rosto; enfim, um arremesso de dispositivos rastreadores em todas as direções. No entanto, não se trata absolutamente de uma música que “imitaria” o rosto e seus avatares, nem de uma voz que faria metáfora. Mas os sons aceleram a desterritorialização do rosto, dando-lhe uma potência propriamente acústica, enquanto que o rosto reage musicalmente, precipitando por sua vez a desterritorialização da voz. É um rosto molecular, produzido por uma música eletrônica. A voz precede o rosto, forma-o ela mesma um instante, e sobrevive a ele, tomando cada vez mais velocidade, com a condição de ser inarticulada, a-significante, a-subjetiva.
76 Grohmann, Paul Klee, Flammarion: “Meio convencido, meio brincando, ele se considerava feliz, dizia, de ter quase levado (a pintura], ao menos no que se refere à forma, à altura em que Mozart tinha deixado a música antes de sua morte” (pp. 66-67).
77 Dominique Fernandez, La rose des Tudors, Julliard (e o romance Porporino, Grasset). Fernandez cita a música pop como um retorno tímido à grande música vocal inglesa. Seria preciso, com efeito, considerar as técnicas de respiração circular, quando se canta inspirando e expirando, ou de filtragem de som conforme zonas de ressonância (nariz, testa, maçãs do rosto — utilização propriamente musical do rosto).
78 Marcel More, Le dieu Mozart e le monde des oiseaux, Gallimard.
79 Vimos que a imitação podia ser concebida como uma semelhança de termos culminando num arquétipo (série), ou como uma correspondência de relações constituindo uma ordem simbólica (estrutura); mas o devir não se deixa reduzir nem a uma nem a outra. O conceito de mimesis é não só insuficiente, mas radicalmente falso.
80 François Truffaut, Le cinema selon Hitchcock, Seghers, pp. 332-3.33 (“tomei a licença dramática de não fazer absolutamente os pássaros gritarem…”).
81 Cf. E. de Martino, La terre du remords, Gallimard, pp. 142-170. Martino mantém, no entanto, uma interpretação fundada no arquétipo, na imitação e na identificação.
82 Cf. J. C. Larouche, Alexis le trotteur, Ed. du Jour, Montreal. Testemunho citado: “Ele tocava música de boca como nenhum de nós; ele tinha uma gaita muito grande na qual não éramos nem mesmo capazes de tocar. (…) Quando tocava conosco, ele decidia de repente a nos reforçar. Ou seja, ele acompanhava o tempo do acorde; enquanto nós tocávamos um tempo, ele tocava dois, o que requeria um fôlego extraordinário” (p. 95).
83 Quanto aos primeiros quatro teoremas, cf. Platô 7 (“Ano Zero – Rosticidade”), vol. 3, p. 40 e ss. da edição brasileira. (N. do E.)
84 Andrée Tétry, Les outils chez les êtres vivants, Gallimard, capítulo sobre os “instrumentos de música”, com bibliografia: o barulho pode ser um efeito do movimento ou do trabalho do animal, mas se falará de instrumentos de música a cada vez que animais dispõem de aparelhos cuja única função é produzir sons variados (o caráter musical, desde que ele se deixe determinar, é muito variável, mas o é também para o aparelho vocal dos pássaros; entre os insetos, há verdadeiros virtuoses). Desse ponto de vista, distingue-se: 1″) aparelhos estridentes, do tipo instrumentos de corda, fricção de uma superfície rígida contra uma outra superfície (insetos, crustáceos, aranhas, escorpiões, pedipalpos); 2″) aparelhos de percussão, do tipo tambor, címbalo, xilofone, ação direta de músculos numa membrana vibrante (cigarra e certos peixes). Não só a variedade dos aparelhos e dos sons é infinita, mas um mesmo animal varia seu ritmo, sua tonalidade, sua intensidade, conforme as circunstâncias ou exigências ainda mais misteriosas. “E então um canto de cólera, de angústia, de medo, de triunfo, de amor. Sob o impulso de uma viva excitação, o ritmo da estridulação varia: em Crioceris Lilii, a freqüência das fricções passa de 228 batidas a 550 ou mais por minuto.”
85 Gisèle Brelet, in Histoire de Ia musique, II, Pléiade, “Musique contem-poraine en France”, p. 1166.
86 Texto de Henry Miller para Varèse, Le cauchemar climatisé, Gallimard, pp. 189-199.

*Originalmente publicado em: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille Plateaux: Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Minuit, 1980. A versão do Platô partilhado em língua portuguesa foi traduzida por Suely Rolnik, sendo publicado pela Editora 34 no ano de 1997.

**A imagem capturada faz parte dos maravilhosos e intensos trabalhos da artista peruana Ana Teresa Barboza. Para conhecer mais sobre suas linhas e obras afectivas acesse os territórios:
http://anateresabarboza.blogspot.com.br/
http://lefilconducteurinenglish.wordpress.com/2013/07/21/ana-teresa-barboza-gubo/

Fonte: Territórios de Filosofia

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