outubro 23, 2015

A dor da perda. Por Lúcio Flávio Pinto

PICICA: "Um dos maiores desafios humanos é lidar com as perdas. Vamos tê-las ao longo da vida. Nesse trajeto, há uma etapa de conquistas: de amigos, de bens materiais, de conhecimento, de experiência. Depois de certo momento, as perdas vão se infiltrando e acabam por dominar o horizonte, limitando-o cada vez mais. Há as perdas irreparáveis, conforme o velho lugar comum – apesar de tão gasto, verdadeiro. Nós só as identificamos procurando-as dentro de nós. São aquelas perdas que arrancam parte do que somos e nada repõem no seu lugar. E só nós sabemos o quanto elas são definitivas, principalmente os que sofrem essas perdas calados, voltados para dentro de si."

A dor da perda

Um dos maiores desafios humanos é lidar com as perdas. Vamos tê-las ao longo da vida. Nesse trajeto, há uma etapa de conquistas: de amigos, de bens materiais, de conhecimento, de experiência. Depois de certo momento, as perdas vão se infiltrando e acabam por dominar o horizonte, limitando-o cada vez mais.

Há as perdas irreparáveis, conforme o velho lugar comum – apesar de tão gasto, verdadeiro. Nós só as identificamos procurando-as dentro de nós. São aquelas perdas que arrancam parte do que somos e nada repõem no seu lugar. E só nós sabemos o quanto elas são definitivas, principalmente os que sofrem essas perdas calados, voltados para dentro de si.

Lembro de certa vez em que cheguei cansado de uma viagem pela estrada, tomei banho, me joguei no sofá e me deixei levar pelas ondas do Jornal Nacional, quase entorpecido pela exaustão própria e as artes do programa. Subitamente, a notícia de que Antônio Carlos Jobim morrera. O choque me colocou de pé. Ouvi a notícia até o fim, voltei a me sentar e chorei.

Só vi pessoalmente o maestro e compositor duas vezes na vida. Mas ele era parte do meu ser com muito mais intensidade do que muitas das pessoas com as quais convivia diariamente. Nunca agradeci suficientemente pelo tanto de prazer e elevação que ele me proporcionou com as suas músicas. Lamento até hoje a sua morte, ainda mais pela forma desastrada com que a sua vida foi abreviada.

É a mesma sensação de vazio que tenho quando me lembro de Roberto Jares Martins e Edwaldo Martins, dois jornalistas que conheci no mesmo dia em que entrei na redação de A Província do Pará como repórter. Quantas centenas ou milhares de horas não conversamos sobre todos os temas possíveis e (também) imaginários? O lugar que os dois ocupavam no meu afeto jamais foi preenchido.

E o que dizer da minha mãe, que se foi há dois anos, exatamente no dia de hoje, uma semana antes de completar 85 anos? Na véspera de sua morte, vindo de uma viagem a São Paulo, eu fui ao seu quarto e a convidei para mais uma sessão de canto, sobretudo fado. Pela primeira vez ela ficou calada. De volta, mandei uma mensagem pela internet para os outros filhos e demais pessoas próximas, registrando a má novidade. No dia seguinte ela morreu.

Só depois de algum tempo de convivência com o mal de Alzheimer, que a maltratou e a desfibrou ao longo de sete anos de padecimento, descobri que o espaço musical era o único em que sua integridade ainda subsistia. Passamos então a ouvir música e cantar juntos. Filha de português, ela conhecia quase todos os principais fados – e eu também. Mas fazíamos duo em cantos sacros. E assim seguiam as horas em que a mente de Iraci de Faria Pinto voltava aos seus tempos de infância pelo fio condutor das notas musicais.

Que força tem a música, pensei, enquanto a enterrávamos, na mesma sepultara que já abrigava meu irmão, Raimundo, também jornalista, e meu pai, Elias, que desencadeou essas perdas no dia de natal de 1985, quando se foi, com apenas 60 anos. Nesta data, peço passagem ao leitor e lhe proponho que juntemos nossas perdas para que o companheirismo de viagem nos permita absorvê-las melhor. Porque doem pra caramba. Doem demais.

Fonte: Lúcio Flávio Pinto

Nenhum comentário: