PICICA: "[...]o boteco genuíno é a zona limiar onde quem entra sabe que
correrá riscos factíveis de não voltar para casa."
Bares proletários
por Jonnefer Barbosa
Se há um remanescente da tradição
do proletariado oitocentista no séc. XXI, ele certamente não será
encontrado nas indústrias assepticamente automatizadas (ou, para usar de
um termo corrente, parques tecnológicos de viés toyotista).
Não que a exploração não seja mais a condição de manutenção global e
pedra de toque para avaliação do capitalismo do presente: o trabalho
sujo de produção da mais-valia foi simplesmente deslocado para eixos de
total desregulamentação representados seja na informalidade, seja no
sub-emprego precarizado com parcas “garantias formais”. Entretanto, com o
ocaso da figura dos sindicatos e de todo vínculo (para alguns
marxistas: orgânico) entre trabalhadores, o boteco (botequim, bar,
birosca, bodegas e significantes afins) incorpora um dos últimos redutos
de comunidade entre os deserdados. É nele que sonâmbulos
consomem-se no transe etílico em meio ao cheiro de frituras, balcões de
fórmicas, mesas de sinuca, petiscos boiando na gordura reaproveitada e
muita fumaça de cigarros baratos. No referencial semântico de botequim,
em sentido genuíno e estrito, não devemos incluir o grande número de
lojas temática que simulam a simplicidade ou rusticidade proletária para
o consumo de desavisados turistas da pequena e média burguesia. Estes
não-lugares se limitam a estilizar um ambiente da terna e heróica boemia
proletária de um capitalismo industrial edulcorado: com suas imitações
de gaiola, cervejas e chope tradicionais, grupos de choro contratados e
pequenas quinquilharias de coleção (antigas flâmulas de clubes, fotos em
branco e preto, placas com ditos populares e mensagens sacanas sobre o
fiado). Museus para pseudo-intelectuais onanisticamente saudosos. Ao
contrário, o boteco genuíno é a zona limiar onde quem entra sabe que
correrá riscos factíveis de não voltar para casa. Aliás, seu
freqüentador médio já não está inserido numa estrutura familiar estável,
em regra nem a possui. O destemor, a carência e a brutalidade formam
ali uma conjunção saturada de tensões (para lembrar de um dos únicos
filósofos que costumava freqüentar os genuínos de seu tempo). Não há
espaço para estilizações. Não é à toa que só se localizam nas periferias
ou nas regiões decadentes. É o cru e o não intelectual da vida; uma
negação e sintoma radical das relações materiais de nosso tempo.
Território onde aqueles que nada têm a perder a não ser suas algemas, -
que lhes continuam a aferroar -, bebem a mais barata das bebidas
sonhando com a mais magnífica das desforras.
Fonte: SOPRO 99
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