PICICA: "[...] todos os filósofos são um pouco, como diz Nietzsche,
castos, pobres, etc. Mas ele acrescenta: “Mas tentem adivinhar para que
serve isso?” Para que serve a castidade, a pobreza e tudo o mais? Kant
tinha seu passeio diário, mas isso não é nada. O que acontecia durante
este passeio diário? O que ele olhava? Era bom saber. Se os
filósofos são seres com hábitos é porque o hábito é contemplar. O hábito
é a contemplação de alguma coisa. No verdadeiro sentido da palavra,
“hábito” é contemplar. O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus hábitos… Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as contemplações. Eu saio para contemplar. Às vezes, são coisas que sou o único a ver. Este seria um hábito."
CP: De todos os filósofos
que você estudou, Kant parece ser o mais distante do seu pensamento.
Mas você diz que todos os autores que estudou tem algo em comum. Há
alguma coisa em comum entre Kant e Spinoza?
GD: Eu prefiro, se me
permite, a primeira parte da pergunta. Por que estudei Kant já que ele
não tem nada em comum com Spinoza, nem com Nietzsche, apesar de este
último ter lido muito Kant? Não temos a mesma concepção de filosofia.
Mas por que, mesmo assim, Kant me fascina? Por dois motivos. Kant é tão cheio de sinuosidades.
Um dos motivos é o fato de ele ter instaurado e levado a extremos o que
nunca fora levado em Filosofia até então, que é a instituição de
tribunais, talvez sob a influência da Revolução Francesa. Mas até então
tentamos falar de conceitos como se fossem personagens. Antes de Kant,
no século 18, que o precedeu, apresentou-se um novo tipo de filósofo, o
investigador. Investigação. Investigação sobre o entendimento humano,
investigação sobre isso e aquilo. O filósofo era visto como um
investigador. Ainda mais cedo, no século 17, Leibniz foi, sem dúvida, o
último representante desta tendência. Ele era visto como um advogado,
ele defendia uma causa. E Leibniz pretendia ser o advogado de Deus! Como se Deus tivesse algo a ser repreendido.
Leibniz escreveu um maravilhoso opúsculo sobre a causa de Deus. Era a
causa jurídica de Deus, a causa de Deus defendida. Há um encadeamento de
personagens: o advogado, o investigador e, com Kant, houve a chegada do tribunal, do tribunal da razão.
As coisas eram julgadas em função de um tribunal da razão. E as
faculdades, no sentido do entendimento, a imaginação, o conhecimento e a
moral eram medidas em função deste tribunal. É claro que através de um
determinado método prodigioso criado por Kant que chamaram de “método
crítico”, que é o método propriamente kantiano. Todo este aspecto me
deixa horrorizado, mas é um horror fascinado também, pois é genial ao
mesmo tempo. Dentre os inúmeros conceitos que Kant inventou, está o do
tribunal da razão que é inseparável do método crítico. Meu sonho não é
esse. Este é um tribunal do juízo. É o sistema do juízo, só que este não precisa mais de Deus. É um juízo baseado na razão, e não em Deus.
Não abordamos este problema, mas posso fazê-lo agora, assim não
precisaremos voltar a este assunto. Podemos procurar entender… Há um
mistério nisso tudo. Podemos tentar entender por que alguém em
particular, eu ou você, estaríamos ligados ou nos reconhecemos em
determinado tipo de problema e não em outro? O que é a afinidade de
alguém com um tipo de problema? Parecem-me os maiores mistérios do
pensamento. Nós nos consagramos a problemas. E não é qualquer problema,
isso também vale para os cientistas. A afinidade de alguém para
determinado problema e não para outro. E uma filosofia é um
conjunto de problemas com consistência própria, mas não pretende cobrir
todos os problemas. Ainda bem! Eu me sinto ligado aos problemas que
procuram meios para acabar com o sistema do juízo e colocar outra coisa
no lugar. Dentre os grandes nomes dos que buscam isso, você
tinha razão em falar de oposição, estão Spinoza, Nietzsche e, em
Literatura, há Lawrence, e guardo um dos maiores para o final: Artaud.
Todos para acabar com o juízo de Deus. Isso é muito importante, não é
loucura: acabar com o sistema do juízo. Todas estas coisas fariam com
que eu não tivesse tanto… Mas, por baixo disso tudo, e, como sempre, é
preciso buscar os problemas que se escondem sob os conceitos. E Kant
traz problemas impressionantes, são maravilhas. Ele foi o primeiro a ter
feito uma inversão de conceitos impressionante. É por isso que tanto me
entristece quando vejo ensinarem aos jovens, mesmo no nível de
vestibular, uma filosofia tão abstrata sem tentar fazer com que
participem de problemas, que são fantásticos e muito interessantes.
Posso dizer que até Kant o tempo derivava do movimento. Ele era
secundário em relação ao movimento. Ele era considerado como número ou
medida do movimento. O que fez Kant? Não importa como, pois há criação
de um conceito. Em tudo o que digo, só tem isso! Estamos sempre
avançando no tema “o que é um conceito”. Ele criou um conceito porque
inverteu a subordinação. Para ele, é o movimento que depende do tempo.
De repente, o tempo muda de natureza, deixa de ser circular. Porque
quando o tempo está subordinado ao movimento, por razões longas demais
para explicar agora, é o grande movimento periódico, é o movimento de
rotação periódica dos astros. Portanto, o movimento é circular. Mas
quando o tempo se liberta do movimento e que este passa a depender do
tempo, o tempo se torna uma linha reta. Sempre me faz pensar na frase de
Borges, apesar de ele ter alguma coisa a ver com Kant: “O labirinto mais terrível do que um labirinto circular é um labirinto em linha reta“.
Isso é uma maravilha, mas é Kant! É ele que destaca o tempo. Além do
mais, estas histórias de tribunal que medem o papel de cada faculdade em
função de tal finalidade… Até que, no final de sua vida, ele foi um dos
raros a ter escrito já muito velho um livro onde reviu tudo. A crítica
da faculdade do juízo. Ele chega à ideia de que é preciso que as
faculdades se relacionem desordenadamente, que se oponham e se
reconciliem, mas que haja uma batalha das faculdades e não mais as
medidas que justifiquem um tribunal. Ele lançou sua teoria sobre o
sublime em que as faculdades entram em discordância, em acordos
discordantes. Aí, eu gosto muito disso, destes acordos discordantes,
deste labirinto em linha reta, sua inversão da relação. Toda a filosofia
moderna veio daí, de que não era mais o tempo que provinha do movimento
e, sim, o contrário. É uma criação de conceitos fantásticos. E toda a
concepção do sublime com os acordos discordantes das faculdades me tocam
profundamente. É claro que ele é um grande filósofo. Um grande filósofo. Ele
tem um embasamento que me entusiasma, mas o que está construído em cima
disso não me toca em nada. Não estou julgando. É apenas um sistema de
juízo que gostaria de ver acabado. Mas não julgo.
CP: E a vida de Kant?
GD: A vida de Kant… Isso não estava previsto!
CP: Há outro aspecto que
poderia ter lhe interessado em Kant que é relativo a Thomas de Quincey,
aquela fantástica vida regrada por hábitos, aquele passeio matinal… A
vida do filósofo como se pode imaginar popularmente. Algo muito
particular no qual também podemos imaginar você, com esta vida mais
regrada. O hábito sendo muito importante.
GD: Acho que…
CP: Na vida de trabalho.
GD: Entendo o que quer
dizer. O texto de Quincey a entusiasma e a mim também, é uma obra-prima.
Mas diria que isso pertence a todos os filósofos. Eles não têm os
mesmos hábitos, mas são criaturas com hábitos. Pode parecer que eles não
saibam… Mas é preciso que sejam criaturas com hábitos. Acho que Spinoza
não tinha uma vida muito cheia de imprevistos. Ele tinha a vidinha
dele, com as lentes dele, polindo as lentes. Ele recebia algumas
visitas, etc. Ganhava a vida polindo lentes. Não era uma vida agitada, a
não ser pelos acontecimentos políticos. Kant também passou por fatos
políticos intensos. Tudo o que dizem sobre aparelhos que Kant inventava
para levantar as calças ou as meias, etc. faz dele um personagem com
muito charme. Mas todos os filósofos são um pouco, como diz Nietzsche,
castos, pobres, etc. Mas ele acrescenta: “Mas tentem adivinhar para que
serve isso?” Para que serve a castidade, a pobreza e tudo o mais? Kant
tinha seu passeio diário, mas isso não é nada. O que acontecia durante
este passeio diário? O que ele olhava? Era bom saber. Se os
filósofos são seres com hábitos é porque o hábito é contemplar. O hábito
é a contemplação de alguma coisa. No verdadeiro sentido da palavra,
“hábito” é contemplar. O que ele contemplava em seus passeios? Não sei. Os meus hábitos… Sim, sou cheio de hábitos. Meus hábitos são as contemplações. Eu saio para contemplar. Às vezes, são coisas que sou o único a ver. Este seria um hábito.
CP: Agora, L de Literatura.
GD: Vamos ao L?
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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