PICICA: "Essa perplexidade, essa fascinação, esse terror inspirado no homem
pelo feminino – afinal, o que quer uma mulher? – é o que parece
interessar mais intensamente a Polanski, até mais do que a crítica à
tendência contemporânea de tudo rotular e enquadrar, abolindo a
ambiguidade e as contradições. Decifra-me ou te devoro, parece dizer o
recorrente signo de Vênus, recapitulado em suas versões mais belas
(Ticiano, Botticelli, Rubens, Velázquez) na sequência dos créditos
finais.Essa indagação sem resposta se concentra, de certa forma, no enorme
cacto erguido no centro do palco, resquício do cenário de uma versão
musical de No tempo das diligências. Ao longo do filme, esse
mesmo adereço adquire o papel de falo, representação de Afrodite, totem
e, por fim, instrumento de suplício. Alguma coisa isso deve significar,
mas não me arrisco a dizer o quê."
Polanski e o terror do feminino
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 02.10.2015
Se a linha mestra do cinema de Roman Polanski são as relações de sexo e poder, A pele de Vênus
pode ser visto como uma espécie de suma de sua obra. Não é, por certo,
seu melhor filme, mas talvez seja o que condensa de forma mais clara e
concisa suas principais preocupações.
O que vemos na tela? O embate entre um diretor de teatro, Thomas (Mathieu Amalric), à procura de uma atriz para uma adaptação de A Vênus das peles, romance de 1869 de Leopold von Sacher-Masoch, e a candidata Vanda (Emmanuelle Seigner), que chega atrasada para o teste mas, por força de sedução e agressividade, consegue se impor e ensaiar a peça junto com o diretor.
Jogo de espelhos
Wanda (Dunajew) é também o nome da protagonista da peça. Emmanuelle Seigner é casada com Polanski há mais de vinte anos. Mathieu Amalric é notavelmente parecido com o cineasta franco-polonês quando mais jovem, inclusive na inquietude e nos gestos hesitantes. Tudo isso contribui para criar um vertiginoso jogo de espelhos entre ficção e “realidade”.
Mas que ninguém se iluda: não se trata de um psicodrama em que Polanski se desnuda ou “põe para fora” os demônios de sua vida pessoal. Nada disso. Como hábil titereiro, ele tem o controle absoluto de seus personagens, e mesmo as eventuais alusões autobiográficas estão tingidas de ironia e distanciamento.
Mais interessante, a meu ver, é atentar para os paralelos do filme com o próprio cinema do diretor e, principalmente, para a sutileza e a precisão com que desenvolve aqui suas ideias recorrentes, sem perder em nenhum momento o humor maroto que lhe é peculiar.
Tudo se passa no interior de um teatro vazio, o que remete de imediato aos dramas ou teoremas claustrofóbicos de Polanski: Repulsa ao sexo, O bebê de Rosemary, O inquilino, Deus da carnificina. Mas o confronto psicológico e erótico entre os personagens faz lembrar também da vertente que vem desde o primeiro longa do diretor, A faca na água e passa por Chinatown, Tess, Lua de fel e A morte e a donzela, só para citar alguns trabalhos em que poder e sexo são inextricáveis.
A cena em que Thomas, assumindo provisoriamente o papel de Vanda, passa batom e assume trejeitos femininos, desperta irresistivelmente a lembrança do próprio Polanski, como ator, travestido de mulher em O inquilino.
Teatro e cinema
O fato de se passar todo num teatro e ser baseado numa peça teatral (do norte-americano David Ives) não faz de A pele de Vênus, de modo algum, “teatro filmado”. Na verdade, poucos filmes recentes são tão cinematográficos, no que diz respeito à manipulação do ponto de vista, à transformação virtual do espaço e à construção do ritmo, em sua simulação do tempo contínuo, sem elipses.
Desde as primeiras imagens – um travelling que avança por um bulevar arborizado, sob a chuva, até entrar no teatro pela porta da plateia, numa “câmera subjetiva” da candidata a atriz – a perspectiva da mulher se estabelece como ponto de vista privilegiado, a despeito das mudanças de ângulo, das inversões de papéis e da adoção de um campo/contracampo aparentemente clássico.
A imagem que marca mais claramente essa “tomada de poder” é a de Vanda, a aspirante a atriz, assumindo o controle da mesa de luz do teatro e moldando o ambiente a seu bel-prazer. Ao longo do filme, qualquer que seja o enquadramento adotado, raras serão as vezes em que o homem aparecerá em posição mais elevada que a mulher dentro do quadro.
Corpo e palavra
A leitura da peça e as discussões entre diretor e atriz – ele, armado de um discurso “intelectual”, lendo o texto de Sacher-Masoch como alta literatura; ela, filtrando sua leitura pela cultura pop-midiática, rebaixando a obra à categoria de reles “pornô” – são apenas uma parte da equação, completada e refratada pelas imagens e pelo modo como estão organizadas. O corpo comentando – e frequentemente desdizendo – a palavra.
Um exemplo ao acaso: a certa altura, Thomas estende-se no divã que faz parte do cenário. Sem interromper a conversa, Vanda veste o paletó masculino dele, coloca seus óculos e senta-se à cabeceira do divã. De repente, quase sem que percebêssemos, instaurou-se a situação clássica da sessão de psicanálise. Vanda começa a especular sobre a vida privada do diretor. Seus comentários são tão certeiros que a expressão do rosto dele, de costas para ela, passa da perplexidade à fascinação e ao terror.
Enigma feminino
Essa perplexidade, essa fascinação, esse terror inspirado no homem pelo feminino – afinal, o que quer uma mulher? – é o que parece interessar mais intensamente a Polanski, até mais do que a crítica à tendência contemporânea de tudo rotular e enquadrar, abolindo a ambiguidade e as contradições. Decifra-me ou te devoro, parece dizer o recorrente signo de Vênus, recapitulado em suas versões mais belas (Ticiano, Botticelli, Rubens, Velázquez) na sequência dos créditos finais.Essa indagação sem resposta se concentra, de certa forma, no enorme cacto erguido no centro do palco, resquício do cenário de uma versão musical de No tempo das diligências. Ao longo do filme, esse mesmo adereço adquire o papel de falo, representação de Afrodite, totem e, por fim, instrumento de suplício. Alguma coisa isso deve significar, mas não me arrisco a dizer o quê.
O que vemos na tela? O embate entre um diretor de teatro, Thomas (Mathieu Amalric), à procura de uma atriz para uma adaptação de A Vênus das peles, romance de 1869 de Leopold von Sacher-Masoch, e a candidata Vanda (Emmanuelle Seigner), que chega atrasada para o teste mas, por força de sedução e agressividade, consegue se impor e ensaiar a peça junto com o diretor.
Jogo de espelhos
Wanda (Dunajew) é também o nome da protagonista da peça. Emmanuelle Seigner é casada com Polanski há mais de vinte anos. Mathieu Amalric é notavelmente parecido com o cineasta franco-polonês quando mais jovem, inclusive na inquietude e nos gestos hesitantes. Tudo isso contribui para criar um vertiginoso jogo de espelhos entre ficção e “realidade”.
Mas que ninguém se iluda: não se trata de um psicodrama em que Polanski se desnuda ou “põe para fora” os demônios de sua vida pessoal. Nada disso. Como hábil titereiro, ele tem o controle absoluto de seus personagens, e mesmo as eventuais alusões autobiográficas estão tingidas de ironia e distanciamento.
Mais interessante, a meu ver, é atentar para os paralelos do filme com o próprio cinema do diretor e, principalmente, para a sutileza e a precisão com que desenvolve aqui suas ideias recorrentes, sem perder em nenhum momento o humor maroto que lhe é peculiar.
Tudo se passa no interior de um teatro vazio, o que remete de imediato aos dramas ou teoremas claustrofóbicos de Polanski: Repulsa ao sexo, O bebê de Rosemary, O inquilino, Deus da carnificina. Mas o confronto psicológico e erótico entre os personagens faz lembrar também da vertente que vem desde o primeiro longa do diretor, A faca na água e passa por Chinatown, Tess, Lua de fel e A morte e a donzela, só para citar alguns trabalhos em que poder e sexo são inextricáveis.
A cena em que Thomas, assumindo provisoriamente o papel de Vanda, passa batom e assume trejeitos femininos, desperta irresistivelmente a lembrança do próprio Polanski, como ator, travestido de mulher em O inquilino.
Teatro e cinema
O fato de se passar todo num teatro e ser baseado numa peça teatral (do norte-americano David Ives) não faz de A pele de Vênus, de modo algum, “teatro filmado”. Na verdade, poucos filmes recentes são tão cinematográficos, no que diz respeito à manipulação do ponto de vista, à transformação virtual do espaço e à construção do ritmo, em sua simulação do tempo contínuo, sem elipses.
Desde as primeiras imagens – um travelling que avança por um bulevar arborizado, sob a chuva, até entrar no teatro pela porta da plateia, numa “câmera subjetiva” da candidata a atriz – a perspectiva da mulher se estabelece como ponto de vista privilegiado, a despeito das mudanças de ângulo, das inversões de papéis e da adoção de um campo/contracampo aparentemente clássico.
A imagem que marca mais claramente essa “tomada de poder” é a de Vanda, a aspirante a atriz, assumindo o controle da mesa de luz do teatro e moldando o ambiente a seu bel-prazer. Ao longo do filme, qualquer que seja o enquadramento adotado, raras serão as vezes em que o homem aparecerá em posição mais elevada que a mulher dentro do quadro.
Corpo e palavra
A leitura da peça e as discussões entre diretor e atriz – ele, armado de um discurso “intelectual”, lendo o texto de Sacher-Masoch como alta literatura; ela, filtrando sua leitura pela cultura pop-midiática, rebaixando a obra à categoria de reles “pornô” – são apenas uma parte da equação, completada e refratada pelas imagens e pelo modo como estão organizadas. O corpo comentando – e frequentemente desdizendo – a palavra.
Um exemplo ao acaso: a certa altura, Thomas estende-se no divã que faz parte do cenário. Sem interromper a conversa, Vanda veste o paletó masculino dele, coloca seus óculos e senta-se à cabeceira do divã. De repente, quase sem que percebêssemos, instaurou-se a situação clássica da sessão de psicanálise. Vanda começa a especular sobre a vida privada do diretor. Seus comentários são tão certeiros que a expressão do rosto dele, de costas para ela, passa da perplexidade à fascinação e ao terror.
Enigma feminino
Essa perplexidade, essa fascinação, esse terror inspirado no homem pelo feminino – afinal, o que quer uma mulher? – é o que parece interessar mais intensamente a Polanski, até mais do que a crítica à tendência contemporânea de tudo rotular e enquadrar, abolindo a ambiguidade e as contradições. Decifra-me ou te devoro, parece dizer o recorrente signo de Vênus, recapitulado em suas versões mais belas (Ticiano, Botticelli, Rubens, Velázquez) na sequência dos créditos finais.Essa indagação sem resposta se concentra, de certa forma, no enorme cacto erguido no centro do palco, resquício do cenário de uma versão musical de No tempo das diligências. Ao longo do filme, esse mesmo adereço adquire o papel de falo, representação de Afrodite, totem e, por fim, instrumento de suplício. Alguma coisa isso deve significar, mas não me arrisco a dizer o quê.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: Blog do IMS
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