PICICA: "O
ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a
maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este
alguém efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes
maus."
[...]
"Eu bem que
gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para
mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a
prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas
alegres. Deve-se escondê-la em um tipo de lamento."
II – 1,33,50 – 1,54,14
CP: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito, pois é um conceito de Spinoza, que tornou a alegria um conceito de resistência e vida.
“Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria para ter o máximo de
nossa potência; fugir da resignação, da má-consciência, da culpa e de
todos os afectos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram”.
Entende-se perfeitamente do que você gosta nisso tudo. Gostaria que
distinguisse a alegria da tristeza e definisse o que é a distinção de
Spinoza. Você descobriu alguma coisa no dia em que leu isso?
GD: Sim, porque são os textos mais
extraordinariamente carregados de afectos em Spinoza. Vou simplificar
muito, mas quero dizer que a alegria é tudo o que consiste em preencher uma potência. Sente alegria quando preenche, quando efetua uma de suas potências. Voltemos aos nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um pedaço de cor. Entro um pouco na cor.
Pode imaginar a alegria que isso representa?
Preencher uma potência é isso, efetuar uma potência. Mas o que é
equívoco é a palavra “potência”. E o que é a tristeza? É quando estou separado de uma potência da qual eu me achava capaz, estando certo ou errado.
“Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias…
não era permitido, etc.” É aí que ocorre a tristeza. Qualquer tristeza
resulta de um poder sobre mim.
CP: Você estava falando sobre a oposição alegria/tristeza.
GD: Eu dizia que efetuar algo de sua potência é
sempre bom. É o que diz Spinoza. Mas isso traz problemas. É preciso
especificar que não existem potências ruins. O que é ruim não é… O
ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a
maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este
alguém efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes
maus. E talvez todo poder seja mau por natureza. Não, talvez
seja muito fácil dizer isso. Mas mostra bem a ideia da … A confusão
entre poder e potência é arrasadora, porque o poder sempre separa as
pessoas que lhe estão submissas, separa-as do que elas podem fazer.
Tanto que foi deste ponto que partiu Spinoza. Como você citou: “A
tristeza está ligada aos padres, aos tiranos…”
CP: Aos juízes.
GD: São pessoas que separam seus sujeitos do que eles
podem, que proíbem as efetuações de potência. Curiosamente, há pouco,
você falou da reputação de anti-semitismo de Nietzsche. Neste exemplo,
vê-se esta questão muito importante. Há textos de Nietzsche que
poderiam parecer preocupantes se são lidos muito rapidamente, e não da
forma como propomos que os filósofos sejam lidos. Em todos os
textos em que fala do povo judeu, o que Nietzsche critica nele? O que
fez com que, em seguida, dissessem que Nietszche era um anti-semita. É
interessante, pois o que ele repreende no povo judeu, em condições
específicas, é o fato deste povo ter inventado um personagem que não
existia antes: o padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a
respeito dos judeus na forma de um ataque. O ataque é contra o povo que
inventou o padre. Segundo ele, nas outras formações sociais, existem
feiticeiros, escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa que o padre.
Eles inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche, que tem grande
força filosófica, não deixou de admirar o que detesta, ele disse: “Mas é
incrível ter inventado o padre. É uma coisa prodigiosa”. Em seguida,
fez a ligação direta dos judeus com os cristãos. Só não é o mesmo tipo
de padre. Os cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no
mesmo caminho: com o personagem do sacerdote. Pode-se ver o quanto a
filosofia é concreta. Eu diria que Nietzsche é o primeiro filósofo a ter inventado, criado o conceito de padre.
E, a partir daí, trouxe um problema fundamental que é: em que consiste o
poder sacerdotal? Qual é a diferença entre o poder sacerdotal e o poder
real? Estas são questões ainda muito atuais. Pouco antes de sua morte,
Foucault tinha encontrado a mesma coisa, só que com seus próprios meios.
Aí, poderíamos retomar tudo sobre o que é prolongar a filosofia. Foucault também sugere um poder pastoral, um novo conceito diferente mas que, ao mesmo tempo, se encaixa no de Nietzsche. Por aí, existe uma história do pensamento. E o que é este poder de padre e em que está ligado à tristeza? Segundo
Nietzsche, o padre se define desta forma: ele inventou a ideia de que
os homens estão num estado de dívida infinita. Eles têm uma dívida
infinita. Antes, havia histórias de dívida, mas Nietzsche
precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos deveriam ler Nietzsche.
Eles descobriram bem depois de Nietzsche que, nas sociedades
primitivas, havia permutas de dívidas. Não funcionava tanto através da
troca, como se pensava, mas por partes de dívidas: uma tribo tinha uma
dívida para com outra tribo, etc. Eram blocos de dívidas finitas: eles
recebiam e devolviam. A diferença com a troca é que havia a realidade do
tempo. Era uma restituição diferida. É importante! A dívida precede a
troca. São questões filosóficas: a permuta, a dívida, a dívida que
precede a troca. É um grande conceito filosófico. Digo filosófico porque
Nietzsche disse antes dos etnólogos. Mas enquanto as dívidas têm este
regime finito, o homem pode se libertar. O padre judeu invoca, pois, em
virtude de uma Aliança, a ideia de uma dívida infinita do povo judeu
para com Deus, e os cristãos retomam esta ideia de outra forma, a ideia
de dívida infinita ligada a do pecado original. O personagem do padre é
muito curioso. E cabe à Filosofia fazer o conceito. Não digo que a
Filosofia seja ateia, mas, no caso de Spinoza que já tinha esboçado uma
análise do padre, do padre judeu no Tratado Teológico-Político, pode
acontecer que conceitos filosóficos sejam verdadeiros personagens. É por
isso que a Filosofia é tão concreta. Fazer o conceito do padre é como
algum artista faria o quadro ou o retrato do padre. O conceito do padre
trazido por Spinoza, por Nietzsche e, depois, por Foucault, forma uma
linhagem apaixonante. Eu também gostaria de entrar nesta linha e ver que
poder pastoral é esse. Dizem que ele não funciona mais, mas
quem o substituiu? A psicanálise é um novo avatar do poder pastoral. Em
que ele se define? Os padres não são a mesma coisa que os tiranos, mas
eles têm em comum o fato de manterem-se no poder através das paixões
tristes que eles inspiram aos homens. Do tipo: “Arrependam-se em nome da dívida infinita, você é objeto da dívida infinita”. Por esse caminho, eles têm poder! O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste. Sim, existem alegrias tristes. Mas a
alegria é uma efetuação das potências. Eu repito: não conheço nenhuma
potência má. O tufão é uma potência. Alegra-se na alma, mas não por
derrubar casas, mas simplesmente por ser. Regozijar-se é estar alegre
pelo que somos, por ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria de
si mesmo, isto não é alegria, não é estar satisfeito consigo mesmo. É o
prazer da conquista, como dizia Nietzsche. Mas a conquista não
consiste em servir pessoas. A conquista é, para o pintor, conquistar a
cor. Isso sim é uma conquista. Neste caso, é a alegria. Mesmo que isso
não termine bem, pois nestas histórias de potência, quando se conquista
uma potência, ela pode ser potente demais para a própria pessoa e ela
acaba não suportando. Van Gogh!
CP: Agora, uma pergunta subsidiária: você, que
escapou da dívida infinita, por que se queixa da manhã à noite e é um
defensor do lamento e da elegia?
GD: Esta é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre
gostei da elegia. Ela é uma das duas fontes da poesia, uma das
principais fontes da poesia. É o grande lamento. Há uma grande história a
ser feita sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito
interessante. Há o lamento do profeta. O profetismo é inseparável do
lamento. O profeta é aquele que se lamenta e diz: “Mas por que fui
escolhido por Deus? O que eu fiz para ser escolhido por Deus?” Neste
sentido, ele é o contrário do padre. Ele se queixa do que acontece com
ele. O que significa: “É grande demais para mim”. Eis o que é a queixa:
“O que está acontecendo comigo é grande demais para mim”. Aceitando,
pois, o lamento, o que nem sempre se vê, pois não é só “Ai, ai, que
dor!”, mas também pode ser. Aquele que se queixa nem sempre sabe o que
está querendo dizer. A velha senhora que se queixa de seu reumatismo
está, na verdade, querendo dizer: “Que potência está se apoderando da
minha perna e que é grande demais para que eu a suporte?” Se formos
procurar na História, é muito interessante, pois a elegia é, antes de
tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito
os grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas
prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é a expressão daquele que não
tem mais um estatuto social, temporariamente ou não. É por isso que é
interessante. Um pobre velho se queixa. Um homem nas galés se queixa.
Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na
queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma
oração. Os queixumes populares, tudo… A queixa do profeta, a de um tema
que você conhece bem, que é a queixa do hipocondríaco. O hipocondríaco é
alguém que se lamenta. E as queixas do hipocondríaco são bonitas: “Por
que tenho um fígado? Por que tenho um baço?” Não é o “Ai, como dói!”, e
sim “Por que tenho órgãos?” Por que isso, por que aquilo… O lamento é
sublime! O queixume popular, o lamento do assassino, que é cantado pelo
povo… São os excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um
especialista húngaro chamado Tökel, que fez um estudo sobre a elegia
chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é, acima de tudo, animada
por aquele que não tem mais estatuto social, um escravo livre. Um
escravo ainda tem um estatuto, por mais desgraçado que seja. Pode ser
infeliz e espancado, mas tem um estatuto social. Mas há períodos em que o
escravo livre não tem estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter
sido assim para a geração dos negros na América com a abolição da
escravidão. Quando houve a abolição ou então na Rússia, não tinham
previsto um estatuto social para eles e foram excluídos. Interpretam
erroneamente como se eles quisessem voltar a ser escravos! Eles não
tinham estatuto. É neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é
pela dor, é uma espécie de canto e é por isso que é uma fonte poética. Se
eu não fosse filósofo e fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma
carpideira. A carpideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda
uma arte! Além do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por
mim, não me toque. É um pouco como as pessoas demasiadamente polidas.
Pessoas querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie
de… A queixa é a mesma coisa: “não tenha pena de mim, disso cuido eu”.
Mas ao cuidar disso, a queixa se transforma. E voltamos à questão de
algo ser grande demais para mim. A queixa é isto. Eu bem que
gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para
mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a
prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas
alegres. Deve-se escondê-la em um tipo de lamento. Mas este
lamento não é só a alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma
potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se
efetua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor,
surge esse temor. Ao pé da letra, afinal, acho que não estou fazendo
Literatura quando digo que a forma como Van Gogh entrou na cor está mais
ligada à sua loucura do que fazem supor as interpretações
psicanalíticas, e que são as relações com a cor que também interferem.
Alguma coisa pode se perder, é grande demais. Aí está o lamento: é
grande demais para mim. Na felicidade ou na desgraça… Em geral, na
desgraça. Mas isso é detalhe.
CP: Foi uma ótima resposta. Vamos à letra K de Kant!
GD: Aí tem menos graça.
CP: Sinto que esta vai ser rápida
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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