outubro 22, 2015

Marginal, por Flávia Cera (SOPRO 99)

PICICA: "O ser-abandonado não tem vínculos, é o que não pode ser inscrito em nenhuma categoria, o que não pode ser classificado, qualificado e nomeado, é uma multiplicidade de nomes, uma abundância, um excesso: é um ser pluralmente singular e singularmente plural, uma suspensão no tempo, uma simultaneidade, que não assimila fundadores, mas também não se torna fundador."



 Marginal
 por Flávia Cera


Encontramos pelo menos duas possibilidades de leitura para o “marginal”. Uma delas pode ser: o risco calculado que está no centro de todas as sociedades. Isto é o que podemos perceber traçando um breve histórico dos significados e dos usos do termo. A primeira aparição do termo em língua inglesa (1362) apresenta uma conotação textual: “space between a block of text and the edge of a page”. Em português esta também é a primeira acepção com que a palavra é definida, como, por exemplo, no Houaiss: “parte lateral da página ou que se fez ou inseriu na margem de manuscrito, livro, etc”. A referência ao texto aponta não para um papel secundário, mas para uma forma de absorção: as notas também fazem parte do texto, ainda que estejam fora da lei do texto. Em 1848 a incorporação do marginal fica mais clara. Seu significado ganha status econômico: “parte do valor de uma operação a termo, efetuada em Bolsa de Valores, que o comprador deposita como garantia de liquidação do negócio no prazo estabelecido”, ou seja, o marginal passa a ser contabilizado, não é excluído das operações, mas capturado; torna-se um instrumento de cálculo, de administração, de governo. Sintoma do capitalismo e da sociedade de controle que avança e se aprimora ao incorporar o que está fora do ordenamento na ordem prevendo-a e absorvendo-a. É também em 1848 que o marginal aparece no Manifesto Comunista de Marx e Engels, sob o nome de “lumpemproletariado”, que, ao contrário do proletariado, é definido pela sua submissão aos interesses da burguesia: “esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade pode, as vezes ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação para servir às suas manobras” Em seu estudo sobre a teologia da economia e do governo, Giorgio Agamben define o efeito colateral que tomaremos aqui como uma definição do marginal, a saber: “ogni atto di governo tende a uno scopo primario, ma, proprio per questo, può implicare degli effetti collaterali (colateral damages), previsti o imprevisti nei dettagli, ma comunque scontati. Il calcolo degli effetti collaterali, che possono essere anche considerevoli (nel caso di uma guerra, esi implicano la morte di esseri umani e la destruizione di cittá), fa, in questo senso, parte integrante della lógica del governo”. Ou, ainda, o marginal pode ser entendido como a exclusão inclusiva do Homo Sacer: “aquele que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual desde já está sempre incluído”.


Tendo em vista essa tensão a que o marginal é submetido, também poderíamos situá-lo no campo da guerra. Clausewitz definia a guerra como “um acto de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”, violência, não raro, travestida atualmente de planos e interesses econômicos. Mas o marginal também remete à guerra, porque mantém uma relação íntima com o termo marcha: derivam da mesma raiz etimológica latina, marg(in)-. A marcha, que limita e que margeia, é também uma tática para expansão da guerra: marchar em direção a, desbravar, confrontar, demarcar os territórios das fronteiras, nas margens. Clausewitz, que dedica três capítulos à marcha em seu tratado Da Guerra, aponta para a destruição ineren-te a ela: “uma única marcha moderada não arruína o aparelho mas toda uma série de marchas moderadas já começam a desgastá-lo, e uma série de marchas difíceis deterioram-no muito mais”. Por causa destas perdas Clausewitz lança mão de considerações da ordem da oikonomia: como se perde um grande contingente das próprias forças na marcha, é preciso incluir nos cálculos tal desgaste: “quando nos preparamos para conduzir uma guerra rica em movimento, devemos, portanto, contar com uma grande destruição das nossas próprias forças; devemos organizar os outros em conformidade e velar acima de tudo pelos reforços que deverão vir depois”. Desta forma, podemos concluir que o marginal está dentro e fora, em uma relação que o inclui e exclui simultaneamente; é o centro das atividades de guerra que vai sempre submetê-lo à vontade soberana.


Por outro lado, se formos até 1928, ano em que é pu-blicado no American Journal of Sociology o ensaio de Robert Park, Human Migration and the Marginal Man, teremos uma leitura que permite que o marginal saia da condição relacional que está submetido. Park, que freqüentou alguns cursos de Simmel, foi um dos fundadores da Escola de Chicago, inicialmente preocupada, entre outros temas, com o problema do homem marginal e da migração. Marginal - explica o autor - é “a man living and sharing in the cultural life and traditions of two distinct peoples, never quite willing to break, even if were permitted to do so, with his past and his traditions and not quite accepted in the new society in which he now sought to find a place”. O homem marginal não encontra um lugar, ele é por excelência o “estranho”, diz Park, citando seu mestre Simmel: a sua sensação de deslocamento será permanente. Assim, Park irá identificar o mestiço como ordinariamente um homem marginal, pois “lives in two worlds, in both of which he is more or less of a stranger”.


Everett Stonequist, aluno de Park, também se debruça sobre o tema. Publica um ensaio, na mesma revista que seu professor, com o título The problem of the marginal man, em 1935; dois anos depois publica um livro, The Marginal Man: a study in personality and culture conflict. Nele diz que o homem marginal “oscila entre dois (ou mais) mundos sociais, refletindo em sua alma os desacordos, as harmonias, as repulsões e as atrações desses dois mundos”. A mobilidade e o desenraizamento permite que a vida dos homens marginais seja “o mais significativo material para a análise do processo cultural, tal como surge dos contactos dos grupos sociais”. Os conceitos de Park e Stonequist nos mostram que o marginal está em um entre-lugar, deslocado cons-tantemente pelo seu desprendimento cultural, territorial e identitário: ele não se integra a uma nova cultura, mas também não permanece na antiga; ele não escolhe uma ou outra, ao contrário, mantém contato com uma e outra.


É com base nestes conceitos que Sérgio Milliet, em 1942, escreve o ensaio Marginalidade da Pintura Moderna. Para situar o homem marginal, mais especificamente o artista marginal, Milliet analisa os grandes períodos de transição cultural das civilizações – “períodos em que a cultura sofre violenta mudança” - e apresenta em cada hiato artistas que não aderiram às novas imposições. É no choque entre as civilizações que a marginalidade se arma. Após o choque “se observa um conflito de atitudes do qual resulta uma interpenetração de complexos culturais. Há, em seguida, uma fusão ou assimilação com prevalência de padrões de uma ou de outra cultura, ou ainda, com contribuição de ambas. A solidariedade cultural é quebrada durante o período de aculturação, de perdas de cultura, que são expostas as sociedades em contato, e a desintegração social sobrevém”.


É neste vácuo cultural que o artista marginal se instalaria e lá permaneceria, não participando do processo de reintegração social. Em Milliet, como em Park e Stonequist, a marginalidade não está estritamente vinculada à classe social ou à condição econômica; relaciona-se, nestes casos, mais com a postura do indivíduo que se vêentre duas ou mais opções, mas que não adere, não se encaixa, ou melhor, não se quer em nenhuma delas. O marginal surge do conflito e é a sua não conseqüência, ou seja, não se torna A nem B e sim A e B simultaneamente. Instala-se numa fissura que não reivindica um território ou um passado, mas sim o presente num encavalgamento do tempo.


A simultaneidade proporcionada pela fissura coloca o homem marginal em contato e se apresenta como uma linha de fuga que lhe possibilita o trânsito entre os padrões estabelecidos sem que se torne refém deles, mas também sem criar um para si. Conseqüente do confronto, o marginal é, como dissemos, inerente à guerra, este conflito despe-o da experiência e lhe propicia a aquisição de um saber que provém do corpo e que o auxilia na composição de novas séries, novas combinações, uma nova forma de barbárie: uma hybris
Beatriz Sarlo argumenta que o Borges, assim como Milliet, não deixa como condição exclusiva para o marginal sua posição social. Borges procede assim porque ope-ra em um deslocamento temporal e demonstra que “la verdad poética de ‘las orillas’ se construye en un leve anacronismo’”. De acordo com Sarlo, Borges percebe as margens como um “território original” onde seria possí-vel desvincular-se da tradição literária vigente para armar sua própria série. Borges, então, vislumbrou em Evaristo Carriego - um escritor que nos altos do modernismo domi-nado por Lugones, pela “poesia rica”, encontrou no su-búrbio uma sorte de inspiração para seus poemas - a sua origem poética, e com as linhas literárias homogêneas: “Borges tuerce las verticales y las horizontales, descoloca a Lugones e inventa un punto de partida extraño al prestígio establecido. Realiza un movimiento quebrado por la discontinuidad y pone a la literatura marginal de Carriego como principio de su literatura. Eso le permite inventarse un origen para la literatura futura, romper con las filiaciones previsibles, trazar los bordes de un territorio ficcional, hacer una elección de tono poético”.


Para definir o marginal, também temos o “abandonado” cuja heterogeneidade o retira, mesmo que se tente incluir, de qualquer princípio fundador, posto que ele é gerado em uma arealidade, no tempo do corte, na cisão que inviabiliza qualquer tentativa de identidade e de pertencimento. O ser-abandonado, diz Jean-Luc Nancy imobiliza a dialética, suspende a relação com o centro: “That abandoned being, for us – and by us, perhaps – should correspond to the exhaustion of transcendentals therefore means a cessation or suspension of the discourses, categorizations, challenges, and innovations whose proliferation constituted the being of being. Abandoned being immobilizes the dialectic whose name means ‘the one that abandons nothing, ever, the one that endlessly joins, resumes, recovers’. It obstructs of forsakes the very position, the initial position, of being, that empty position whose truth of nothingness, immediately turned back on and against being, mediates the becoming, the inexhaustible advent of being, its resurrection and the parousia of its absolute unity, truth, a goodness, arousing and pouring back into it the foam of its own infinity." O ser-abandonado não tem vínculos, é o que não pode ser inscrito em nenhuma categoria, o que não pode ser classificado, qualificado e nomeado, é uma multiplicidade de nomes, uma abundância, um excesso: é um ser pluralmente singular e singularmente plural, uma suspensão no tempo, uma simultaneidade, que não assimila fundadores, mas também não se torna fundador. Viver, ou melhor, ser-com, no confim, no limbo, eis a condição do marginal tomada em um “topos” ideal.

Fonte: SOPRO 99

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