PICICA: "O ser-abandonado não tem
vínculos, é o que não pode ser inscrito em nenhuma categoria, o que não
pode ser classificado, qualificado e nomeado, é uma multiplicidade de
nomes, uma abundância, um excesso: é um ser pluralmente singular e
singularmente plural, uma suspensão no tempo, uma simultaneidade, que
não assimila fundadores, mas também não se torna fundador."
Marginal
por Flávia Cera
Encontramos pelo menos duas
possibilidades de leitura para o “marginal”. Uma delas pode ser: o risco
calculado que está no centro de todas as sociedades. Isto é o que
podemos perceber traçando um breve histórico dos significados e dos usos
do termo. A primeira aparição do termo em língua inglesa (1362)
apresenta uma conotação textual: “space between a block of text and the
edge of a page”. Em português esta também é a primeira acepção com que a
palavra é definida, como, por exemplo, no Houaiss: “parte
lateral da página ou que se fez ou inseriu na margem de manuscrito,
livro, etc”. A referência ao texto aponta não para um papel secundário,
mas para uma forma de absorção: as notas também fazem parte do texto,
ainda que estejam fora da lei do texto. Em 1848 a incorporação do
marginal fica mais clara. Seu significado ganha status econômico: “parte
do valor de uma operação a termo, efetuada em Bolsa de Valores, que o
comprador deposita como garantia de liquidação do negócio no prazo
estabelecido”, ou seja, o marginal passa a ser contabilizado, não é
excluído das operações, mas capturado; torna-se um instrumento de
cálculo, de administração, de governo. Sintoma do capitalismo e da
sociedade de controle que avança e se aprimora ao incorporar o que está
fora do ordenamento na ordem prevendo-a e absorvendo-a. É também em 1848
que o marginal aparece no Manifesto Comunista de Marx e
Engels, sob o nome de “lumpemproletariado”, que, ao contrário do
proletariado, é definido pela sua submissão aos interesses da burguesia:
“esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha
sociedade pode, as vezes ser arrastado ao movimento por uma revolução
proletária; todavia suas condições de vida o predispõem mais a vender-se
à reação para servir às suas manobras” Em seu estudo sobre a teologia
da economia e do governo, Giorgio Agamben define o efeito colateral que
tomaremos aqui como uma definição do marginal, a saber: “ogni atto di
governo tende a uno scopo primario, ma, proprio per questo, può
implicare degli effetti collaterali (colateral damages), previsti o
imprevisti nei dettagli, ma comunque scontati. Il calcolo degli effetti
collaterali, che possono essere anche considerevoli (nel caso di uma
guerra, esi implicano la morte di esseri umani e la destruizione di
cittá), fa, in questo senso, parte integrante della lógica del governo”.
Ou, ainda, o marginal pode ser entendido como a exclusão inclusiva do Homo Sacer:
“aquele que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode
pertencer ao conjunto no qual desde já está sempre incluído”.
Tendo em vista essa tensão a que
o marginal é submetido, também poderíamos situá-lo no campo da guerra.
Clausewitz definia a guerra como “um acto de violência destinado a
forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”, violência, não raro,
travestida atualmente de planos e interesses econômicos. Mas o marginal
também remete à guerra, porque mantém uma relação íntima com o termo
marcha: derivam da mesma raiz etimológica latina, marg(in)-. A marcha,
que limita e que margeia, é também uma tática para expansão da guerra:
marchar em direção a, desbravar, confrontar, demarcar os territórios das
fronteiras, nas margens. Clausewitz, que dedica três capítulos à marcha
em seu tratado Da Guerra, aponta para a destruição ineren-te a
ela: “uma única marcha moderada não arruína o aparelho mas toda uma
série de marchas moderadas já começam a desgastá-lo, e uma série de
marchas difíceis deterioram-no muito mais”. Por causa destas perdas
Clausewitz lança mão de considerações da ordem da oikonomia: como se
perde um grande contingente das próprias forças na marcha, é preciso
incluir nos cálculos tal desgaste: “quando nos preparamos para conduzir
uma guerra rica em movimento, devemos, portanto, contar com uma grande
destruição das nossas próprias forças; devemos organizar os outros em
conformidade e velar acima de tudo pelos reforços que deverão vir
depois”. Desta forma, podemos concluir que o marginal está dentro e
fora, em uma relação que o inclui e exclui simultaneamente; é o centro
das atividades de guerra que vai sempre submetê-lo à vontade soberana.
Por outro lado, se formos até 1928, ano em que é pu-blicado no American Journal of Sociology o ensaio de Robert Park, Human Migration and the Marginal Man,
teremos uma leitura que permite que o marginal saia da condição
relacional que está submetido. Park, que freqüentou alguns cursos de
Simmel, foi um dos fundadores da Escola de Chicago, inicialmente
preocupada, entre outros temas, com o problema do homem marginal e da
migração. Marginal - explica o autor - é “a man living and sharing in
the cultural life and traditions of two distinct peoples, never quite
willing to break, even if were permitted to do so, with his past and his
traditions and not quite accepted in the new society in which he now
sought to find a place”. O homem marginal não encontra um lugar, ele é
por excelência o “estranho”, diz Park, citando seu mestre Simmel: a sua
sensação de deslocamento será permanente. Assim, Park irá identificar o
mestiço como ordinariamente um homem marginal, pois “lives in two
worlds, in both of which he is more or less of a stranger”.
Everett Stonequist, aluno de
Park, também se debruça sobre o tema. Publica um ensaio, na mesma
revista que seu professor, com o título The problem of the marginal man, em 1935; dois anos depois publica um livro, The Marginal Man: a study in personality and culture conflict.
Nele diz que o homem marginal “oscila entre dois (ou mais) mundos
sociais, refletindo em sua alma os desacordos, as harmonias, as
repulsões e as atrações desses dois mundos”. A mobilidade e o
desenraizamento permite que a vida dos homens marginais seja “o mais
significativo material para a análise do processo cultural, tal como
surge dos contactos dos grupos sociais”. Os conceitos de Park e
Stonequist nos mostram que o marginal está em um entre-lugar, deslocado
cons-tantemente pelo seu desprendimento cultural, territorial e
identitário: ele não se integra a uma nova cultura, mas também não
permanece na antiga; ele não escolhe uma ou outra, ao contrário, mantém
contato com uma e outra.
É com base nestes conceitos que Sérgio Milliet, em 1942, escreve o ensaio Marginalidade da Pintura Moderna.
Para situar o homem marginal, mais especificamente o artista marginal,
Milliet analisa os grandes períodos de transição cultural das
civilizações – “períodos em que a cultura sofre violenta mudança” - e
apresenta em cada hiato artistas que não aderiram às novas imposições. É
no choque entre as civilizações que a marginalidade se arma. Após o
choque “se observa um conflito de atitudes do qual resulta uma
interpenetração de complexos culturais. Há, em seguida, uma fusão ou
assimilação com prevalência de padrões de uma ou de outra cultura, ou
ainda, com contribuição de ambas. A solidariedade cultural é quebrada
durante o período de aculturação, de perdas de cultura, que são expostas
as sociedades em contato, e a desintegração social sobrevém”.
É neste vácuo cultural que o
artista marginal se instalaria e lá permaneceria, não participando do
processo de reintegração social. Em Milliet, como em Park e Stonequist, a
marginalidade não está estritamente vinculada à classe social ou à
condição econômica; relaciona-se, nestes casos, mais com a postura do
indivíduo que se vêentre duas ou mais opções, mas que não
adere, não se encaixa, ou melhor, não se quer em nenhuma delas. O
marginal surge do conflito e é a sua não conseqüência, ou seja, não se
torna A nem B e sim A e B simultaneamente. Instala-se numa fissura que
não reivindica um território ou um passado, mas sim o presente num
encavalgamento do tempo.
A simultaneidade proporcionada
pela fissura coloca o homem marginal em contato e se apresenta como uma
linha de fuga que lhe possibilita o trânsito entre os padrões
estabelecidos sem que se torne refém deles, mas também sem criar um para
si. Conseqüente do confronto, o marginal é, como dissemos, inerente à
guerra, este conflito despe-o da experiência e lhe propicia a aquisição
de um saber que provém do corpo e que o auxilia na composição de novas
séries, novas combinações, uma nova forma de barbárie: uma hybris.
Beatriz Sarlo argumenta que o Borges, assim como Milliet, não deixa como condição exclusiva para o marginal sua posição social. Borges procede assim porque ope-ra em um deslocamento temporal e demonstra que “la verdad poética de ‘las orillas’ se construye en un leve anacronismo’”. De acordo com Sarlo, Borges percebe as margens como um “território original” onde seria possí-vel desvincular-se da tradição literária vigente para armar sua própria série. Borges, então, vislumbrou em Evaristo Carriego - um escritor que nos altos do modernismo domi-nado por Lugones, pela “poesia rica”, encontrou no su-búrbio uma sorte de inspiração para seus poemas - a sua origem poética, e com as linhas literárias homogêneas: “Borges tuerce las verticales y las horizontales, descoloca a Lugones e inventa un punto de partida extraño al prestígio establecido. Realiza un movimiento quebrado por la discontinuidad y pone a la literatura marginal de Carriego como principio de su literatura. Eso le permite inventarse un origen para la literatura futura, romper con las filiaciones previsibles, trazar los bordes de un territorio ficcional, hacer una elección de tono poético”.
Beatriz Sarlo argumenta que o Borges, assim como Milliet, não deixa como condição exclusiva para o marginal sua posição social. Borges procede assim porque ope-ra em um deslocamento temporal e demonstra que “la verdad poética de ‘las orillas’ se construye en un leve anacronismo’”. De acordo com Sarlo, Borges percebe as margens como um “território original” onde seria possí-vel desvincular-se da tradição literária vigente para armar sua própria série. Borges, então, vislumbrou em Evaristo Carriego - um escritor que nos altos do modernismo domi-nado por Lugones, pela “poesia rica”, encontrou no su-búrbio uma sorte de inspiração para seus poemas - a sua origem poética, e com as linhas literárias homogêneas: “Borges tuerce las verticales y las horizontales, descoloca a Lugones e inventa un punto de partida extraño al prestígio establecido. Realiza un movimiento quebrado por la discontinuidad y pone a la literatura marginal de Carriego como principio de su literatura. Eso le permite inventarse un origen para la literatura futura, romper con las filiaciones previsibles, trazar los bordes de un territorio ficcional, hacer una elección de tono poético”.
Para definir o marginal, também
temos o “abandonado” cuja heterogeneidade o retira, mesmo que se tente
incluir, de qualquer princípio fundador, posto que ele é gerado em uma
arealidade, no tempo do corte, na cisão que inviabiliza qualquer
tentativa de identidade e de pertencimento. O ser-abandonado, diz
Jean-Luc Nancy imobiliza a dialética, suspende a relação com o centro:
“That abandoned being, for us – and by us, perhaps – should correspond
to the exhaustion of transcendentals therefore means a cessation or
suspension of the discourses, categorizations, challenges, and
innovations whose proliferation constituted the being of being.
Abandoned being immobilizes the dialectic whose name means ‘the
one that abandons nothing, ever, the one that endlessly joins, resumes,
recovers’. It obstructs of forsakes the very position, the
initial position, of being, that empty position whose truth of
nothingness, immediately turned back on and against being, mediates the
becoming, the inexhaustible advent of being, its resurrection and the
parousia of its absolute unity, truth, a goodness, arousing and pouring
back into it the foam of its own infinity." O ser-abandonado não tem
vínculos, é o que não pode ser inscrito em nenhuma categoria, o que não
pode ser classificado, qualificado e nomeado, é uma multiplicidade de
nomes, uma abundância, um excesso: é um ser pluralmente singular e
singularmente plural, uma suspensão no tempo, uma simultaneidade, que
não assimila fundadores, mas também não se torna fundador. Viver, ou
melhor, ser-com, no confim, no limbo, eis a condição do marginal tomada em um “topos” ideal.
Fonte: SOPRO 99
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