PICICA: "As HQs conquistam cada vez mais espaço na universidade, seduzida pela diversidade semântica e disposta e investigar múltiplas provocações deste gênero"
A riqueza dos quadrinhos, também na academia
As HQs conquistam cada vez mais espaço na universidade, seduzida pela diversidade semântica e disposta e investigar múltiplas provocações deste gênero
Reportagem de Carolina Ito
A ideia de que as histórias em quadrinhos são destinadas apenas ao entretenimento e ao público infantil vem sendo desconstruída ao longo das últimas décadas e isso se deve, em parte, pelo desenvolvimento de pesquisas acadêmicas que têm as HQs como objeto de estudo. Elas crescem em número e qualidade a cada ano, mostrando que existe uma maior compreensão sobre a linguagem e seu potencial de representação da vida social.
Os pioneiros dos estudos de quadrinhos no Brasil, das décadas de 1960 e 1970, dedicaram parte de suas obras a justificar a análise desse tipo de produção, já que quadrinhos ainda eram vistos como um tipo de leitura alienante e até mesmo como responsáveis pela formação de “leitores preguiçosos” entre os jovens da época, como descreve Álvaro de Moya em “Shazam!”, livro publicado pela editora Perspectiva, em 1970.
Waldomiro Vergueiro, docente da Universidade de São Paulo e referência no estudo de HQs, comenta que “algumas barreiras para a pesquisa em quadrinhos deixaram de existir e mais alunos se atreveram – a melhor palavra talvez seja essa mesma -, a propor pesquisas enfocando esse tema” e, ao mesmo tempo, “muitos orientadores, que antes teriam de antemão recusado tais propostas, passaram a olhá-las com outros olhos”.
De acordo com Daniela Marino, da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), a academia teve um papel importante de difundir a importância dos estudos de quadrinhos e “muitas instituições têm se mostrado mais abertas e flexíveis para a abordagem do assunto, o que não acontecia há algumas décadas”.
Outro fator ligado ao aumento do interesse pelo estudo de HQs, segundo Alex Caldas, doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é que “o século XXI é o século da multimodalidade” e mais pesquisadores se voltam para explorar narrativas entre o verbal e o não-verbal. Por conta dessa versatilidade, diversas áreas do conhecimento são mobilizadas tendo os quadrinhos como objeto de estudo.
Múltiplas abordagens
Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos realizaram um levantamento de todas as teses e dissertações desenvolvidas na USP sobre quadrinhos nos últimos 35 anos e ampliaram a coleta para o Banco de Teses da CAPES e o Portal Domínio Público, no período de 2011 a 2014. Nessa segunda fase, foram identificadas 179 teses e dissertações realizadas no Brasil. Os pesquisadores acreditam o que o número está abaixo da realidade porque no Banco de Teses da Capes só constam trabalhos apresentados para bancas examinadoras. “Mesmo assim, o total atingido nos parece bastante promissor”, observa Vergueiro.
A surpresa foi de que a maioria das pesquisas brasileiras é da área de Letras e Linguística e Literatura, diferente do que ocorre na USP, em que a maioria é tradicionalmente desenvolvida na área de Comunicação.
“Ao compararmos as áreas em que
as pesquisas foram realizadas, ficamos surpreendidos com a forte
presença de pesquisas sobre histórias em quadrinhos na área de Letras,
Linguística e Literatura, que atingiram 34% das teses e dissertações,
ultrapassando em muito as pesquisas na área de Ciências da Comunicação,
que atingiram apenas 20% dos trabalhos. A terceira área que mais tem
estudado as histórias em quadrinhos é a de Educação, com 15% das
pesquisas acadêmicas”. (Waldomiro Vergueiro)
As Jornadas Internacionais de Quadrinhos, realizadas pelo Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP surgiram em 2011 e atuam como um centro de discussão sobre a produção científica na área. O evento, que este ano teve sua terceira edição, recebeu 50 resumos a mais do que na primeira e trouxe pesquisadores(as) estrangeiros para ministrarem palestras.
E o que estão pesquisando?
Há uma infinidade de temas e abordagens nas pesquisas sobre quadrinhos, desde análises de super-herois, até o uso em sala de aula. Alguns pesquisadores e pesquisadoras se dispuseram a contar um pouco sobre seus temas e, com esses exemplos, já dá pra ter uma ideia da diversidade teórica da área.
Alex Caldas, doutorando pela UERJ pesquisou gêneros discursivos dos quadrinhos, analisando a construção de termos como tira cômica, charge, cartum e caricatura.
“Os gêneros dos quadrinhos se
confundem, pois se constroem, como dizem os linguista
sistêmico-funcionais, no mesmo campo e relação. O que muda é o modo. Ou
seja, a maneira como cada gênero usa a linguagem dos quadrinhos”. (Alex
Caldas)
Edilaine Correa, mestre em Comunicação e Semiótica e Especialista em Literatura pela PUC-SP, pesquisou charges e adaptações literárias para os quadrinhos.
“Todas as análises que me proponho
fazer sobre o objeto das HQs procuram revelar seu potencial como
instrumento narrativo, icônico, integração literária, textual para o
visual, plurissignificativo”. (Edilaine Correa)
Ed Sarro, doutorando em Ciências da Comunicação pela USP, estuda os quadrinhos de uso corporativo usados como cartilhas de treinamento ou para comunicação organizacional. No mestrado, ele concluiu que os quadrinhos formam uma espécie de “gramática visual” que não é totalmente intuitiva. Ou seja, para ler quadrinhos, é preciso aprender sobre os recursos mínimos da linguagem, como, por exemplo, o direcionamento da leitura na página, a função dos balões, onomatopeias e legendas.
“No doutorado ainda não cheguei a
uma conclusão, mas minha análise visa a demonstrar que os quadrinhos de
uso corporativo (para comunicação organizacional e treinamento) são
produzidos a partir de figuras de linguagem presentes na retórica
verbo-visual, similar à da propaganda, para persuadir o leitor à adoção
de um ideal ou comportamento”. (Ed Sarro)
Savio Roz, mestrando em em História pela
Universidade Salgado de Oliveira, pesquisa sobre os traços discursivos
feministas nas histórias em quadrinhos da Mulher Maravilha.
“Através de imaginários sociais,
muitas representações e discursos são alegorias que não condizem com as
práticas reais inicialmente. Mas como vivemos das superficialidades dos
discursos, as pessoas tendem a construir uma imagem do que é ser
feminista que extrapola de estereótipos”. (Savio Roz)
Monique Nascimento, mestranda em Comunicação
Social pela Unesp, analisa a junção entre quadrinhos e fotografia na
obra “O Fotógrafo: uma história no Afeganistão”, que é uma série de
livros que misturam relato jornalístico com a narrativa dos quadrinhos.
“Acredito que os quadrinhos têm um
grande poder comunicacional e que atinge o leitor de um modo particular.
Por meio das HQs o leitor pode se entreter e se informar. Entretanto
esse potencial ainda não é explorado totalmente”. (Monique Nascimento)
Gazy Andraus, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, estudou HQs poéticas e o uso no ensino universitário.
“Embasei-me com ciência cognitiva
provando que a imagem (o desenho) é tão importante como informação que a
palavra racional escrita. Porém, a imagem entra em outras áreas
cerebrais amplificando nossa inteligência, de simplesmente racional e
linear (que é incentivada pela leitura científica e textual) para a
sistêmica intuitiva e alinear, propulsionada pela leitura de desenhos,
de HQs, junto da leitura científica”. (Gazy Andraus)
Valéria Bari, doutora em Ciência da
Informação pela Universidade Federal de Sergipe, pesquisou histórias em
quadrinhos e formação do leitor.
“Apresentar ao leitor as opções de
leitura, sejam elas em quadrinhos ou em outras linguagens e mídias,
deveria ser uma missão difundida entre a sociedade e a instituição
escolar. Quando se falha nesta apresentação, a leitura adquire caráter
utilitário e o egresso da escolarização termina como analfabeto
funcional”. (Valéria Bari)
Geovana Held, formada em Artes Visuais pela
Universidade Cruzeiro do Sul, também aborda aspectos educacionais das
HQs, a partir da análise do projeto editorial das Graphics MSP (que
publicaram “Turma da Mônica Laços”, feita pelos irmãos Cafaggi), que são
reinvenções da Mauricio de Souza Produções.
.
“Os quadrinhos conduzem
cognitivamente o saber e o buscar. E o desenvolvimento disso nas
escolas, por exemplo, ampliaria a educação estética das crianças”.
(Geovana Held)
A paixão pelos quadrinhos é o elemento em comum entre todos esses pesquisadores, mesmo que os temas e análises sejam totalmente diferentes. Ainda existem aqueles que, além de pesquisarem, também fazem quadrinhos, unindo teoria e prática numa relação intrínseca.
Artistas-pesquisadores(as)
Embora não seja uma regra, não é raro encontrar pesquisadores de quadrinhos que também são quadrinistas. É o caso de Pedro Franz, mestre em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina, que pesquisa as aproximações entre quadrinhos e artes plásticas.
“Espero que mais
quadrinistas queiram e possam desenvolver suas pesquisas também de forma
acadêmica, e também que teóricos e críticos percebam, cada vez mais,
que sua prática pode acontecer de outros modos fora da academia: atuando
como curadores, como editores, organizando exposições ou criando
eventos que apresentem seu posicionamento com a história em quadrinhos e
que, tudo isso, pode também ser uma forma de crítica”. (Pedro Franz)
A dissertação do mestrado de Franz também
resultou em uma exposição e uma publicação de história em quadrinhos.
Os três trabalhos se convergem sob o título de “Incidente em Tunguska”.
Fonte: Blog da Redação
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