PICICA: "A nostalgia é a dor do retorno. Ou melhor, da impossibilidade de retornar a um passado que já não é mais. Ela é toda a nossa angústia com o tempo. O que aprenderíamos da literatura e do cinema sobre esse sofrimento tão constante?"
NOSTALGIA: DO TEMPO OU DA DOR CRÔNICA DE NÃO MAIS SER
O narrador de A ignorância (2000), romance de Milan Kundera, ensina que a nostalgia é a dor do retorno. Para ele, a Odisseia, por que Ulisses prefere a apoteose da volta para casa ao mergulho no desconhecido, é a fundadora da nossa ideia dessa espécie de sofrimento. Voltar para algo que já deixou de ser.
Quando naufragamos no retorno a esse sofrimento, nóstos (retorno) e álgos (sofrimento), ainda na lição de Kundera, sofremos na verdade da impossibilidade de retornar a um lugar, mesmo que lá já estejamos.
Ulisses retorna, todavia não mais para o que deixou antes da guerra de Troia. Retorna para o que cantam dele 20 anos depois de sua partida. Para o que já lhe haviam anunciado as sereias no meio do caminho.
Ulysses and the Sirens de J.W. Waterhouse, 1891.
Somos tomados de um desejo de viver lá e cá ao mesmo tempo, usufruindo das coisas boas vividas no passado com as conquistas do presente.
Este tipo de sofrimento frequentemente é associado à saudade.Talvez seja a saudade algo diferente: a esperança do ser. A nostalgia seria mais a evidência de não mais ser.
No cinema, Tarkovski projetou secamente esse percurso no filme Nostalgia (1983), em que o protagonista precisa atravessar uma piscina vazia carregando uma vela acesa. Quando se apaga, o percurso reinicia-se em agonia
Cena de Nostalgia, Andrei Tarkovski, 1983
É possível que essa dor desate quando o presente é crítico e o futuro incerto, como sempre é.
O futuro, dos três tempos, é sempre o que garante menos. Talvez por isso queiramos sempre voltar ao passado. Talvez por isso gramaticalmente tenhamos um futuro do pretérito ou um futuro do presente. Longe aqui de se negar um direito à nostalgia. Ela está intrínseca em nossa aprendizagem afetiva mais tenra. Mas há o esquecimento do presente, por mais que nos últimos tempos tenha se chamado atenção a ele, em uma atualização do carpe diem
Mas onde estaria este tempo tão inapreensível? Como seria possível viver o retorno a uma memória sem abdicar do que ainda está por vir, sem sacrificar o presente? É toda a angústia de Ulisses, das personagens de Kundera e de Tarkovski.
O Tempo é aquele que devora seus filhos. Saturno devorando um filho, Francisco de Goya, 1819-1823.
De todos os tempos, o presente é o transitório. A transitoriedade como a própria ideia de partida e de retorno, como o que se aprende com a Odisseia. A intuição talvez seja o corpo e sua transitoriedade.
Octávio Paz, poeta e ensaísta mexicano, num livro sobre os aspectos da poesia, O arco e a lira (1956), quando diz sobre o ritmo, ensina que não é o tempo que passa, mas nós que passamos pelo tempo. Esta inversão de perspectiva formula uma espécie de bálsamo para essa dor do retorno, da impossibilidade de retornar como se deseja, ou ainda, de um retorno possível.
De todas as transitoriedades, o corpo talvez seja o gêmeo material dessa fantasmagoria chamada tempo. É com o corpo que atravessamos o tempo ou que fazemos com que os tempos em nós se atravessem.
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