PICICA: "Ao seguir preceito de Pasolini, “Campo de Jogo”, de Eryk Rocha,
revela os jogos de várzea — em que esporte despe-se de sua armadura
mercantil e aparece cheio de sacrifícios, fraturas e resistências"
Quando o cinema de poesia descobre outro futebol
Ao seguir preceito de Pasolini, “Campo de Jogo”, de Eryk Rocha, revela os jogos de várzea — em que esporte despe-se de sua armadura mercantil e aparece cheio de sacrifícios, fraturas e resistências
Por Deni Rubbo e Tiago Villa*
Há cinquenta anos, em junho de 1965, o cineasta Pier
Paolo Pasolini apresentava uma comunicação “O cinema de poesia”, na
Primeira Mostra Internacional do Novo Cinema realizado em Pésaro
(Itália). Sua apresentação gerou inúmeros debates vindouros e o próprio
cineasta italiano retomou o tema em artigos posteriores. Para Pasolini,
um produto artístico (no caso, o cinema), embora derivasse do real, da
experiência direta com o mundo, era também fruto da imaginação do seu
criador. Não esqueçamos que o cineasta era um defensor irrestrito do
cinema autoral, isto é, o cinema como ato de criação. Desse modo,
entrava em debate a canônica diferenciação entre “cinema de poesia” e
“cinema de prosa”. Qual seria a diferença fundamental entre os dois
modos de cinema que Pasolini assinalou? Em suas palavras: “O cinema
prosa é um cinema no qual o estilo tem um valor não primário, não tão à
vista, não clamoroso, enquanto no cinema de poesia é o elemento central,
fundamental. Em poucas palavras, no cinema de prosa não se percebe a
câmera e não se sente a montagem, isto é, não se sente a língua, a
língua transparece no seu conteúdo, e o que importa é o que está sendo
narrado. No cinema de poesia, ao contrário, sente-se a câmera, sente-se a
montagem, e muito”i.
O cinema de poesia era afirmação da dimensão
subjetiva no discurso narrativo em oposição ao “cinema de prosa”, com um
estilo cinematográfico que sufocava o onírico da narrativaii.
Essa oposição, no entanto, assinalada pelo cineasta italiano não
significava uma hierarquia de uma sobre outra, eram apenas modos
diferentes. Talvez a questão, ou até mesmo, a provocação, que pulsava à
época de suas formulações era a hegemonia do cinema de prosa, sempre
eficiente em suas propostas de arrematar com êxito o espectador — muitas
vezes, a bem da verdade, por razões comerciais. Enquanto que o cinema
de poesia possuía potencialidade e recursos para decolar, mas os
experimentos ainda estavam incipientes. Afinal, o cinema de poesia
expressava uma forma de estruturação distinta da narrativa convencional,
mediada pelo estilo pessoal de um determinado cineasta. Ao invés de
enfatizar a comunicabilidade como fazia o cinema de prosa, o cinema de
poesias colocaria o acento na expressividade poética.
Parece-nos que o filme Campo de jogo, de Eryk Rocha, possui imensas afinidades com o conceito de cinema de poesia
de que falava Pasolini. À primeira vista, o filme de Rocha tem um
roteiro relativamente modesto: mostrar a partida final entre dois times
do campeonato anual de favelas do Rio de Janeiro: Geração e Juventude –
ambos de comunidades da zona norte do Rio de Janeiro. No entanto, é mais
do que isso. Campo de jogo é uma junção fantástica entre
futebol, cinema (de poesia) e uma tentativa de re-encantar do mundo a
partir de uma linguagem onírica. Essa experiência estética simbiótica,
não raras vezes passional, produz uma embriaguez no espectador pelo
poder mágico e subversivo da imagem e pela força transgressiva das
sequências.
Esqueçam, por um momento, de tudo que hoje remete à
espetacularização do futebol e que afasta o que não é rentável: a
tecnocracia do esporte profissional, a construção de estádios
caríssimos, os lucros gigantescos de cartolas envolvidos em redes de
corrupção intermináveis, a elitização do torcedor. Em suma, aquilo que
Eduardo Galeano denominava de futebol à sombraiii.
Ou melhor, não se olvidem disso enquanto contrapartida do que foi
composta a matriz do futebol brasileiro e latino-americano, o futebol ao sol,
aquilo que somos: o campo de terra, a pelada, a negritude, a
comunidade, a improvisação. O futebol é também uma metáfora das fraturas
sociais expostas do Brasil: um regime de segregação social sem
remissão. O Brasil das chuteiras importadas e dos pés descalços. A
experiência coletiva da partida de futebol é atravessada pela matriz
simbólica de perdas e ganhos no capitalismo desapiedado tão bem
instalado e expressivo como a sociedade brasileira. Assim, não deixa de
ser curioso o fato das filmagens aconteceram enquanto rolava a Copa das
Confederações e a repressão da polícia em várias partes do país.
Talvez, por essas razões, vendo o filme de Eryk
Rocha, percebe-se uma desconstrução implícita da tese que associa
tão-somente a relação entre futebol e alienação, ou seja, do futebol
como anestesia das consciências das massas, ou ainda, como válvula de
escape dos conflitos sociais – argumento muitas vezes proferido por
certos intelectuais da “esquerda”. Uma resposta interessante a esse
argumento é o que diz o escritor uruguaio já citado, que menciona um
exemplo latino-americano de resistência: “o time Argentinos Juniors
nasceu chamando-se Clube Mártires de Chicago, em homenagem aos operários
anarquistas enforcados num primeiro de maio, e foi um primeiro de maio
para fundar o clube Chacarita, batizado numa biblioteca anarquista de
Buenos Aires”. Em seguida, cita o marxista italiano Antônio Gramsci, que
elogiou o futebol como “este reino da liberdade humana exercida ao ar
livre”iv.
Em Campo de Jogo, a narrativa concentra-se nos
rituais que compõe uma partida de futebol. Há um diálogo com a tradição
(não com o tradicionalismo), com as raízes genuínas do futebol, o que
reforça a hipótese do cinema de poesia. Jogadores, goleiros, torcedores,
árbitro, técnico, bola são captados de maneira magnífica, entoando um
caráter poderoso, mítico, tribal, primitivo, rústico, mostrando a natureza selvagem de cada agente que compõe um jogo de futebol, como se fossem guerreiros caminhando para a última batalha.
A narração consegue potencializar essas sensações,
reforçada pela trilha sonora (composta por óperas e músicas clássicas),
de que emanam, muitas vezes, um caráter sagrado e uma visão do jogo como
epopeia. O espectador emite uma sensação estranha com os planos.
Ele percebe nitidamente suas mudanças, seus cortes bruscos, sua heresia
estética, sua abolição do tempo linear e contínuo, mas, ao mesmo tempo,
não permanece entediado ou acomodado. Pois é através da montagem que se
percebe uma associação mais livre de imagens destacando-se o caráter
onírico do futebol, o que trás um verdadeiro “estado de graça”.
Rocha percebe como poucos que o futebol é uma arte
esteticamente potente para o cinema, lembrando que uma partida de
futebol é o “tempo” normal de um filme – uma curiosa afinidade. Por
isso, não precisou usar da narrativa convencional para falar do
jogo, pois ele fala por si só, não necessita de explicações. É verdade
que o espectador é mais exigido que de costume. Mais do que isso, ele é
um participante da narrativa, pois esta, ao invés conduzi-lo a um
resultado burocraticamente usual, deixa-o com pulgas atrás das orelhas,
dúvidas, receios, frente a uma construção de imagens inquietante que lhe
exige uma interpretação pessoal.
Assim, parece que o futebol é capaz de produzir
ensinamentos notáveis e reflexões oportunas, ao contrário do que pensam
os que querem reduzi-lo a interesses econômicos da sociedade mercantil e
do espetáculo. Na interseção entre o mítico, tradições e alegorias, a
partir da pulsão do cinema de poesia, Campo de jogo de Eryk Rocha parece despertar outro ângulo do futebol, como um espaço em transe, cheios de sacrifícios, de fraturas e de resistências.
–
i PASOLINI, Pier Paolo. “Cinema de prosa e cinema de poesia”. In: PASOLINI, P. P. Diálogos com Pier Paolo Pasolini: escritos (1957-1984). São Paulo: Nova Stella, 1986, p. 104.
ii
Para uma análise sobre cinema de poesia tomando como exemplo filmes de
Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski, ver o interessante livro de Erika
Savernini, Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004).
iii GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. (Porto Alegre: LPM, 2014).
iv Idem, p.37.
–
* Deni Rubbo é doutorando em Sociologia pela USP. Tiago Villa é licenciado em Ciências Sociais e funcionário da USP
DeniRubbo
Deni Rubbo é doutorando em Sociologia pela USP e escreve sobre Cinema, Política, Sociedade e Comportamento para Outras Palavras
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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