outubro 13, 2015

Se não há vagas: não há mérito (VENTRÍLOQUO)

PICICA: 
"Essa conversa é em homenagem ao Ivan "Zecão"
e tantos outros garotos que a bala e o sangue no chão 
fizeram eternizarem-se na minha memória. Mas,
principalmente, me fazendo menos ilha."

Se não há vagas: não há mérito

Eu queria uma foto de um negativo. Mas não tenho negativos. Só uma velha máquina da infância.


Essa conversa é em homenagem ao Ivan "Zecão"

e tantos outros garotos que a bala e o sangue no chão 

fizeram eternizarem-se na minha memória. Mas,
principalmente, me fazendo menos ilha.


Eu queria dizer, já cometendo o pecado de deixar entornar um pouco o chope da tulipa, que eu queria, eu queria era mesmo contar aqui nessa conversa como eu me sentia uma ilha quando criança. Uma criança ilha cercada por todos os lados de uma proteção familiar amorosa, paciente, espirituosa e formadora de um caráter moral e educacional que mesmo hoje – com o canudo que guardava o diploma guardado em algum buraco da estante do escritório – me surpreende. Eu não sei, na verdade, se sentia isso – a coisa da ilha – quando criança ou se isso foi se construindo em mim depois de velho ou nessa vontade estranha que tenho de ficar bradando pelos cotovelos nos mais dissonantes tons que a gente pode encontrar. A questão é que eu queria conversar meio pra lá meio pra cá sobre essa coisa de eu ser uma ilha, pois à volta da minha vida-ilha, do coral de amor que eu enumerei que protegia praticamente intacta minha vida-ilha, o que se via era pobreza, violência e falta de oportunidade, mas falar sobre isso é meio piegas demais e pessoal demais, e a parada, camarada, é imitar a voz dos outros, pois os outros é que são elas e suas vozes é que falam de verdade!

Recordo bem, você tinha que ver, era uma construção de vivência muito curiosa e nem acho que singular: Conheço muitos outros casos de ilhas-vida como a minha. Ainda esse ano, nos festejos de virada perguntarei para papai e para mamãe de onde tiraram o conceito definidor de educação que me norteou e norteia ainda hoje (e não sei muito bem como agradecê-los por isso). Mesmo sendo eu uma ilha, meus pais não me fecharam o horizonte para o que estava lá, além do coral, está certo que não invadiam – ou quase não invadiam – minhas areias limpas e com tatuís, a fome, a violência, as drogas pesadas, a falta de oportunidade, etc., etc. Mas, meus pais nunca fecharam meus olhos para essa realidade, me tornando uma ilha intocável de amor, tampouco construíram em seus discursos educadores um contraponto, muito perigoso por sinal e quase escatológico, de colocar em mim a angústia de “você é mais que obrigado a ter sucesso, pois tem tudo na vida(ilha)”. Acho que era mais universalizante: “Use o que você tem para ajudar os outros, principalmente fazendo na vida o que você gosta de verdade de fazer”. Gostei de fazer muitas coisas, ah, como eu fiz muitas coisas até encontrar verdadeiramente o que gostar verdadeiramente e me sustentar com aquilo! Só não sei bem se ajudei os outros como meus pais queriam que eu ajudasse.

Mas essa porra aqui não é divã. E duas coisas na vida são batata: Se o chope começa a entornar na mão do caboclo e demorar a ser virado a ponto de esquentar é porque o nível de alegria aumentou, para mal ou para bem. Aí, ou a conversa fica chata ou alguém dança na mesa.

A questão é que um certo ardor, e o ardor queima e quebra o santo de barro, tanto quanto um andor apressado o derruba, de que deve-se ter mais aqueles que trabalham mais, aqueles que estudaram mais, aqueles que são mais e tem mais e querem mais e precisam de mais, pois merecem mais e é sempre mais, mais, mais. Mas é o seguinte: Não há vagas.

Não vejo muito mérito se não há chance de demonstrar o mérito, se não há chance de se construir o mérito de maneira igualitária. O resto, o resto a vida mede, mesmo ela não medido certo, mas algum ponto de corte sempre deve existir. É evidente que sempre haverá a discussão entre biscoito e bolacha. E o menino branco da ilha-vida de amor ser(se tornar) um crápula e o menino negro da ilha-vida de dor ser(se tornar) o mais novo Prêmio Nobel. Biscoito ou bolacha? E pode ser o inverso também. Porém, as estatísticas estão aí para demonstrar que há mais meninos negros sujeitos à dor do que meninos brancos, a não ser que sejam quase negros.

Confesso e me angustia a questão-confissão: Que mérito tenho eu diante do menino negro que morava há quinhentos metros da minha casa e que tinha que trabalhar catando lata e ferro-velho para ajudar os pais enquanto eu tinha aulas de espanhol num curso há dez ou sete quilômetros da nossa rua, indo de carro? E mesmo assim, não aprendi porra nenhuma porque eu era preguiçoso para rever os exercícios, tendo que voltar a estudar anos depois, pois me dei conta, na Espanha, que apenas enrolava no idioma? (O rapaz negro foi morto pela polícia anos depois e nunca viajou além dos morros da Zona Norte para trazer maconha para ser vendida na nossa rua).

Mas a questão pode ser de bêbado tentando imitar com voz de jornalista sensacionalista alguma manchete. Há de se tomar cuidado com esse tipo de reflexão. Pode soar falsa, piegas ou uma busca de auto-afirmação muito típica dos construtores de mérito ou dos escribas da autoflagelação. Não sejamos nenhum dos dois. Biscoito ou bolacha? A vida mede, é claro. Mas, se a vida por si só já comete injustiças na sua métrica, quiçá, cada um de nós! O que mais há são inocentes úteis.

Escuta, escuta, me ouça para o que interessa: se não há vagas, não há mérito! Entenda: não há mérito se não há para todos (e veja que digo todos: bolachas e biscoitos) saúde, escola, vagas em empregos dignos, com salários decentes, moradias decentes. Onde haverá mérito sem esse mínimo? E se na etimologia latina “mérito” é ganho, lucro, proveito e, por fim, o mais atualmente usado sentido de “merecimento”, como conquistar isso tudo sem vagas? Sem oportunidade? Sem espaço? Sem ser podado continuamente por sua cor, seu status social, sua região de nascimento?


É impressionantemente triste como em terras (de) tupiniquins (extintos) tudo é na base do mutatis mutantis. No fundo, o discurso da meritocracia funciona na prática como sua antonímia, o rapaz negro que morreu por vender erva enquanto eu não revia o pospretérito do verbo olvidar na minha infância, mas que se criou lado a lado comigo, além de estatística, é um tosco exemplo de demérito frente ao mérito na boca de quem me usa para defender o mais para quem já tem mais, pois fez mais e merece mais porque o mais é mais sempre para aquele que é mais em tudo e venceu porque quis mais e foi buscar mais e mais e agora tem mais tirando mais de alguém mais. Mas... Nemo iudex sine lege, meus amigos. Não confundam a construção, se não há vagas igualitárias: não há como demonstrar o mérito e permitir que a natureza cometa seus erros de métrica! Eu não sou fruto de uma meritocracia individualista, alguém me protegeu dela! Amém!
Fonte:  O VENTRÍLOQUO

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