PICICA:
"Essa conversa é em homenagem ao Ivan "Zecão"
e tantos outros garotos que a bala e o sangue no chão
fizeram eternizarem-se na minha memória. Mas,
principalmente, me fazendo menos ilha."
principalmente, me fazendo menos ilha."
Se não há vagas: não há mérito
Eu queria uma foto de um negativo. Mas não tenho negativos. Só uma velha máquina da infância. |
Essa conversa é em homenagem ao Ivan "Zecão"
e tantos outros garotos que a bala e o sangue no chão
fizeram eternizarem-se na minha memória. Mas,
principalmente, me fazendo menos ilha.
principalmente, me fazendo menos ilha.
Eu queria dizer,
já cometendo o pecado de deixar entornar um pouco o chope da tulipa, que eu queria,
eu queria era mesmo contar aqui nessa conversa como eu me sentia uma ilha
quando criança. Uma criança ilha cercada por todos os lados de uma proteção
familiar amorosa, paciente, espirituosa e formadora de um caráter moral e
educacional que mesmo hoje – com o canudo que guardava o diploma guardado em
algum buraco da estante do escritório – me surpreende. Eu não sei, na verdade,
se sentia isso – a coisa da ilha – quando criança ou se isso foi se construindo
em mim depois de velho ou nessa vontade estranha que tenho de ficar bradando
pelos cotovelos nos mais dissonantes tons que a gente pode encontrar. A questão
é que eu queria conversar meio pra lá meio pra cá sobre essa coisa de eu ser
uma ilha, pois à volta da minha vida-ilha, do coral de amor que eu enumerei que
protegia praticamente intacta minha vida-ilha, o que se via era pobreza, violência
e falta de oportunidade, mas falar sobre isso é meio piegas demais e pessoal
demais, e a parada, camarada, é imitar a voz dos outros, pois os outros é que
são elas e suas vozes é que falam de verdade!
Recordo bem, você
tinha que ver, era uma construção de vivência muito curiosa e nem acho que
singular: Conheço muitos outros casos de ilhas-vida como a minha. Ainda esse
ano, nos festejos de virada perguntarei para papai e para mamãe de onde tiraram
o conceito definidor de educação que me norteou e norteia ainda hoje (e não sei
muito bem como agradecê-los por isso). Mesmo sendo eu uma ilha, meus pais não
me fecharam o horizonte para o que estava lá, além do coral, está certo que não
invadiam – ou quase não invadiam – minhas areias limpas e com tatuís, a fome, a
violência, as drogas pesadas, a falta de oportunidade, etc., etc. Mas, meus
pais nunca fecharam meus olhos para essa realidade, me tornando uma ilha
intocável de amor, tampouco construíram em seus discursos educadores um
contraponto, muito perigoso por sinal e quase escatológico, de colocar em mim a
angústia de “você é mais que obrigado a ter sucesso, pois tem tudo na
vida(ilha)”. Acho que era mais universalizante: “Use o que você tem para ajudar os
outros, principalmente fazendo na vida o que você gosta de verdade de fazer”.
Gostei de fazer muitas coisas, ah, como eu fiz muitas coisas até encontrar
verdadeiramente o que gostar verdadeiramente e me sustentar com aquilo! Só não sei bem se
ajudei os outros como meus pais queriam que eu ajudasse.
Mas essa porra
aqui não é divã. E duas coisas na vida são batata: Se o chope começa a entornar
na mão do caboclo e demorar a ser virado a ponto de esquentar é porque o nível
de alegria aumentou, para mal ou para bem. Aí, ou a conversa fica chata ou alguém dança na mesa.
A questão é que um
certo ardor, e o ardor queima e quebra o santo de barro, tanto quanto um andor
apressado o derruba, de que deve-se ter mais aqueles que trabalham mais,
aqueles que estudaram mais, aqueles que são mais e tem mais e querem mais e
precisam de mais, pois merecem mais e é sempre mais, mais, mais. Mas é o
seguinte: Não há vagas.
Não
vejo muito
mérito se não há chance de demonstrar o mérito, se não há chance de se
construir
o mérito de maneira igualitária. O resto, o resto a vida mede, mesmo ela
não medido certo, mas algum ponto de corte sempre deve existir. É
evidente que
sempre haverá a discussão entre biscoito e bolacha. E o menino branco da
ilha-vida de
amor ser(se tornar) um crápula e o menino negro da ilha-vida de dor
ser(se tornar) o
mais novo Prêmio Nobel. Biscoito ou bolacha? E pode ser o inverso
também. Porém, as estatísticas estão aí para demonstrar que há mais
meninos negros sujeitos à dor do que meninos brancos, a não ser que
sejam quase negros.
Confesso e me
angustia a questão-confissão: Que mérito tenho eu diante do menino negro que
morava há quinhentos metros da minha casa e que tinha que trabalhar catando lata e ferro-velho para ajudar
os pais enquanto eu tinha aulas de espanhol num curso há dez ou sete
quilômetros da nossa rua, indo de carro? E mesmo assim, não aprendi porra
nenhuma porque eu era preguiçoso para rever os exercícios, tendo que voltar a
estudar anos depois, pois me dei conta, na Espanha, que apenas enrolava no
idioma? (O rapaz negro foi morto pela polícia anos depois e nunca viajou além dos morros da
Zona Norte para trazer maconha para ser vendida na nossa rua).
Mas
a questão
pode ser de bêbado tentando imitar com voz de jornalista sensacionalista
alguma
manchete. Há de se tomar cuidado com esse tipo de reflexão. Pode soar
falsa,
piegas ou uma busca de auto-afirmação muito típica dos construtores de
mérito
ou dos escribas da autoflagelação. Não sejamos nenhum dos dois. Biscoito
ou
bolacha? A vida mede, é claro. Mas, se a vida por si só já comete
injustiças na sua métrica, quiçá, cada um de nós! O que mais há são
inocentes úteis.
Escuta,
escuta,
me ouça para o que interessa: se não há vagas, não há mérito! Entenda:
não há mérito se não há para todos (e veja que digo todos: bolachas e
biscoitos) saúde, escola, vagas em empregos dignos, com salários
decentes, moradias decentes. Onde haverá mérito sem esse mínimo? E se na
etimologia latina “mérito” é
ganho, lucro, proveito e, por fim, o mais atualmente usado sentido de
“merecimento”, como
conquistar isso tudo sem vagas? Sem oportunidade? Sem espaço? Sem ser
podado continuamente por sua cor, seu status social, sua região de
nascimento?
É
impressionantemente triste como em terras (de) tupiniquins (extintos) tudo é na base
do mutatis mutantis. No fundo, o
discurso da meritocracia funciona na prática como sua antonímia, o rapaz negro
que morreu por vender erva enquanto eu não revia o pospretérito do verbo
olvidar na minha infância, mas que se criou lado a lado comigo,
além de estatística, é um tosco exemplo de demérito frente ao mérito na
boca de
quem me usa para defender o mais para quem já tem mais, pois fez mais e
merece mais porque o
mais é mais sempre para aquele que é mais em tudo e venceu porque quis
mais e
foi buscar mais e mais e agora tem mais tirando mais de alguém mais.
Mas... Nemo iudex sine lege, meus amigos. Não confundam a
construção, se
não há vagas igualitárias: não há como demonstrar o mérito e permitir
que a natureza cometa seus erros de métrica! Eu não sou fruto de uma
meritocracia individualista, alguém me protegeu dela!
Amém!
Fonte: O VENTRÍLOQUO
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