PICICA: "[...] no tocante à sociologia
crítica o livro de Karl Polanyi, A grande transformação, talvez
seja a obra que mais perto tenha chegado de traduzir para a linguagem
da teoria social o grande consenso popular formado no pós-Segunda Guerra
em torno da necessidade imperiosa de regular o capitalismo a fim de
proteger a humanidade dos efeitos deletérios da mercantilização do
trabalho, da terra e do dinheiro. Publicado em 1944, mesmo ano do
aparecimento do livro de Friedrich von Hayek, O caminho da servidão, o projeto intelectual por trás de A grande transformação
foi, em grande medida, forjado nos anos 1920 enquanto Polanyi vivia em
uma Viena “socialista” que marcou de forma indelével suas convicções
socialistas democráticas."
Incontornável Polanyi
[Karl Polanyi 1886-1964]
Por Ruy Braga.
Escrevendo
três meses antes do pedido de concordata do banco Lehman Brothers, marco
do início da atual crise econômica mundial, o professor de economia da
Universidade da Califórnia em Davies, Gregory Clark, publicou uma
resenha crítica à obra-prima de Polanyi questionando-se sobre as razões
da longevidade de seu interesse. Afinal:
“A
história não foi gentil com os prognósticos de Karl Polanyi. O
capitalismo de livre mercado é um sistema estável e resistente na maior
parte do mundo – particularmente, nos países de língua inglesa. […]. O
padrão-ouro desapareceu, mas em seu lugar surgiu um sistema de taxas de
câmbio flutuantes regulado por mecanismos de mercado. […]. Instrumentos
mais eficientes de administração monetária reduziram enormemente a
severidade dos ciclos de negócios. Medido pelo sucesso dos mercados, a
civilização do século 19 parece estar desfrutando de um renascimento. O
verdadeiro enigma do livro de Polanyi é, então, por que razão seu
fascínio é tão duradouro tendo em vista a desconexão entre suas
predições e as realidades modernas. […]. Assim, a popularidade de
Polanyi representa o triunfo da vontade e do romantismo sobre a ciência
em disciplinas como a sociologia”.1
Ainda que o
contexto presente tenha arruinado o otimismo de Clark sobre a
estabilidade dos mercados, argumentaremos que, no tocante à sociologia
crítica o livro de Karl Polanyi, A grande transformação, talvez
seja a obra que mais perto tenha chegado de traduzir para a linguagem
da teoria social o grande consenso popular formado no pós-Segunda Guerra
em torno da necessidade imperiosa de regular o capitalismo a fim de
proteger a humanidade dos efeitos deletérios da mercantilização do
trabalho, da terra e do dinheiro. Publicado em 1944, mesmo ano do
aparecimento do livro de Friedrich von Hayek, O caminho da servidão, o projeto intelectual por trás de A grande transformação
foi, em grande medida, forjado nos anos 1920 enquanto Polanyi vivia em
uma Viena “socialista” que marcou de forma indelével suas convicções
socialistas democráticas.
Aliás, as
trajetórias, os destinos e as fortunas críticas de Polanyi e Hayek não
deixam de sintetizar boa parte das desventuras do capitalismo no
pós-Segunda Guerra. Chegados juntos à Inglaterra como imigrantes no
início dos anos 1930, ambos viveram na mesma Viena socialista que
fascinou Polanyi e horrorizou Hayek e seu mentor intelectual Ludwig von
Mises.2 Nos anos 1920, Hayek e von Mises ficaram
traumatizados pela experiência da prefeitura socialista de Viena que por
meio de suas políticas públicas de moradia popular e proteção social
favorecia as classes trabalhadoras. Ambos consideraram o socialismo em
todas as suas múltiplas variedades, utópicas, reformistas ou
revolucionárias, como uma usurpação das liberdades individuais. E
decidiram olhar para trás, isto é, para a utopia do mercado
auto-regulado, a fim de recuperar essa ideologia completamente
desacreditada pela grande crise de 1929.
Hayek e
Polanyi são antípodas perfeitos. Principal representante da quarta
geração da escola austríaca de economia, Hayek emigrou da Viena vermelha
do pós-guerra para a Inglaterra onde lecionou na London School of Economics
(LSE) e influenciou a criação do Instituto de Assuntos Econômicos (IEA)
que, posteriormente, ajudaria a formatar as políticas neoliberais
implementadas por Margareth Thatcher. Finalmente, Hayek estabeleceu-se
nos Estados Unidos, onde se transformou na figura ideologicamente mais
proeminente associada ao Departamento de Economia da Universidade de
Chicago. De desajustado na Viena socialista dos anos 1920 a ganhador do
prêmio Nobel de economia em 1974: Hayek foi redimido pela grande onda de
mercantilização inaugurada nos anos 1970.
Polanyi
viveu entre Budapeste e Viena, cidades onde, antes de 1914,
revolucionários russos eram bem-acolhidos por sua própria família.
Manifestando inclinações socialistas desde jovem, Polanyi rapidamente
evoluiu da liderança ativa do movimento estudantil húngaro a fundador do
Círculo Galileu (ao lado de György Lukács) e admirador da coragem e
audácia dos revolucionários marxistas. Em 1914, Polanyi ajudou a fundar o
Partido Radical Húngaro, atuando como seu secretário-geral. Durante a I
Guerra Mundial, ele lutou no front russo e terminado o conflito apoiou o célere governo socialdemocrata húngaro.
Nos anos
1920, vivendo em Viena, ele envolveu-se em debates sobre a contabilidade
socialista, chegando a delinear um modelo democrático, funcionalista e
associativo de processo de deliberação socialista tanto no âmbito
econômico, quanto na esfera política. Entre 1924 e 1933, atuando como
editor de uma prestigiosa revista econômica austríaca, Polanyi criticou a
Escola Austríaca de Economia por sua visão abstrata e desenraizada dos
processos econômicos.3 Desde então, os conflitos entre a
economia de mercado, assim como a importância da deliberação democrática
na economia moderna transformaram-se temas frequentes em seus
trabalhos.
Em 1933,
após a ascensão de Hitler ao poder, Polanyi foi demitido da revista onde
trabalhava e mudou-se para Londres onde passou a lecionar numa
associação educacional de trabalhadores por um salário mínimo. Suas
pesquisas e anotações de aula serviram de base para a redação do livro A grande transformação.
Em 1940, Polanyi e sua esposa, a revolucionária comunista húngara Ilona
Duczyńska, mudaram-se para Vermont nos Estados Unidos onde ele passou a
lecionar em uma faculdade local. Após a II Guerra Mundial e devido ao
sucesso obtido pela publicação d’A grande transformação Polanyi
foi convidado a lecionar na Universidade de Columbia. No entanto, o
passado comunista de sua esposa os impediu de obter o visto
estadunidense. Assim, o casal mudou-se para o Canadá, onde Polanyi
continuou sua pesquisa sobre a formação do sistema econômico moderno a
partir de uma abordagem histórica comparativa, lecionando eventualmente,
em Columbia, até por volta de sua morte em 1964.4
O legado
teórico de Karl Polanyi espalhou-se por várias especialidades das
ciências sociais, tais como a sociologia histórica, a economia política e
a antropologia social. A abordagem “substantivista” do enraizamento das
relações econômicas na sociedade, assim como a crítica à ideia do
mercado auto-regulado, ambas centrais nos trabalhos de Polanyi,
encontram-se, por exemplo, tanto na base das elaborações da Teoria
Francesa da Regulação quanto na sociologia crítica da economia de Pierre
Bourdieu. Se é verdade que seu legado intelectual influenciou muitos
campos das ciências humanas e sua influência acadêmica é
reconhecidamente mais abrangente do que a de seu antípoda, Friedrich
Hayek, por exemplo, foi a capacidade de sintetizar o “espírito da época”
fordista em seu afamado livro que fez de Polanyi um autor incontornável
da sociologia.
* * *
No Seminário Cidades Rebeldes, Ruy Braga
fez uso do arcabouço teórico desenvolvido por Karl Polanyi em sua
intervenção no debate sobre a luta de classes no Brasil contemporâneo.
Confira:
NOTAS
1 Gregory Clark. “Reconsiderations: ‘The Great Transformation’ by Karl Polanyi”. New York Sun, 4 de junho de 2008.
2 Para mais detalhes, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
3 Para uma visão matizada a respeito da compreensão de Polanyi acerca do duplo processo de desenraizamento e re-enraziamento da economia, ver Gareth Dale. Karl Polanyi: The Limits of the Market. Malden: Polity Press, 2010. Sobre as raízes teóricas e políticas da visão do socialismo democrático de Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
4 Para mais detalhes biográficos de Karl Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. The Life and Work of Karl Polanyi. Montreal, Black Rose Books, 1996.
Ruy Braga,
professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro
de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre
outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Fonte: Blog da Boitempo
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