PICICA: "Ao entardecer do dia 29 de setembro de 2002, pescadores das
comunidades ribeirinhas do rio Jauru, no oeste mato-grossense,
vivenciaram um fato assustador. Após um dia rotineiro de pesca, o
manancial passou a secar rapidamente. Canoas e barcos encalharam. Peixes
se debatiam em pequenos alagados no leito do rio e em baías próximas.
Os pescadores, incrédulos, não entendiam o que estava ocorrendo. O
cenário apocalíptico era resultado do fechamento das comportas da Usina
Hidrelétrica (UHE) Jauru, para o enchimento de seu reservatório, que
durou quase três dias.
Os relatos de pescadores sobre essa feita, além de depoimentos de
cientistas alertando sobre o risco da implantação de empreendimentos
hidrelétricos de médio e pequeno porte na Bacia do Alto Paraguai (BAP),
estão no documentário “O Dia em que o Rio Secou”, disponível na internet.
O vídeo foi produzido por um grupo de pesquisadores e movimentos
sociais que mobilizaram comunidades tradicionais da Bacia Hidrográfica
do Alto Paraguai (BAP), com o objetivo de alertar a sociedade para o
risco da instalação desses empreendimentos na região Peri-pantaneira, o
planalto que circunda a planície pantaneira, onde estão localizadas as
nascentes dos rios.
Uma das mais atuantes figuras nesse contexto é a bióloga Débora Calheiros.
Calheiros é pesquisadora da Embrapa Pantanal cedida à Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT) e membro do Grupo de Acompanhamento da
Elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai (GAP).
((o))eco conversou com ela logo após reunião do Grupo de Acompanhamento da Elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai ocorrida no Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso Sul (Imasul)."
Débora Calheiros: “O setor elétrico manda na gestão de recursos hídricos no Brasil”
- segunda-feira, 12 outubro 2015
Ao entardecer do dia 29 de setembro de 2002, pescadores das comunidades ribeirinhas do rio Jauru, no oeste mato-grossense, vivenciaram um fato assustador. Após um dia rotineiro de pesca, o manancial passou a secar rapidamente. Canoas e barcos encalharam. Peixes se debatiam em pequenos alagados no leito do rio e em baías próximas. Os pescadores, incrédulos, não entendiam o que estava ocorrendo. O cenário apocalíptico era resultado do fechamento das comportas da Usina Hidrelétrica (UHE) Jauru, para o enchimento de seu reservatório, que durou quase três dias.
Os relatos de pescadores sobre essa feita, além de depoimentos de cientistas alertando sobre o risco da implantação de empreendimentos hidrelétricos de médio e pequeno porte na Bacia do Alto Paraguai (BAP), estão no documentário “O Dia em que o Rio Secou”, disponível na internet.
O vídeo foi produzido por um grupo de pesquisadores e movimentos sociais que mobilizaram comunidades tradicionais da Bacia Hidrográfica do Alto Paraguai (BAP), com o objetivo de alertar a sociedade para o risco da instalação desses empreendimentos na região Peri-pantaneira, o planalto que circunda a planície pantaneira, onde estão localizadas as nascentes dos rios.
Uma das mais atuantes figuras nesse contexto é a bióloga Débora Calheiros. Calheiros é pesquisadora da Embrapa Pantanal cedida à Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e membro do Grupo de Acompanhamento da Elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai (GAP).
((o))eco conversou com ela logo após reunião do Grupo de Acompanhamento da Elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai ocorrida no Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso Sul (Imasul).
((o))eco: Qual é a atual situação dos empreendimentos hidrelétricos na Bacia do Alto Paraguai?
Quando comecei a trabalhar com essa questão, em 2008, havia uma previsão de 116 empreendimentos geradores de energia hidrelétrica a serem instalados, e cerca de 22 em funcionamento. Agora são 162 previstos e 44 instalados na Bacia do Alto Paraguai, sendo 8 de grande/médio porte (UHEs) e 36 Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), que já representam 70% do potencial total da bacia. Mas o setor elétrico ainda quer mais, quer os 100%, com mais 118 barragens, sendo 3 UHEs e 115 PCHs.
O setor elétrico não tem limites, especialmente em relação às chamadas Pequenas Centrais Hidrelétricas no Brasil. É um dos investimentos que mais geram lucros. As PCHs têm um processo de licenciamento mais fácil, mais simplificado, com atrativos financeiros muito fortes. É por isso que estão pipocando por aí, sem qualquer controle ou planejamento do impacto conjunto e sinérgico de todos os barramentos em nível de bacia, como determina a legislação.
((o))eco: Qual é o seu histórico nessa luta?
Estudo rios há 30 anos, no início em São Paulo, meu estado de origem, onde pude acompanhar a grave e contínua degradação dos mananciais e o descaso do poder público. Sou empregada pública, especialista em impactos ambientais de barragens em rios. Fiz mestrado na Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (EESC/USP), um dos grupos de pesquisa que é referência nacional sobre o tema, e fui aluna do professor J.G. Tundisi, um dos maiores especialistas deste mesmo tema no país e no mundo. Atuo também no impacto de mudanças de uso do solo, poluição e contaminação por pesticidas em ambientes aquáticos.
Fui trabalhar no Pantanal há 25 anos, por opção, com o objetivo ingênuo de achar que a ciência teria papel importante em proporcionar a conservação dos rios da Bacia do Alto Paraguai, formadora do Pantanal, para que os mesmos não sofressem o mesmo nível de degradação observado em outros estados ou países, e para que o bioma fosse realmente conservado como determina a Constituição Federal.
Passei a atuar junto com a sociedade civil em relação ao projeto de hidrovia Paraguai-Paraná no início dos anos 1990 e, daí em diante, nunca mais vi a ciência como uma atividade separada da sociedade. Desde então, atuo diretamente no que hoje se discute como “papel social da ciência”, tentando encurtar o caminho entre a ciência e os tomadores de decisão.
((o))eco: E quais são os argumentos impeditivos a esses empreendimentos?
Os impactos da construção de barragens na conservação de ambientes aquáticos e de seus serviços ambientais é uma preocupação mundial. Com base nos Princípios da Precaução e da Prevenção [Rio 92 - Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento], isso deveria ser discutido tecnicamente, de forma multidisciplinar, e deveriam ser realizados estudos para propor alternativas e ações mitigatórias.
Todas as alterações e impactos no funcionamento hidro-ecológico de cada sub-bacia formadora do Pantanal deveriam ser avaliados de forma conjunta e integrada, levando-se em conta a área da Bacia Hidrográfica do Alto Paraguai e o Princípio de Usos Múltiplos, como determina a Lei de Recursos Hídricos [Lei 9.433/1997], bem como a Resolução CONAMA 01/1986 [que se refere à avaliação de impacto ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente], antes de se implementar tais projetos.
A multiplicidade de usuários na região inclui ribeirinhos, pescadores profissionais e amadores, turistas, produtores rurais de pequeno a grande porte, os setores de turismo e navegação, além do setor elétrico.
“(…)
a lei determina que os usos múltiplos devem ser respeitados. Mas do
jeito que está, praticamente apenas um único usuário, o setor elétrico,
está utilizando os recursos naturais dos quais dependem milhares de
pessoas”.
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((o))eco: Mas o setor elétrico, e até mesmo representantes dos órgãos licenciadores, alegam que as PCHs são a fio d’água e que isso não prejudicaria os pulsos de inundação.
Todas as PCHs são a fio d’água. É o sistema de tomada de água, o desenho de engenharia da barragem, sem necessariamente formar reservatório. O problema é fazerem várias barragens num mesmo rio. Por exemplo, no rio Coxim, estão previstas dezoito. Aí cada uma vai alterando um pouco o fluxo das águas e no final temos uma alteração expressiva. Há necessidade de barramentos, muitas vezes de altura elevada, de 10m a 40m, resultando também em alteração da descarga de nutrientes e material em suspensão e, portanto, da ciclagem de nutrientes, importantes na manutenção da cadeia alimentar aquática e na interação terra-água, que resulta em fertilização do solo, útil para o desenvolvimento de pastagens nativas, por exemplo.
As PCHs são construídas em áreas de cabeceiras, que são as áreas mais sensíveis para o período reprodutivo dos peixes. Isso retém os sedimentos, os nutrientes, muda a temperatura da água do fundo e da superfície, e são barreiras físicas intransponíveis, interferindo na reprodução dos peixes.
((o))eco: E a recomendação do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul e do Ministério Público Estadual que impedia o licenciamento desses empreendimentos até que fosse realizado um estudo integrado?
Em 2011 esses órgãos entraram com uma ação civil pública para pedir uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) na Bacia do Alto Paraguai, com o objetivo de mensurar esses impactos ambientais. Mas a ação está parada no Tribunal Regional da Justiça Federal de São Paulo com uma liminar favorável aos empreendedores desde maio de 2013, sob a alegação de que o país já possui leis ambientais suficientes e que estas são devidamente seguidas pelos empreendedores e órgãos gestores.
((o))eco: Após essa derrota, vocês conseguiram chegar ao Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai. Como começou esse processo?
Em dezembro de 2009, publicamos, pela Embrapa Pantanal, recomendações de especialistas internacionais que se encontraram no workshop “Influências de usinas hidrelétricas no funcionamento hidro-ecológico do Pantanal, Brasil” realizado durante o VIII INTECOL – Conferência Internacional de Áreas Úmidas, em Cuiabá (20-25 de julho de 2008),cujo objetivo foi embasar tecnicamente e de forma multidisciplinar a discussão sobre a conservação dos processos hidrológicos que regem o funcionamento e as inter-relações ecológicas características do Pantanal Mato-Grossense.
O documento discute com propriedade a importância dos chamados “pulsos de inundação”, ou ciclos de cheias e secas anuais e interanuais, os quais influenciam, por sua vez, as relações sociais, culturais e econômicas da população pantaneira.
Porém, os órgãos estaduais licenciadores do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e o Ministério do Meio Ambiente continuaram a licenciar esses empreendimentos. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) continuou a fornecer concessões para geração de energia. Tudo sem que nenhuma avaliação sobre o impacto conjunto e sinérgico desses empreendimentos fosse realizado e sem qualquer planejamento em nível de bacia, mesmo após recomendação do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul e do Ministério Público Estadual, em 2011, para que se atendesse ao que determina a Resolução CONAMA e a Lei das Águas, bem como aos princípios da Convenção Ramsar de Conservação de Áreas Úmidas de Interesse Internacional, que o nosso país tem o compromisso moral de atender — pois é signatário da Convenção.
Então, após muitas reuniões e embates, nós conseguimos, por meio das Resoluções número 145
e 152 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que a Agência Nacional de Águas (ANA) fosse responsável por fazer um Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Rio Paraguai.
Antes dessas Resoluções, não se podia fazer um Plano de Bacia onde não existia ainda um Comitê de Bacia Hidrográfica oficialmente instalado. Na Resolução 152 foi previsto um Grupo de Acompanhamento desse plano, o GAP, que funcionaria como um “pré-Comitê” da bacia.
Esse Plano não é mais um estudo, uma vez que a bacia já é relativamente bem estudada, mas vai utilizar tudo o que já existe de informação para poder planejar principalmente a questão das hidrelétricas, com algumas pesquisas a mais, ainda previstas para complementar as informações faltantes a serem coordenadas pela Embrapa Pantanal e parceiros.
Isso foi um esforço da Rede Pantanal de ONGs e Movimentos Sociais, que envolve organizações também da Bolívia, Paraguai e Argentina, em conjunto com pesquisadores e, em especial, o Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas - FONASC, que tem cadeira no Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
((o))eco: Quanto tempo é necessário para essa avaliação?
“O setor elétrico manda na gestão de recursos hídricos no Brasil”.
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((o))eco: E isso, para os empreendedores, é tempo demais?
O setor elétrico manda na gestão de recursos hídricos no Brasil. As pessoas são capazes de mentir, de desconstruir fatos e estudos. Estamos vivenciando uma guerra por recursos naturais e os prejudicados são sempre as populações mais vulneráveis, que dependem diretamente dos recursos naturais ainda saudáveis. Os pequenos produtores, os pescadores, os ribeirinhos... O pulso de inundação tem a função de limpar naturalmente as áreas de pastagem e de fertilizá-las oferecendo pasto com nível nutricional melhor. Não consigo entender...
Esta é a minha posição técnica e também como cidadã. Sou uma das poucas pessoas que estão enfrentando isso. No começo eu sofria, ficava chateada. É de ficar abismado como eles tentam manipular, obstruir, desrespeitar... Depois eles dizem: “Ah, você que não entendeu direito”.
“Mas o Pantanal tem uma questão básica: está na Constituição Federal que devemos conservar o bioma”.
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((o))eco: Há estudos científicos que comprovem que essas usinas hidrelétricas, mesmo as pequenas, afetariam a vida de quem vive rio-abaixo desses empreendimentos?
Sim, este tema já é bem estudado tanto nacional quanto internacionalmente. Eu mesma fiz um estudo prévio muito simples que mostra isso. Entrevistei a Federação de Pescadores de MT e MS e o setor do turismo de pesca de apenas duas cidades: Cáceres (MT) e Corumbá (MS), que giram em torno de R$ 320 milhões/ano, sem falar em Coxim, Aquidauana, Barão de Melgaço, Cuiabá, entre outras cidades da bacia que dependem da pesca profissional e turística para sua economia, em maior ou menor grau. Se levarmos em conta todas essas cidades, podemos estimar um total em torno de R$ 1 bilhão/ano só de pesca. Então, como se manterá uma economia nesse nível, que não é pequeno, e mantém a geração e a distribuição de renda que envolve desde o dono do barco-hotel, a cozinheira, a camareira, o guia de pesca e o coletor de iscas vivas com todos os rios barrados?
((o))eco: Na velocidade em que os empreendimentos estão sendo implantados, qual o cenário futuro?
Em menos de dez anos cresceu 500%. Não é à toa que há grupos internacionais investindo nisso. É assustador você ver que há servidores públicos que acham que tudo bem, que se pode continuar licenciando sem qualquer problema...
Acho interessante salientar que sem a conservação dos processos ecológicos, ou melhor, hidro-ecológicos, que regem o funcionamento do Pantanal, a densidade de animais selvagens, tão atrativa para o turismo, a pesca e o turismo de pesca, como atividade econômica que mais distribui renda e gera empregos, e a conservação de espécies ameaçadas, que são características desta Reserva da Biosfera, estarão ameaçadas.
Se juntarmos com o alto nível de desmatamento do planalto que circunda a planície pantaneira, onde estão as nascentes dos seus rios formadores, o projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, o desmatamento na planície, inclusive para a expansão da soja, isso seria o fim do Pantanal como o conhecemos hoje. Ficará igual à planície do Paraná, sem biodiversidade, sem pesca. A opção é dos tomadores de decisão e da sociedade. Nosso papel já fizemos.
Fonte: O ECO
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