PICICA: "No mar de filmes da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
há os cinéfilos que optam pelos portos seguros e há os que se deixam
levar pelas correntes desconhecidas e pelas descobertas inesperadas.
Muitos pedem aos críticos indicações e dicas que facilitem a navegação.
Não vou me furtar a dar as minhas, ressaltando que se trata de uma
eleição muito pessoal, parcial e provisória."
Mostra de São Paulo: uma jornada pessoal
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 26.10.2015
No mar de filmes da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
há os cinéfilos que optam pelos portos seguros e há os que se deixam
levar pelas correntes desconhecidas e pelas descobertas inesperadas.
Muitos pedem aos críticos indicações e dicas que facilitem a navegação.
Não vou me furtar a dar as minhas, ressaltando que se trata de uma
eleição muito pessoal, parcial e provisória.
Entre os filmes já vistos, destacam-se os seguintes:
As mil e uma noites, de Miguel Gomes
O diretor de Tabu confirma sua condição de um dos cineastas mais livres e originais da atualidade ao utilizar a estrutura fabular do clássico árabe para dar a sua visão do mundo de hoje, em especial de Portugal sob a funesta “política de austeridade”.
O filme se divide em três longas-metragens que, dada sua narrativa episódica e não sequencial, podem ser vistos em qualquer ordem. Por enquanto vi só o “segundo volume”, O desolado, que dizem ser o melhor e que representa Portugal na disputa pelo Oscar. É um verdadeiro prodígio, na desenvoltura com que trafega entre um realismo crítico, quase documental, e a fantasia mais delirante. O episódio “As lágrimas da juíza”, cerne do filme, misturando crimes cotidianos, gênio da lâmpada e vaca que fala, desvenda e reduz ao absurdo os mecanismos de opressão do capitalismo neoliberal. É com certeza um dos filmes mais divertidos e incisivos de toda a Mostra.
El abrazo de la serpiente, de Ciro Guerra
Deslumbrante antiépico colombiano em torno da exploração da selva amazônica e de sua cultura por pesquisadores do Primeiro Mundo. A narrativa se divide em dois momentos: a expedição do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg à Amazônia, no início do século XX, e a do botânico norte-americano Richard Evans Schultes, quatro décadas depois. O ponto de ligação entre eles, além do percurso geográfico semelhante, é o xamã Karamatake, último sobrevivente de sua tribo e conhecedor da localização e dos poderes de certa planta prodigiosa.
Essa revisitação dos mesmos lugares, filmada em scope em maravilhoso preto e branco (o que permite “controlar” a exuberância caótica da mata), traça uma história terrível de loucura religiosa e científica, de genocídio físico e cultural, mas também de dilemas humanos individuais.
Body, de Malgorzata Szumowska
Na Varsóvia dos dias de hoje, um promotor que investiga in loco mortes violentas convive mal com a filha anoréxica adolescente, que o culpa pela morte da mãe. A terapeuta da garota – “uma maluca que abraça árvores, como na Suécia”, no dizer de um personagem – julga ter poderes mediúnicos e se oferece para fazer contato com a morta. Com um humor peculiar, tendente ao absurdo, a diretora, premiada com o Urso de Prata em Berlim, surpreende a cada nova sequência, mantendo habilmente um pé no sobrenatural e o outro num irônico ceticismo.
Para o outro lado, de Kiyoshi Kurosawa
Assim como Body, este filme japonês trata da relação entre vivos e mortos, só que aqui assumindo francamente a opção pelo sobrenatural. Filiando-se a uma rica linhagem nipônica que tem como ponto mais elevado os Contos da lua vaga, de Mizoguchi, Kiyoshi Kurosawa (nenhum parentesco com o grande Akira) conta com precisão e delicadeza a história de um homem morto há três anos que reaparece à ex-esposa e a leva para uma jornada pelo interior do Japão, onde eles conviverão com pessoas vivas e mortas (algumas sem saber que o estão). Fantástico, nos vários sentidos do adjetivo.
Memórias secretas, de Atom Egoyan
É possível ainda ao cinema falar sobre o Holocausto sem cair no déjà-vu? O armênio-canadense Egoyan mostra que sim neste misto de drama, thriller e comédia de erros sobre dois judeus octogenários (os veneráveis Chrisopher Plummer e Martin Landau) que resolvem sair à caça do chefe do campo de concentração em que foram prisioneiros. Eles sabem que o sujeito mora nos EUA, sob nome falso, e têm quatro suspeitos possíveis.
Outros que merecem ser vistos
Ralé, de Helena Ignez, musical libertário e metalinguístico, um filme de amor plural e onipresente, que sua diretora definiu de modo perfeito: “a sessão da tarde de um mundo melhor”.
Dheepan, de Jacques Audiard, cuja Palma de Ouro em Cannes foi muito contestada, mas que está longe de ser um mau filme. Deve entrar no circuito comercial esta semana, portanto não é essencial vê-lo na Mostra.
Que viva Eisenstein, de Peter Greenaway, fantasia extravagante sobre a temporada do cineasta russo no México, em especial sua relação homoerótica com o homem que lhe serviu de guia em Guanajuato.
Apostas mais ou menos seguras a ser conferidas nos próximos dias: Desde allá (Venezuela), de Lorenzo Vigas, ganhador do Leão de Ouro em Veneza; O botão de pérola (Chile), de Patricio Guzmán (diretor dos extraordinários A batalha do Chile e Nostalgia da luz), Son of Saul (Hungria), de László Nemes, prêmio do júri em Cannes; Aferim! (Romênia), de Radu Jude, Urso de Prata de direção em Berlim; Os campos voltarão (Itália), do veterano Ermanno Olmi (de A árvore dos tamancos).
Agora é cada um por si.
Entre os filmes já vistos, destacam-se os seguintes:
As mil e uma noites, de Miguel Gomes
O diretor de Tabu confirma sua condição de um dos cineastas mais livres e originais da atualidade ao utilizar a estrutura fabular do clássico árabe para dar a sua visão do mundo de hoje, em especial de Portugal sob a funesta “política de austeridade”.
O filme se divide em três longas-metragens que, dada sua narrativa episódica e não sequencial, podem ser vistos em qualquer ordem. Por enquanto vi só o “segundo volume”, O desolado, que dizem ser o melhor e que representa Portugal na disputa pelo Oscar. É um verdadeiro prodígio, na desenvoltura com que trafega entre um realismo crítico, quase documental, e a fantasia mais delirante. O episódio “As lágrimas da juíza”, cerne do filme, misturando crimes cotidianos, gênio da lâmpada e vaca que fala, desvenda e reduz ao absurdo os mecanismos de opressão do capitalismo neoliberal. É com certeza um dos filmes mais divertidos e incisivos de toda a Mostra.
El abrazo de la serpiente, de Ciro Guerra
Deslumbrante antiépico colombiano em torno da exploração da selva amazônica e de sua cultura por pesquisadores do Primeiro Mundo. A narrativa se divide em dois momentos: a expedição do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg à Amazônia, no início do século XX, e a do botânico norte-americano Richard Evans Schultes, quatro décadas depois. O ponto de ligação entre eles, além do percurso geográfico semelhante, é o xamã Karamatake, último sobrevivente de sua tribo e conhecedor da localização e dos poderes de certa planta prodigiosa.
Essa revisitação dos mesmos lugares, filmada em scope em maravilhoso preto e branco (o que permite “controlar” a exuberância caótica da mata), traça uma história terrível de loucura religiosa e científica, de genocídio físico e cultural, mas também de dilemas humanos individuais.
Body, de Malgorzata Szumowska
Na Varsóvia dos dias de hoje, um promotor que investiga in loco mortes violentas convive mal com a filha anoréxica adolescente, que o culpa pela morte da mãe. A terapeuta da garota – “uma maluca que abraça árvores, como na Suécia”, no dizer de um personagem – julga ter poderes mediúnicos e se oferece para fazer contato com a morta. Com um humor peculiar, tendente ao absurdo, a diretora, premiada com o Urso de Prata em Berlim, surpreende a cada nova sequência, mantendo habilmente um pé no sobrenatural e o outro num irônico ceticismo.
Para o outro lado, de Kiyoshi Kurosawa
Assim como Body, este filme japonês trata da relação entre vivos e mortos, só que aqui assumindo francamente a opção pelo sobrenatural. Filiando-se a uma rica linhagem nipônica que tem como ponto mais elevado os Contos da lua vaga, de Mizoguchi, Kiyoshi Kurosawa (nenhum parentesco com o grande Akira) conta com precisão e delicadeza a história de um homem morto há três anos que reaparece à ex-esposa e a leva para uma jornada pelo interior do Japão, onde eles conviverão com pessoas vivas e mortas (algumas sem saber que o estão). Fantástico, nos vários sentidos do adjetivo.
Memórias secretas, de Atom Egoyan
É possível ainda ao cinema falar sobre o Holocausto sem cair no déjà-vu? O armênio-canadense Egoyan mostra que sim neste misto de drama, thriller e comédia de erros sobre dois judeus octogenários (os veneráveis Chrisopher Plummer e Martin Landau) que resolvem sair à caça do chefe do campo de concentração em que foram prisioneiros. Eles sabem que o sujeito mora nos EUA, sob nome falso, e têm quatro suspeitos possíveis.
Outros que merecem ser vistos
Ralé, de Helena Ignez, musical libertário e metalinguístico, um filme de amor plural e onipresente, que sua diretora definiu de modo perfeito: “a sessão da tarde de um mundo melhor”.
Dheepan, de Jacques Audiard, cuja Palma de Ouro em Cannes foi muito contestada, mas que está longe de ser um mau filme. Deve entrar no circuito comercial esta semana, portanto não é essencial vê-lo na Mostra.
Que viva Eisenstein, de Peter Greenaway, fantasia extravagante sobre a temporada do cineasta russo no México, em especial sua relação homoerótica com o homem que lhe serviu de guia em Guanajuato.
Apostas mais ou menos seguras a ser conferidas nos próximos dias: Desde allá (Venezuela), de Lorenzo Vigas, ganhador do Leão de Ouro em Veneza; O botão de pérola (Chile), de Patricio Guzmán (diretor dos extraordinários A batalha do Chile e Nostalgia da luz), Son of Saul (Hungria), de László Nemes, prêmio do júri em Cannes; Aferim! (Romênia), de Radu Jude, Urso de Prata de direção em Berlim; Os campos voltarão (Itália), do veterano Ermanno Olmi (de A árvore dos tamancos).
Agora é cada um por si.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
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