outubro 21, 2015

Caráter, por Emanuele Coccia (SOPRO 99)

PICICA: "Segundo a definição, dada primeiro por Agostinho, caráter é a marca com que a graça incide sobre a alma, o sinal que se imprime sobre a vida de um homem toda vez que a felicidade a visita. Segundo sua própria etimologia, explicavam os teólogos, caráter é um sinal que alguém imprimiu sobre um indivíduo, e, por isso mesmo, o traço que o distingue e o separa do resto dos homens e, ao mesmo tempo, uma cifra ou um símbolo que o equipara àquele que o imprimiu." 


 

 Caráter
 por Emanuele Coccia
  (Tradução de Diego Cervelin)





Não é uma qualidade de um indivíduo, nem algo que exprima seus modos, sua natureza, sua graciosidade. Imprime-se especialmente sobre aquele mesmo rosto do qual não é capaz de revelar qualquer coisa, quase como se fosse a maquiagem ou o esplendor de uma cosmética cuja arte somente os nossos demônios conhecem. Sua ciência é a forma suprema da estética, aquela capaz de aproximar a aparência da felicidade; e não é conservada nos obscuros arquivos da psicologia, mas sim em algum negligenciado manuscrito de teologia, que, por séculos, o considerou como um termo técnico seu. Segundo a definição, dada primeiro por Agostinho, caráter é a marca com que a graça incide sobre a alma, o sinal que se imprime sobre a vida de um homem toda vez que a felicidade a visita. Segundo sua própria etimologia, explicavam os teólogos, caráter é um sinal que alguém imprimiu sobre um indivíduo, e, por isso mesmo, o traço que o distingue e o separa do resto dos homens e, ao mesmo tempo, uma cifra ou um símbolo que o equipara àquele que o imprimiu. De modo mais preciso, o caráter marca a graça de que cada um é capaz, e dispõe a alma à sua recepção; distingue e separa quem a possui de quem não a possui; em suma, equipara a alma do homem a Deus que o imprimiu, porque, através dele, a alma adquire uma forma da potência divina diferente daquela que toda vida naturalmente possui. 


Como todo sinal, também o caráter não exprime nada, mas se limita a remeter a algo distinto de si mesmo. Não revela de fato a natureza do vivente sobre o qual está impresso. Define um fenômeno da ordem da aparência e não a realidade de uma essência: não determina exatamente o nosso modo de ser, mas a relação que estabelecemos com a exterioridade. Por isso, ele não conserva nenhum dos segredos inconfessáveis que as criptas da consciência humana adoram esconder; limita-se a dar forma à relação que liga singularmente o vivente à sua felicidade. Não tem nada de psicológico: porque nele não se manifesta o nosso psiquismo. Não tem nada de pessoal, porque não é um dote que o vivente possui desde o nascimento, mas um traço gerado no momento em que uma existência é subitamente atravessada pela felicidade. Caráter é o sinal que o primeiro encontro com a felicidade – e a sua graça – deixou sobre nós, e também a cifra de sua ausência.


Causa igitur indebilitatis character est quia ex conditione suae naturae habet ita firmum esse in subiecto cuius est quod habet compossibilitatem cum quolibet actu circa suum subiectum, qualitercumque circumstationato, sive bene sive male, sed quia gratia ex conditione suae naturae non habet ita firmum esse cum suo subiecto quod possit compati secum actum vitiosum et ita non quemlibet actum.


O primeiro atributo do caráter – aquilo que o diferencia da graça – é a sua indelebilidade (indelebitas). Diferentemente da graça, que em todo momento pode abandonar um homem, o caráter é um sinal indelével, porque por sua natureza tem um ser estável no vivente sobre o qual se imprime, a ponto de ter, como os teólogos escreviam, a compossibilidade com qualquer ato do vivente, em qualquer condição que ele se encontre, no bem e no mal. A graça não parece tolerar nem simpatizar com um ato vicioso, e não pode acompanhar por qualquer gesto: ela desaparece toda vez que a alma está envolvida em um ato vicioso. Do mesmo modo, nossa felicidade não resiste a toda e qualquer ação nossa. O caráter adere, pelo contrário, à alma com força própria e tanta tenacidade a ponto de tolerar qualquer outro acidente, enquanto a alma restar em vida. Nisso ele parece resistir no vivente mil vezes mais do que resistem todas as outras qualidades. Pode-se perder esse ou aquele traço, mudar de rosto, esquecer ou renegar a própria experiência passada, mas não é possível perder o sinal que a felicidade e a graça imprimiram sobre nossa alma na primeira ou na última vez que a tenham atravessado.


Se toda vida menor é uma insígnia, um sinal capaz de distinguir o vivente daquilo que não vive e do resto dos viventes é porque todas as manias, todos os desejos, todos os nossos caprichos e as nossas mais inconfessadas obsessões são o ductus e também a tinta com a qual a felicidade inscreve, sobre nós, as suas escrituras indecifráveis, mudas epígrafes feitas de hieróglifos de uma língua quase desconhecida. Seus fiéis escribas, as vidas menores, transformam nosso rosto em um minucioso arquivo, em um surpreendente palimpsesto de encontros casuais e, mesmo assim, sempre tão intensos a ponto de cobrir os sinais anteriores, preencher as margens e os espaços que o passado havia deixado em branco. Aquilo que chamamos alma não é senão o livro de registros sobre o qual toda vida estenografa os encontros com a graça que não cessa de querer apreender; perdida ou possuída, esquecida ou melancolicamente contemplada, ela é o único objeto daquela espécie de diário não escrito que é a máscara natural e a maquiagem mais imediata dos nossos rostos.


Ideo post hanc vitam remanet character et in bonis ad eorum gloriam, et in malis ad eorum ignominiam: sicut etiam militaris character remanet in militibus post adeptam victoriam, et in his qui vicerunt ad gloriam et in his qui sunt victi ad poenam.
 

Esses sinais são indeléveis. A nossa felicidade é efêmera, inconsistente, freqüentemente incapaz de deter-se e de ser verdadeiramente apreendida. Mas os sinais incompreensíveis que ela deixa sobre o nosso corpo – aqueles mesmos sinais que tentamos ler e interpretar toda vez que sonhamos – não podem mais ser apagados. Somos imortais apenas no nosso caráter. Uma vida pode perder a própria graça, desviar-se da própria salvação, perder a perfeição que parecia habitá-la, mas não perderá jamais a marca com a qual a felicidade quis marcar o nosso pertencimento à sua natureza. Perderemos a nossa beatitude, perderemos a nossa felicidade, perderemos a nós mesmos... mas aquelas incertas assinaturas sobreviverão à nossa felicidade e à nossa própria morte, semelhantes às inscrições que a lava do passado não conseguiu sepultar. Aquilo que chamamos melancolia não é senão o silencioso testemunho que essas letras sem significado não cessam de prestar, o canto imperceptível da sua voz arruinada e distante.


A intensidade desse canto pode enlouquecer. Os sinais com os quais a felicidade tatua o rosto de quem a prova parecem, de fato, ter um poder e exercitar uma certa magia. O demônio da melancolia pode ser induzido a ler naquelas inscrições o feitiço capaz de invocar o retorno da graça. Pode-se ceder ao ensurdecedor burburinho daqueles demônios, acreditar na magia dessas runas e exigir ser reconhecido pela felicidade que nos atravessou. O caráter se transformará, então, fatalmente no encanto pelo qual não se deixa de esquecer a própria felicidade, a fórmula com a qual ela se mantém em perpétuo exílio. Tentar pronunciá-la significa somente oferecer-se à amargura de descobrir que aqueles sinais não exercem nenhuma magia, que neles a graça (ou a felicidade) se dá e existe apenas como traço, recordação, como algo que irremediavelmente perdemos. Eles são apenas a ruga, a careta incipiente que a beatitude imprimiu sobre o nosso rosto ao nos deixar. Se exprimem algo, é, sobretudo, uma forma de lamento, o ressentimento com o qual se distancia, de si e dos outros, toda a graça de que se seria capaz. As vidas menores, transformadas em involuntários carcereiros da melancolia, tentarão desenhar uma nova máscara: mas o rosto, desfeito, é apenas o penoso registro dos falhos encontros com uma felicidade mil vezes perdida. 


Como que encantados por um refrão perdido que a brisa carrega ao longe e do qual não captamos mais as palavras, permanecemos hipnotizados pela promessa de beatitude que queremos estar escondida naquele alfabeto desconhecido. Mas a felicidade não é senão o silêncio e o fim de todas as promessas. E é ela mesma que confia aos nossos vícios e às nossas fraquezas a tarefa de tornar ilegíveis aqueles sinais.


A verdadeira graça está sempre privada de caráter. Porque na sua forma mais intensa a beatitude não deixa traços no indivíduo ao qual se doa. E a ética, talvez, não é senão a maestria e a habilidade com a qual cada homem sabe livrar-se dessas escrituras, retirar essas tatuagens, desfazer-se do próprio caráter. Porque somente aquele que consegue deixar-se atravessar pela felicidade sem carregar-lhe os traços poderá dizer-se salvo. Somente quem não pede sinais ou caracteres distintivos à graça que o redime poderá esquecê-la sem melancolia. Sem caráter, alheio à memória, sem sinais distintivos, irreconhecível ao tribunal da história, somente então o vivente cessará de se perder. Seu rosto sem sinais é o novo mapa do céu de uma felicidade que finalmente perdeu seu próprio destino.

Fonte: SOPRO 99

Nenhum comentário: