outubro 09, 2015

O HERÓI ANTI-HERÓI E O ANTI-HERÓI ANÔNIMO, por Hélio Oiticica (SOPRO 99)

PICICA: "Este texto de Hélio Oiticica foi apresentado em uma exposição de 1968, “O Artista Brasileiro e Iconografia de Massa”, organizada por Frederico Morais e pela Escola Superior de Desenho Industrial. A exposição foi realizada no MAM/RJ e buscava um levantamento dos temas da cultura de massas mais relevantes nas produções artísticas. No texto, Oiticica refere-se a duas figuras - o “herói anti-herói”, encarnado por Cara de Cavalo; e o “anti-herói anônimo”, de que Alcir Figueira da Silva seria exemplo - e a duas obras suas inspiradas em tais figuras. Cara de Cavalo - foto acima à esquerda - foi assassinado com mais de 100 tiros de metralhadora disparados pela polícia em “uma espetacular caçada” como anunciavam os jornais da época. Hélio Oiticica era amigo de Cara de Cavalo e a partir de sua morte elaborou o Bólide B33 como forma de homenagem: uma caixa-poema que trazia a imagem de Cara de Cavalo morto (a mesma que estampara as capas de jornais) com a mensagem: “aqui está e ficará! Contemplai seu silêncio heróico”. O anti-herói, Alcir Figueira da Silva (foto acima, à direita), como Hélio descreve no texto, suicidou-se. É de Alcir a foto estampada na bandeira “Seja Marginal Seja Herói”. O Bólide-Caixa nº 21 B44 é uma caixa que tem no fundo a imagem do anti-herói morto coberta por uma tela em que está escrito “por que a impossibilidade?”; esta caixa é coberta por outra caixa cheia de areia que dá a impressão de um “mausoléu”. Fonte do texto: reprodução do texto datilografado - Arquivo do Programa Hélio Oiticica. A foto ao final, tirada por Eduardo Viveiros de Castro, é de Nildo da Mangueira com um parangolé de Hélio Oiticica (1979), e também provém do Arquivo do Programa Hélio Oiticica (como as fotos acima)." 



O HERÓI ANTI-HERÓI E O ANTI-HERÓI ANÔNIMO
por Hélio Oiticica


Nota dos editores: Este texto de Hélio Oiticica foi apresentado em uma exposição de 1968, “O Artista Brasileiro e Iconografia de Massa”, organizada por Frederico Morais e pela Escola Superior de Desenho Industrial. A exposição foi realizada no MAM/RJ e buscava um levantamento dos temas da cultura de massas mais relevantes nas produções artísticas. No texto, Oiticica refere-se a duas figuras - o “herói anti-herói”, encarnado por Cara de Cavalo; e o “anti-herói anônimo”, de que Alcir Figueira da Silva seria exemplo - e a duas obras suas inspiradas em tais figuras. Cara de Cavalo - foto acima à esquerda - foi assassinado com mais de 100 tiros de metralhadora disparados pela polícia em “uma espetacular caçada” como anunciavam os jornais da época. Hélio Oiticica era amigo de Cara de Cavalo e a partir de sua morte elaborou o Bólide B33 como forma de homenagem: uma caixa-poema que trazia a imagem de Cara de Cavalo morto (a mesma que estampara as capas de jornais) com a mensagem: “aqui está e ficará! Contemplai seu silêncio heróico”. O anti-herói, Alcir Figueira da Silva (foto acima, à direita), como Hélio descreve no texto, suicidou-se. É de Alcir a foto estampada na bandeira “Seja Marginal Seja Herói”. O Bólide-Caixa nº 21 B44 é uma caixa que tem no fundo a imagem do anti-herói morto coberta por uma tela em que está escrito “por que a impossibilidade?”; esta caixa é coberta por outra caixa cheia de areia que dá a impressão de um “mausoléu”. Fonte do texto: reprodução do texto datilografado - Arquivo do Programa Hélio Oiticica. A foto ao final, tirada por Eduardo Viveiros de Castro, é de Nildo da Mangueira com um parangolé de Hélio Oiticica (1979), e também provém do Arquivo do Programa Hélio Oiticica (como as fotos acima).


Em começos de 1965 quando germinava a idéia de uma homenagem a Cara de Cavalo, que só veio a se concretizar numa obra em maio de 1966 (Bólide-caixa nº18 – B33), o meu modo de ver, ou melhor a vivência que me levou a isso foi a que defini numa carta ao crítico Guy Brett (12/abril/67) como um momento ético. Como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou-se símbolo da opressão social sobre aquele que é marginal – marginal a tudo nessa sociedade: o marginal. Mais ainda: a imprensa, a polícia, os políticos (Carlos Lacerda pessoalmente chefiou uma “blitz” ao mesmo, aliás como já o fizera em relação a outros anteriormente) – a sujeira opressiva em síntese, elegeu Cara de Cavalo como bode expiatório, como inimigo público nº1 (já em 62 haviam feito o mesmo com Mineirinho e logo depois com Micuçu, tudo isso no governo Lacerda, que se tornou símbolo da opressão social policial, inclusive com o trágico caso dos mendigos afogados, etc.). Cara de Cavalo foi de certo modo vítima desse processo – não quero, aqui, isentá-lo de erros, não quero dizer que tudo seja contingência – não, em absoluto! Pelo contrário, sei que de certo modo foi ele próprio o construtor de seu fim, o principal responsável pelos seus atos. O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ela uma lepra, um mal incurável – imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente, com todo requinte canibalesco (o motivo chave para isso foi o assassinato, numa luta, do detetive LeCoq, do Esquadrão da Morte, organização policial que envergonharia qualquer sociedade de caráter, composta de policiais assassinos e degradados, que até hoje milita por aí com outras pessoas e outros nomes). Há como que um gozo social nisto, mesmo nos que se dizem chocados ou sentem ‘pena’. Neste caso, a homenagem, longe do romantismo que a muitos faz parecer, seria um modo de objetivar o problema, mais do que lamentar um crime sociedade X marginal. Qual a oportunidade que tem os que são, pela sua neurose auto-destrutiva, levados a matar, ou roubar, etc. Pouca, ou seja, a sua vitalidade, a sua defesa interior, a sobrevivência que lhes resta, porque a sociedade mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, minada em todos os sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado. 


Já outra vivência sobrevém a do ídolo anti-herói, ou seja, a do anti-herói anônimo, aquele que, ao contrário de Cara de Cavalo, morre guardando no anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus recalques, sua frustração (claro que herói anti-herói, ou anônimo anti-herói, são, fundamentalmente a mesma coisa: essas definições são a forma com que seus casos aparecem no contexto social, como uma resultante) – o seu exemplo, o seu sacrifício, tudo cai no esquecimento como um feto parido. Numa outra obra (Bólide-caixa nº21 – B44 – 1966/67), quis eu, através de imagens plásticas e verbais exprimir essa vivência da tragédia do anonimato, ou melhor da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer comunicar-se (o caso me levou à vivência foi o do marginal Alcir Figueira da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de assaltar um banco, ao meio dia, jogou fora o roubo e suicidou-se). Por que o suicídio? Que diabólica neurose (aliás tão shakesperiana) o teria levado a preferir a morte a prisão? Uma esperança perdida, o desespero dessa perda, mas qual perda? Uma idéia, sei lá se certa ou não, me veio: seria isto a busca da felicidade (aqui entendida como segurança, afeto, tudo o que envolveria a falta que ocasionou essa neurose)??? Mas, deixemos esse problema para o nosso querido Hélio Pellegrino. 


O certo é que tanto o ídolo, inimigo público nº1, quanto o anônimo são a mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto social fixo (“status quo” social). Esta revolta assume, para nós, a qualidade de um exemplo – este exemplo é o da adversidade em relação a um estado social: a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos. Aqui isto aparece no plano visceral e imediato. Num outro plano, mais geral e com outras conotações estariam as mais heróicas experiências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heróico, que é o de Guevara. O problema do marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e primário, o da denúncia pelo comportamento cotidiano, o exemplo de que é necessária uma reforma social completa, até que surja algo, o dia em que não precise essa sociedade sacrificar tão cruelmente um Mineirinho, um Micuçu, um Cara de Cavalo. Aí, então seremos homens e antes de mais nada gente.



Fonte: SOPRO 99

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