PICICA: “As catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas”
(Oswald de Andrade)
(Oswald de Andrade)
Quixotismo
Alexandre Nodari
“As catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas”
(Oswald de Andrade)
(Oswald de Andrade)
Um decreto da Coroa espanhola, datado de 1543 e
direcionado às “províncias do Peru”, observava que “a introdução nestas
terras de livros e cantares de temas profanos e fábulas, o livro de
Amadis e outras semelhantes histórias mentirosas, causam muitos danos;
decorre que os índios educados na leitura, atraídos por estas
histórias, abandonam os livros da santa e reta doutrina e extraem
destas obras mentirosas maus hábitos e vícios”. Deste modo, o decreto
proibia a venda e circulação, na América espanhola, daquelas mesmas
obras cuja leitura, anos mais tarde, causará em um obscuro e ficcional
senhor provinciano da região da Mancha, “o mais estranho gênero de
loucura que poderia caber em um pensamento disparatado”. Alonso Quijano
“preencheu sua fantasia com tudo aquilo que lia nos livros, de
encantamentos a querelas, batalhas, desafios, feridas, amores, tormentas
e disparates impossíveis; e assentando de tal modo em sua imaginação
que era verdade toda aquela maquina daquelas sonhadas invenções que
lia, que para ela não havia outra história mais acertada no mundo”, o
“engenhoso fidalgo” se rebatizou, tornando-se, assim, Dom Quixote.
Uma tradição muito fecunda viu no romance
moderno, inaugurado pelo “cavaleiro da triste figura” de Cervantes, uma
exploração dos mundos possíveis, das possibilidades de mundo(s). Milan
Kundera, por exemplo, dirá que “O romance não examina a realidade, mas
sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o
campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode
tornar-se, tudo aquilo que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo essa ou aquela possibilidade humana”.
Porém, essa definição do romance é
unidirecional: leva em conta só o escritor, esquecendo aquilo que
caracteriza o quixotismo: a leitura. No romance de Cervantes, há um
antes e um depois da leitura: o “engenhoso fidalgo” lê e se transforma
no “cavaleiro da triste figura”: Dom Quixote é o efeito das
leituras realizadas por Alonso Quijano. Como diz Carlos Fuentes, “Dom
Quixote vem da leitura e a ela se dirige”. E não é só Quijano que lê.
Por todo o romance de Cervantes encontramos leitores: a maioria
apaixonada por histórias de aventuras, ainda que sem a “engenhosidade”,
a loucura do protagonista; alguns leitores analfabetos, que gostam de
ouvir a leitura de histórias, ou a assistir à encenação de um conto de
cavalaria na forma do teatro de fantoches; poetas embebidos pela vida
pastoral, conversos e enlouquecidos pela leitura; e, por fim, os
leitores de um livro apócrifo que narra justamente as desventuras de
Quixote, e que, ao longo de todo o segundo volume do romance, não
cessam de criar situações imaginárias bem ao gosto do herói para rir às
custas dele. Isso sem falar da hipótese de Kafka, para quem o
verdadeiro leitor do romance é o analfabeto Sancho Pança.
Portanto, no mundo de Dom Quixote,
quase todos são leitores. O romance de Cervantes é o mundo da leitura.
Mas há, como vimos, dois tipos de leitura, dois tipos de leitores. Por
um lado, os leitores que “sabem” distinguir entre a aparência e o ser.
Em Dom Quixote, argumenta Marthe Robert, “Todos apreciam a
bela linguagem, as histórias dramáticas em que homens lutam e morrem
por amor (...), adota[ndo] em palavras o ideal quixotesco de nobreza ou
de generosidade, [mas] não pensa[ndo] um único instante em colocar
suas crenças em prática”. Por outro lado, no extremo oposto desses
leitores “cínicos”, temos os “loucos”, dos quais Quixote é o paradigma,
mas não o único representante: os que se convertem pela leitura, os
que levam a sério o que leram. “Dom Quixote”, diz Fuentes, “é um
cavaleiro da fé. Essa fé provém da leitura. E essa leitura é uma
loucura”. Todavia, a “sinonímia entre leitura, loucura, verdade e
vida”, repitamos, não se limita a Quixote: envolve também os
poetas-pastores. De fato, como lemos no romance, “fazer-se poeta” é
algo ainda pior do que enlouquecer lendo romances de cavalaria, pois “é
enfermidade incurável e infecciosa”. Portanto, no pólo dos “maus
leitores”, se dá “o face-a-face da poesia e da loucura”, que
caracterizaria a “cultura ocidental”, segundo argumenta Foucault: os
“maus leitores”, os loucos e os poetas são os homens das “semelhanças
selvagens”. Não é por acaso que, para manter sua palavra de abandonar a
cavalaria errante por um ano, Quixote cogite com seus amigos passar
esse tempo como pastor, e dar “vazão a seus amorosos pensamentos,
exercitando-se na pastoral”, compondo “versos pastoris, ou cortesãos”,
ou seja, tornar-se poeta.
Mas essa divisão não é absoluta. A loucura de
Quixote se dissemina, a leitura de Quijano produz efeitos, não só
convertendo-o em Quixote, mas obrigando os demais a partilhar de sua
leitura (do mundo). Para tentar curar a “doença” do protagonista, seus
amigos não têm outro remédio que usar esta mesma doença: fecham com uma
parede o acesso a sua biblioteca, e dizem que foi obra de um
encantador, recrutam um vizinho, Sansão Carrasco, e convencem-no a
fazer-se de cavaleiro e tentar derrotar Quixote em um duelo que
decretaria o fim da cavalaria errante para o perdedor, etc. Isso para
não falar dos personagens que o engenhoso fidalgo obriga a jogarem o
seu jogo, a começar pelo estalajadeiro que o herói toma como senhor de
castelo e que lhe nomeia cavaleiro, um ritual que Quixote considerava
imprescindível para a sua conversão completa. Ou então dos já
mencionados personagens do segundo volume do romance, que não se cansam
de alimentar a fantasia de Quixote, participando dela, ainda que sob o pretexto de burlar o herói.
O banimento dos poetas da República de Platão era justificado exatamente por esse contágio do auditório que os poetas podem produzir, ou seja, devido aos efeitos da
poesia. Para Platão, a poesia cria “simpatia” entre os homens, isto
é, os faz sofrer-junto com os personagens encenados, efeminando os
presentes no auditório, que no teatro agem diferentemente do que
costumam agir no dia-dia. E o risco é que os efeitos da poesia se
espalhem para além de suas próprias fronteiras, afetando a vida
política – o que, de fato, teria acontecido para Platão: no livro sobre
as Leis, ele argumenta que o “declínio” ateniense derivava da
“teatrocracia”, o domínio do auditório: os poetas começaram a misturar
os gêneros, acabando com a diferença entre a boa e a má música, ao que
se seguiu a intromissão cada vez maior do público nas encenações;
público este já incapaz de distinguir o bom do ruim, e prepotente ao
ponto de levar esta intromissão à política, criando, assim, a
democracia. Ao tempo de Quixote, isto é, ao tempo da Inquisição e do Index,
a crítica platônica era referência para aquela infinidade de espíritos
censores que dominou a época. Um deles, o italiano Francesco Berni,
escreveu em 1527 o Diálogo contra os poetas, em que os poetas são caracterizados como “loucos”, e, mais do que isso, como uma “seita”.
E, sendo uma “seita”, devem ser perseguidos como tal, através de “uma
inquisição particular sobre os poetas, como se faz com os hereges ou os
marranos na Espanha”. A manutenção do “bem viver” que estava, segundo
Berni, sendo obtida pelas “proibições de portar armas”, isto é, pela
centralização do poder estatal, seria reforçada com a proibição de
“mostrar versos”, e com mecanismos que identificassem exteriormente os
poetas: “como os Judeus, para serem assinalados pelos cristãos como
gente infame e odiosa, usam chapéus amarelos (...), assim os poetas
usarão chapéu verde, para assinalar a infâmia e para que se possa
melhor evitá-los, e não deixá-los se aproximar”. Para além do conteúdo
hiperbólico, importa observar a forma em que a crítica de
Platão, já militarista segundo Adorno, é atualizada por Berni: os poetas
são uma seita, são hereges, são infames como os judeus, devem ser
perseguidos como a Inquisição persegue a estes, e sua eliminação
equivale ao desarmamento da população. Essa caracterização da
literatura aparece a certa altura de Dom Quixote, quando um personagem argumenta que os escritores são justamente “inventores de novas seitas e de um novo modo de vida”.
Essa terminologia remete diretamente às
guerras confessionais, travadas entre religiões que se acusavam, umas
as outras, de serem seitas, hereges, etc., e, além disso, à formação do
Estado moderno que visava justamente por fim a estas guerras,
centralizando o poder temporal e desarmando a população (e seus
espíritos). Ou seja, essa linguagem remete diretamente ao vocabulário político. As
guerras religiosas eram guerras entre diferentes leituras de um mesmo
Livro, os partidários de uma leitura acusando as demais de serem seitas
heréticas. Entre estas leituras, havia até mesmo a mais selvagem, a
mais louca, a mais poética, a dos místicos. A operação que funda o
Estado moderno consiste em afirmar um poder sobre essas leituras, ou melhor, um poder que independe dessas
leituras, separando a Lei do Livro, e convertendo o Livro (com
maiúscula) em livro (com minúscula). Desta forma, as diversas leituras
do Livro se converteram em opiniões particulares: “não há nenhum juiz
da heresia entre os súditos a não ser o seu próprio soberano civil”,
dirá Hobbes, admitindo que cada um possa ter sua “consciência privada”,
sua opinião privada, desde que aja conforme a “consciência
pública” ditada pelo soberano (e o que são os leitores cínicos que
pululam no romance de Cervantes senão esses seres cindidos?). Deste
modo, o Estado classificava como loucas não só as leituras dos
místicos, mas toda leitura que se convertesse em um hábito, isto é, em
um costume, em um modo (ou uma moda) de vida, capaz de produzir efeitos
contagiantes sobre as demais, toda leitura que ignorasse as fronteiras
entre os mundos espirituais – entre os livros e a realidade, mas
também entre a consciência pública e a consciência privada. Neste
sentido, a história do Estado moderno será a de uma “incessante
guerra inacabada travada contra a guerra civil”, uma guerra preventiva
contra qualquer leitura poética do mundo. Uma guerra preventiva contra
qualquer sedição, qualquer seita, qualquer modo de vida possível e
intenso ao ponto de querer tornar pública sua consciência privada, ao
ponto de levá-lo a produzir efeitos nos demais.
Como entender essa co-incidência histórica
entre a fundação teórica e prática do Estado moderno e o advento do
romance moderno? Talvez seja possível situar o quixotismo como fundador
de uma outra força política da modernidade, oposta a do Estado. Com a
decadência das guerras civis religiosas baseadas nas leituras do Livro,
as leituras loucas, os modos de vida não-estatais se transferem para o
que é prosaico, o comum, a prosa, para o que não é sagrado, para os
livros (no plural e com minúsculo). Uma das características modernas
atribuídas a Dom Quixote é justamente esse caráter prosaico,
provinciano, da narrativa. O mistério a ser desvendado no Livro se
transfere para a realidade comum: “só devassamos o mistério”, diz Walter
Benjamin, “na medida em que o encontramos no cotidiano graças a uma
ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável
como cotidiano”. Quixote é o fundador de uma seita que afirma a leitura
selvagem do prosaico como um modo de vida não-estatal, a literatura como um modo de vida.
É preciso notar que não se trata do modo de vida da cavalaria que é
afirmado no romance, mas o modo de vida da literatura, o que é provado
pelo fato já comentado de que, para cumprir seu ano “sabático” em que
deve ficar longe da cavalaria errante, Quixote não titubeie em fazer
planos mirabolantes de tornar-se poeta-pastor. O quixotismo é a
afirmação da leitura selvagem. Neste sentido, para o quixotismo, a literatura é a continuação da guerra civil por outros meios. A literatura contra o Estado. Ou ainda: para o quixotismo, a literatura é a continuação da religião por outros meios. A literatura como religião profana.
Para retomar a definição de romance com
que começamos esse texto, podemos dizer que, se do ponto de vista do
escritor, o romance é um “mapa da existência”, das possibilidades da
existência, dos modos de vida possíveis, então, do ponto de vista do
leitor, o romance é uma “iniciação” a esses modos de vida, à própria
possibilidade de modos de vida, às seitas. De fato, Quijano, de tanto
ler romances de cavalaria, se converte em Quixote, passa por
uma conversão, que não é uma simples troca de nome, mas de vida
(Quixote inventa-se um título, um passado, e deixa de ser Quijano): o
ritual de iniciação é a sua nomeação como cavaleiro pelo estalajadeiro
(e antes da qual, não pode portar armas). Depois de iniciado, Quixote
só abandona essa nova vida, esse novo modo de vida, essa seita, para
morrer. “O enredo de situações e eventos, relações e circunstâncias que
o romance tece ao redor do personagem”, diz Agamben, “é, ao mesmo
tempo, aquilo que constitui a sua vida como um mistério, que se trata
não de explicar, mas de contemplar como em uma iniciação”. Mas o que
torna Dom Quixote propriamente moderno, o que faz do romance
especificamente moderno, e o posiciona no extremo oposto à operação
estatal é um outro nível: ao lermos Dom Quixote, lemos sobre a
leitura, somos iniciados a uma iniciação. O tema do romance é a
leitura, os efeitos que a leitura provoca. É isso que lemos. O romance
moderno não é apenas a guerra civil continuada por outros meios. O
romance moderno é a teoria e a prática da guerra civil continuada por outros meios. Daí
o devir meta-literatura do romance moderno: não se trata de refletir
sobre a escrita, mas sobre a leitura, isto é, não se trata de refletir
sobre os mecanismos da linguagem, mas sobre os efeitos que estes
provocam. A leitura, como já ressaltamos, não se limita aos letrados, é
apenas a imagem da iniciação possível ao modo de vida do poético;
representa o seu caráter “misterioso”, selvagem. Ler é sempre ler o
livro do mundo.
Isso explica o mal-estar da literatura na modernidade, e o mal-estar que a literatura provoca
na modernidade. Os escritores e poetas modernos, que são, antes de
tudo, leitores, estão plenamente conscientes de que o modo de vida da
literatura só é possível na literatura (Quixote é apenas um personagem).
Daí quererem a todo custo que a literatura saia de si mesma, quererem o
retorno de uma “vida autêntica”, a fusão entre arte e vida, em suma,
quererem que a arte produza efeitos sobre a totalidade da vida. E pouco
importa a posição política dos poetas e escritores. A literatura é per se política.
Pouco importa se formam escolas que se sucedem, confrarias ou
sociedades secretas desconhecidas das grandes massas, ou se, pelo
contrário, formam aparatos militares, isto é, vanguardas que se
digladiam entre si e contra o mundo: formam sempre, e
constitutivamente, seitas, e é sua própria existência, a própria
existência do modo de vida da literatura, de iniciados pela leitura
poética do mundo, que ameaça o Estado. Isto é constitutivo à leitura
selvagem. Algumas vezes, eles formarão um “ajuntamento de poetas” que
exigirá todo o aparato repressor para evitar que a leitura selvagem
ameace o poder, como aconteceu no caso da Inconfidência Mineira. A
maioria das vezes, não. Pouco importa. Enquanto houver literatura, o
Estado permanece ameaçado pela guerra civil. Deixar de escrever poesia
depois de Auschwitz teria sido capitular. Quando, ao final do romance,
Alonso Quijano recobra a “consciência” e deixa de ser Quixote, é porque
aí sim está doente, e prestes a morrer. O final de Dom Quixote, que
poderia ser uma concessão à Igreja, é, na verdade, um tributo à
literatura como modo de vida: uma vez iniciado nela, só se sai dela
para morrer.
Fonte: SOPRO 99
Nenhum comentário:
Postar um comentário