outubro 08, 2015

Quixotismo. POR Alexandre Nodari (SOPRO 99)

PICICA: “As catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas”
(Oswald de Andrade)


Quixotismo
Alexandre Nodari


“As catacumbas líricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas políticas”
(Oswald de Andrade)


Um decreto da Coroa espanhola, datado de 1543 e direcionado às “províncias do Peru”, observava que “a introdução nestas terras de livros e cantares de temas profanos e fábulas, o livro de Amadis e outras semelhantes histórias mentirosas, causam muitos danos; decorre que os índios educados na leitura, atraídos por estas histórias, abandonam os livros da santa e reta doutrina e extraem destas obras mentirosas maus hábitos e vícios”. Deste modo, o decreto proibia a venda e circulação, na América espanhola, daquelas mesmas obras cuja leitura, anos mais tarde, causará em um obscuro e ficcional senhor provinciano da região da Mancha, “o mais estranho gênero de loucura que poderia caber em um pensamento disparatado”. Alonso Quijano “preencheu sua fantasia com tudo aquilo que lia nos livros, de encantamentos a querelas, batalhas, desafios, feridas, amores, tormentas e disparates impossíveis; e assentando de tal modo em sua imaginação que era verdade toda aquela maquina daquelas sonhadas invenções que lia, que para ela não havia outra história mais acertada no mundo”, o “engenhoso fidalgo” se rebatizou, tornando-se, assim, Dom Quixote


Uma tradição muito fecunda viu no romance moderno, inaugurado pelo “cavaleiro da triste figura” de Cervantes, uma exploração dos mundos possíveis, das possibilidades de mundo(s). Milan Kundera, por exemplo, dirá que “O romance não examina a realidade, mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência descobrindo essa ou aquela possibilidade humana”. 


Porém, essa definição do romance é unidirecional: leva em conta só o escritor, esquecendo aquilo que caracteriza o quixotismo: a leitura. No romance de Cervantes, há um antes e um depois da leitura: o “engenhoso fidalgo” lê e se transforma no “cavaleiro da triste figura”: Dom Quixote é o efeito das leituras realizadas por Alonso Quijano. Como diz Carlos Fuentes, “Dom Quixote vem da leitura e a ela se dirige”. E não é só Quijano que lê. Por todo o romance de Cervantes encontramos leitores: a maioria apaixonada por histórias de aventuras, ainda que sem a “engenhosidade”, a loucura do protagonista;  alguns leitores analfabetos, que gostam de ouvir a leitura de histórias, ou a assistir à encenação de um conto de cavalaria na forma do teatro de fantoches; poetas embebidos pela vida pastoral, conversos e enlouquecidos pela leitura; e, por fim, os leitores de um livro apócrifo que narra justamente as desventuras de Quixote, e que, ao longo de todo o segundo volume do romance, não cessam de criar situações imaginárias bem ao gosto do herói para rir às custas dele. Isso sem falar da hipótese de Kafka, para quem o verdadeiro leitor do romance é o analfabeto Sancho Pança.


Portanto, no mundo de Dom Quixote, quase todos são leitores. O romance de Cervantes é o mundo da leitura. Mas há, como vimos, dois tipos de leitura, dois tipos de leitores. Por um lado, os leitores que “sabem” distinguir entre a aparência e o ser. Em Dom Quixote, argumenta Marthe Robert, “Todos apreciam a bela linguagem, as histórias dramáticas em que homens lutam e morrem por amor (...), adota[ndo] em palavras o ideal quixotesco de nobreza ou de generosidade, [mas] não pensa[ndo] um único instante em colocar suas crenças em prática”. Por outro lado, no extremo oposto desses leitores “cínicos”, temos os “loucos”, dos quais Quixote é o paradigma, mas não o único representante: os que se convertem pela leitura, os que levam a sério o que leram. “Dom Quixote”, diz Fuentes, “é um cavaleiro da fé. Essa fé provém da leitura. E essa leitura é uma loucura”. Todavia, a “sinonímia entre leitura, loucura, verdade e vida”, repitamos, não se limita a Quixote: envolve também os poetas-pastores. De fato, como lemos no romance, “fazer-se poeta” é algo ainda pior do que enlouquecer lendo romances de cavalaria, pois “é enfermidade incurável e infecciosa”. Portanto, no pólo dos “maus leitores”, se dá “o face-a-face da poesia e da loucura”, que caracterizaria a “cultura ocidental”, segundo argumenta Foucault: os “maus leitores”, os loucos e os poetas são os homens das “semelhanças selvagens”. Não é por acaso que, para manter sua palavra de abandonar a cavalaria errante por um ano, Quixote cogite com seus amigos passar esse tempo como pastor, e dar “vazão a seus amorosos pensamentos, exercitando-se na pastoral”, compondo “versos pastoris, ou cortesãos”, ou seja, tornar-se poeta. 


Mas essa divisão não é absoluta. A loucura de Quixote se dissemina, a leitura de Quijano produz efeitos, não só convertendo-o em Quixote, mas obrigando os demais a partilhar de sua leitura (do mundo). Para tentar curar a “doença” do protagonista, seus amigos não têm outro remédio que usar esta mesma doença: fecham com uma parede o acesso a sua biblioteca, e dizem que foi obra de um encantador, recrutam um vizinho, Sansão Carrasco, e convencem-no a fazer-se de cavaleiro e tentar derrotar Quixote em um duelo que decretaria o fim da cavalaria errante para o perdedor, etc. Isso para não falar dos personagens que o engenhoso fidalgo obriga a jogarem o seu jogo, a começar pelo estalajadeiro que o herói toma como senhor de castelo e que lhe nomeia cavaleiro, um ritual que Quixote considerava imprescindível para a sua conversão completa. Ou então dos já mencionados personagens do segundo volume do romance, que não se cansam de alimentar a fantasia de Quixote, participando dela, ainda que sob o pretexto de burlar o herói. 


O banimento dos poetas da República de Platão era justificado exatamente por esse contágio do auditório que os poetas podem produzir, ou seja, devido aos efeitos da poesia.  Para Platão, a poesia cria “simpatia” entre os homens, isto é, os faz sofrer-junto com os personagens encenados, efeminando os presentes no auditório, que no teatro agem diferentemente do que costumam agir no dia-dia. E o risco é que os efeitos da poesia se espalhem para além de suas próprias fronteiras, afetando a vida política – o que, de fato, teria acontecido para Platão: no livro sobre as Leis, ele argumenta que o “declínio” ateniense derivava da “teatrocracia”, o domínio do auditório: os poetas começaram a misturar os gêneros, acabando com a diferença entre a boa e a má música, ao que se seguiu a intromissão cada vez maior do público nas encenações; público este já incapaz de distinguir o bom do ruim, e prepotente ao ponto de levar esta intromissão à política, criando, assim, a democracia. Ao tempo de Quixote, isto é, ao tempo da Inquisição e do Index, a crítica platônica era referência para aquela infinidade de espíritos censores que dominou a época. Um deles, o italiano Francesco Berni, escreveu em 1527 o Diálogo contra os poetas, em que os poetas são caracterizados como “loucos”, e, mais do que isso, como uma “seita”. E, sendo uma “seita”, devem ser perseguidos como tal, através de “uma inquisição particular sobre os poetas, como se faz com os hereges ou os marranos na Espanha”. A manutenção do “bem viver” que estava, segundo Berni, sendo obtida pelas “proibições de portar armas”, isto é, pela centralização do poder estatal, seria reforçada com a proibição de “mostrar versos”, e com mecanismos que identificassem exteriormente os poetas: “como os Judeus, para serem assinalados pelos cristãos como gente infame e odiosa, usam chapéus amarelos (...), assim os poetas usarão chapéu verde, para assinalar a infâmia e para que se possa melhor evitá-los, e não deixá-los se aproximar”. Para além do conteúdo hiperbólico, importa observar a forma em que a crítica de Platão, já militarista segundo Adorno, é atualizada por Berni: os poetas são uma seita, são hereges, são infames como os judeus, devem ser perseguidos como a Inquisição persegue a estes, e sua eliminação equivale ao desarmamento da população. Essa caracterização da literatura aparece a certa altura de Dom Quixote, quando um personagem argumenta que os escritores são justamente “inventores de novas seitas e de um novo modo de vida”. 


Essa terminologia remete diretamente às guerras confessionais, travadas entre religiões que se acusavam, umas as outras, de serem seitas, hereges, etc., e, além disso, à formação do Estado moderno que visava justamente por fim a estas guerras, centralizando o poder temporal e desarmando a população (e seus espíritos). Ou seja, essa linguagem remete diretamente ao vocabulário político. As guerras religiosas eram guerras entre diferentes leituras de um mesmo Livro, os partidários de uma leitura acusando as demais de serem seitas heréticas. Entre estas leituras, havia até mesmo a mais selvagem, a mais louca, a mais poética, a dos místicos. A operação que funda o Estado moderno consiste em afirmar um poder sobre essas leituras, ou melhor, um poder que independe dessas leituras, separando a Lei do Livro, e convertendo o Livro (com maiúscula) em livro (com minúscula). Desta forma, as diversas leituras do Livro se converteram em opiniões particulares: “não há nenhum juiz da heresia entre os súditos a não ser o seu próprio soberano civil”, dirá Hobbes, admitindo que cada um possa ter sua “consciência privada”, sua opinião privada, desde que aja conforme a “consciência pública” ditada pelo soberano (e o que são os leitores cínicos que pululam no romance de Cervantes senão esses seres cindidos?). Deste modo, o Estado classificava como loucas não só as leituras dos místicos, mas toda leitura que se convertesse em um hábito, isto é, em um costume, em um modo (ou uma moda) de vida, capaz de produzir efeitos contagiantes sobre as demais, toda leitura que ignorasse as fronteiras entre os mundos espirituais – entre os livros e a realidade, mas também entre a consciência pública e a consciência privada. Neste sentido, a história do Estado moderno será a de uma incessante guerra inacabada travada contra a guerra civil”, uma guerra preventiva contra qualquer leitura poética do mundo. Uma guerra preventiva contra qualquer sedição, qualquer seita, qualquer modo de vida possível e intenso ao ponto de querer tornar pública sua consciência privada, ao ponto de levá-lo a produzir efeitos nos demais. 


Como entender essa co-incidência histórica entre a fundação teórica e prática do Estado moderno e o advento do romance moderno? Talvez seja possível situar o quixotismo como fundador de uma outra força política da modernidade, oposta a do Estado. Com a decadência das guerras civis religiosas baseadas nas leituras do Livro, as leituras loucas, os modos de vida não-estatais se transferem para o que é prosaico, o comum, a prosa, para o que não é sagrado, para os livros (no plural e com minúsculo). Uma das características modernas atribuídas a Dom Quixote é justamente esse caráter prosaico, provinciano, da narrativa. O mistério a ser desvendado no Livro se transfere para a realidade comum: “só devassamos o mistério”, diz Walter Benjamin, “na medida em que o encontramos no cotidiano graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano”. Quixote é o fundador de uma seita que afirma a leitura selvagem do prosaico como um modo de vida não-estatal, a literatura como um modo de vida. É preciso notar que não se trata do modo de vida da cavalaria que é afirmado no romance, mas o modo de vida da literatura, o que é provado pelo fato já comentado de que, para cumprir seu ano “sabático” em que deve ficar longe da cavalaria errante, Quixote não titubeie em fazer planos mirabolantes de tornar-se poeta-pastor. O quixotismo é a afirmação da leitura selvagem. Neste sentido, para o quixotismo, a literatura é a continuação da guerra civil por outros meios. A literatura contra o Estado. Ou ainda: para o quixotismo, a literatura é a continuação da religião por outros meios. A literatura como religião profana.


Para retomar a definição de romance com que começamos esse texto, podemos dizer que, se do ponto de vista do escritor, o romance é um “mapa da existência”, das possibilidades da existência, dos modos de vida possíveis, então, do ponto de vista do leitor, o romance é uma “iniciação” a esses modos de vida, à própria possibilidade de modos de vida, às seitas. De fato, Quijano, de tanto ler romances de cavalaria, se converte em Quixote, passa por uma conversão, que não é uma simples troca de nome, mas de vida (Quixote inventa-se um título, um passado, e deixa de ser Quijano): o ritual de iniciação é a sua nomeação como cavaleiro pelo estalajadeiro (e antes da qual, não pode portar armas). Depois de iniciado, Quixote só abandona essa nova vida, esse novo modo de vida, essa seita, para morrer. “O enredo de situações e eventos, relações e circunstâncias que o romance tece ao redor do personagem”, diz Agamben, “é, ao mesmo tempo, aquilo que constitui a sua vida como um mistério, que se trata não de explicar, mas de contemplar como em uma iniciação”. Mas o que torna Dom Quixote propriamente moderno, o que faz do romance especificamente moderno, e o posiciona no extremo oposto à operação estatal é um outro nível: ao lermos Dom Quixote, lemos sobre a leitura, somos iniciados a uma iniciação. O tema do romance é a leitura, os efeitos que a leitura provoca. É isso que lemos. O romance moderno não é apenas a guerra civil continuada por outros meios. O romance moderno é a teoria e a prática da guerra civil continuada por outros meios. Daí o devir meta-literatura do romance moderno: não se trata de refletir sobre a escrita, mas sobre a leitura, isto é, não se trata de refletir sobre os mecanismos da linguagem, mas sobre os efeitos que estes provocam. A leitura, como já ressaltamos, não se limita aos letrados, é apenas a imagem da iniciação possível ao modo de vida do poético; representa o seu caráter “misterioso”, selvagem. Ler é sempre ler o livro do mundo.


Isso explica o mal-estar da literatura na modernidade, e o mal-estar que a literatura provoca na modernidade. Os escritores e poetas modernos, que são, antes de tudo, leitores, estão plenamente conscientes de que o modo de vida da literatura só é possível na literatura (Quixote é apenas um personagem). Daí quererem a todo custo que a literatura saia de si mesma, quererem o retorno de uma “vida autêntica”, a fusão entre arte e vida, em suma, quererem que a arte produza efeitos sobre a totalidade da vida. E pouco importa a posição política dos poetas e escritores. A literatura é per se política. Pouco importa se formam escolas que se sucedem, confrarias ou sociedades secretas desconhecidas das grandes massas, ou se, pelo contrário, formam aparatos militares, isto é, vanguardas que se digladiam entre si e contra o mundo: formam sempre, e constitutivamente, seitas, e é sua própria existência, a própria existência do modo de vida da literatura, de iniciados pela leitura poética do mundo, que ameaça o Estado. Isto é constitutivo à leitura selvagem. Algumas vezes, eles formarão um “ajuntamento de poetas” que exigirá todo o aparato repressor para evitar que a leitura selvagem ameace o poder, como aconteceu no caso da Inconfidência Mineira. A maioria das vezes, não. Pouco importa. Enquanto houver literatura, o Estado permanece ameaçado pela guerra civil. Deixar de escrever poesia depois de Auschwitz teria sido capitular. Quando, ao final do romance, Alonso Quijano recobra a “consciência” e deixa de ser Quixote, é porque aí sim está doente, e prestes a morrer. O final de Dom Quixote, que poderia ser uma concessão à Igreja, é, na verdade, um tributo à literatura como modo de vida: uma vez iniciado nela, só se sai dela para morrer.

Fonte: SOPRO 99

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