PICICA: “Só vejo um
meio de saber onde ir: é colocar-se em marcha”
A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa: “Pode o cogito ser o ponto de partida?" *1
Nossa
comunicação se insere no contexto daquelas que procuram traçar pontos
de aproximação e/ou de afastamento da filosofia bergsoniana e outras
filosofias. Propomos-nos a pensar Bérgson a partir de Espinosa e
vice-versa. O que sugeriria por si só um título como: A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa. No entanto, esse título, antes de ser lido afirmativamente, deveria ser lido como interrogativa: A pré-subjetividade em Bérgson e Espinosa?
Porque lê-lo como interrogativa? Não pelo simples fato de ser uma
questão a qual deveremos responder ao longo do texto, mas sim pelo
motivo de que há um conectivo "e" ligando os dois
substantivos próprios. Portanto, antes de nos perguntarmos sobre a
questão da pré-subjetividade, é preciso que nos perguntemos sobre as
condições de possibilidade do "e" que liga Bérgson a Espinosa.
Esse "e" pressupõe
duas possibilidades, com ele pode-se querer indicar: (a) que ambos os
autores, cada um ao seu modo concebeu uma instância pré-subjetiva, a
única ligação entre eles seria o fato de que ao conceberem esta
instância, suas filosofias romperam com a noção de subjetividade
inaugurada por Descartes, e, portanto, o que validaria o conectivo entre
Bérgson e Espinosa seria o fato de que ambos se viram diante da
filosofia cartesiana, ou (b) esse "e" pode significar
que há uma relação entre os dois filósofos, que ultrapassa o simples
fato de que ambos negam a subjetividade cartesiana, ou seja, há uma
aposta de que o modo pelo qual se dá essa negação, essa crítica, possui
algo em comum, se assim for poderíamos afirmar certa familiaridade, no
sentido de pertencer à família, entre Bérgson e Espinosa.
A
questão que colocamos, a qual tentamos agora justificar as condições de
validade, nos foi sugerida por Prado Junior, que em seu Presença e Campo Transcendental, institui certa familiaridade entre os autores. Na conclusão do referido livro Prado Junior nos diz que é
a própria recusa do cogito, como ponto de partida radical, que aparece,
assim, como projeto de finalidade do pensamento à sua finidade [2] No parágrafo imediatamente seguinte o comentador afirma que há duas maneiras de negligenciar o cogito, a saber, regredindo
a uma esfera mais primitiva, onde ainda não se estabeleceu a distinção
entre sujeito e objeto. Mas é possível abandoná-lo por encontrar, acima
dele, uma instância absoluta que o relativiza: tal é a maneira de
Espinosa e de Malebranche. E completa: é
a própria leitura de Bérgson que nos obriga a uma inversão de
perspectiva e que nos conduz à segunda maneira de recusa do cogito [3].
Embora
seja de suma importância uma justificativa da cópula que compõe o
título, ainda mais no caso dos filósofos em questão – pois para um o
verdadeiro conhecimento é o conhecimento do singular, enquanto o outro
concebe a filosofia como se fosse o desenrolar, por meio da linguagem,
de uma intuição – não a daremos aqui, afinal isto ultrapassaria o escopo
de nosso trabalho. Portanto, para passarmos direto ao ponto,
aceitaremos que há uma relação entre as filosofias de Bérgson e
Espinosa, para não sermos totalmente arbitrários cabe lembrar que o
primeiro afirma em A intuição filosófica que pôde durante vários anos consecutivos, trabalhar longamente Berkeley, depois Espinosa (...)[4]. Mesmo
que tenhamos, de modo insuficiente, simplemente apontado os possíveis
problemas desse tipo de aproximação, deixemo-los de lado e passemos à
questão da pré-subjetividade.
Com
a noção de pré-subjetividade pretendemos indicar que antes mesmo do
sujeito que descobre sua existência, por meio da dúvida e junto com ela
descobre-se como subjetividade, ou seja, como consciência individual
isolada no interior de si, há um anterior que é condição de
possibilidade do mesmo.
Certamente,
Descartes não negava a existência de um Deus como condição e fundamento
para existência do sujeito finito, a confirmação disso é ter ele
recorrido na terceira meditação à prova ontológica. No entanto, mesmo
que não negue tal existência fundadora e anterior à subjetividade, o
percurso por meio do qual ele chega a essa idéia de Deus só é possível
porque toma essa subjetividade como ponto de partida.
Mais
grave do que tomar esse sujeito subjetivo como ponto de partida é fazer
dele o critério de certeza e evidência. Ao fazer isso Descartes pensa
efetuar a fundação do conhecimento em bases seguras porque
transparentes. Esquece ele que sob a capa dessa transparência reside uma
série de elementos. Não se trata aqui de procurar mostrar que o cogito, e essa é a acusação de Nietzsche, é uma espécie de silogismo incompleto[5],
mas, sim, mostrar que esse sujeito puro na verdade só o é
aparentemente. E sendo sua pureza somente aparente, tomá-lo como ponto
de partida da reflexão filosófica é um equívoco.
Bérgson, no primeiro parágrafo da Evolução Criadora, afirma que “a existência da qual estamos mais certos e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa (...)” [6] .
Haveria aqui um acordo com o cartesianismo? Num primeiro momento,
parece que poderíamos responder positivamente a esta questão, afinal o
texto bergsoniano chega a reconstituir os passos cartesianos. Descoberta
a indubitabilidade de nossa existência cabe efetuar o exame dos dados
de nossa consciência. De fato, tanto Bérgson quanto Descartes fazem tal
exame, mas contrariando o segundo, o exame efetuado pelo primeiro
mostrará que a consciência do homem, e, portanto, a certeza de sua
existência, junto com ela, tem uma história que a envolve e a
ultrapassa.
Neste
sentido, se podemos ter certeza de nossa existência e isso é
incontestável - essa incontestabilidade da nossa existência carrega
consigo a exigência de estar inserida no mundo - a própria descoberta do
cogito, possível somente por um ato de inteligência,
teria de levar em conta uma história, a história da própria inteligência
“que foi amoldada pela evolução ao longo do trajeto”[7] .
Não há possibilidade para a existência de um sujeito abstrato, fechado em si. Esse
sujeito se constitui a todo instante em algo que lhe contém. A
subjetividade cartesiana esconderia, portanto, uma pré-subjetividade, ou
seja, o seu possível. O eu cartesiano será visto como um produto, como um “eu
amorfo, indiferente, imutável, sobre o qual pudessem desfilar ou no
qual pudessem enfileirar-se os estados psicológicos (...) é uma imitação
artificial da vida interior, um equivalente estático que se prestará
melhor às exigências da lógica e da linguagem, justamente porque o tempo
real terá sido eliminado dele”[8].
Todas estas considerações sobre o primeiro parágrafo da Evolução Criadora
organizaram-se em torno de uma tentativa de mostrar que mesmo sendo
nossa existência aquilo de que estamos incontestavelmente mais certos,
isso não significa que há aqui parentesco com Descartes. Bento Prado
Júnior se defronta com a mesma passagem, da qual agora nós tratamos de
tecer considerações, a respeito dela o comentador nos diz que:
(...)
não temos aí a determinação de um ponto de partida necessário do
filosofar e, muito menos, a definição de uma evidência particular que
constitua não somente a primeira verdade de uma cadeia de razões, mas
também um critério de todo conhecimento, isto é, fundamento de um método
universal. Temos, pelo contrário, um tipo peculiar de experiência que
nos revela uma dentre as regiões do ser e que nada nos informa a
respeito da arquitetura das demais regiões do real [9].
Prova
disso é que não há dissociação entre a investigação filosófica e os
critérios de verdade ou um método para conhecer as coisas a conhecer.
Assim sendo, não seria justificável a busca de um fundamento, ou
primeira certeza, que possibilitasse o desenvolvimento do pensamento
filosófico. Há um deslocamento, em Bérgson a
consciência não será o ponto de partida, aquilo que permitiria o
desenvolvimento subseqüente da investigação filosófica, ela sequer é
descoberta por meio de um método apartado do conhecimento.
A
consciência, portanto, e junto com ela a certeza incontestável de nossa
existência tem função muito distinta daquela que recebe na filosofia
cartesiana. Isso fica claro não só pela economia do texto bergsoniano, que tal como Malebranche em suas Entretiens, nega todo processo da dúvida na descoberta do cogito. Em Bérgson, tal como em Malebranche, não há método apartado do conhecimento [10].
Essas considerações ganham luz se nos voltarmos para conferência sobre A consciência e a vida. Nesta
conferência Bérgson abre algumas questões e fala sobre a possibilidade
de responder a elas. Seria exigido, por uma filosofia sistemática, que
antes de respondermos tais questões puséssemos as condições de
possibilidade da própria questão, no sentido de efetuar uma investigação
sobre como buscar as soluções. Por outras palavras, deveríamos tecer
considerações tais como: porque temos tal e tal instrumento de
conhecimento, deveremos buscar a resposta com tais e tais métodos.
Assim, todo e qualquer tentativa de filosofar deveria levar em
consideração as possibilidades do próprio conhecimento.
A
posição de Bérgson é próxima da de Espinosa, ambos partem já para
própria investigação sobre as coisas. Diz-nos o primeiro: “Só vejo um
meio de saber onde ir: é colocar-se em marcha”[11]. Da mesma forma, Espinosa, no Tratado da Correção do Intelecto,afirma não ser necessário efetuar uma investigação sem fim:
para se descobrir qual o melhor método de investigar a verdade, não é necessário outro método para investigar qual
o método de investigar a verdade; e para que se investigue este segundo
método, não é necessário um terceiro, e assim ao infinito: por esse
modo nunca se chegaria ao conhecimento da verdade, ou, antes, a
conhecimento algum [12].
Para
os dois, trata-se de mergulhar, antes mesmo de se tecerem considerações
sobre as possibilidades do conhecimento, “no próprio objeto por um
esforço de intuição”[13].
Talvez seja aí que mora o parentesco entre os dois filósofos. Essa
impossibilidade de distinção entre método e filosofia – uma vez que é no
processo de filosofar, nessa tentativa de se colocar no próprio objeto,
que se dá a descoberta do modo pelo qual o conhecemos – é conseqüência
da idéia de que as próprias formas de conhecer estão atreladas a um todo
maior que lhe contém, de tal forma que a metafísica sempre deverá
anteceder a própria investigação sobre as possibilidades do
conhecimento, pois é no horizonte de uma ontologia que o próprio
conhecimento - ou instrumentos de conhecimento – é formado.
O próprio ato de pôr em dúvida, de suspender o juízo para que cheguemos à verdade do cogito
sempre carrega consigo um elemento impossível de ser descartado, a
saber, a dúvida só pode ser posta porque já temos um critério do que vem
a ser aquilo que não é duvidoso, há uma verdade dada. O poder pôr as
coisas em dúvida nos remete sempre a uma anterioridade, a um
pré-conhecimento. A dúvida não é vazia e, portanto, o cogito, que
por meio dela descobrimos, sempre esteve presente com todos os
elementos que lhes são constitutivos. Não há passagem de um não saber
absoluto para o saber, não há subjetividade absoluta que busca se lançar
para fora de si na busca de uma objetividade, de um mundo real que
possa ser conhecido com clareza e evidência. O que há sempre é um
sujeito inserido no mundo.
As
filosofias de Espinosa e Bérgson constituem um campo de imanência, é
sempre neste campo, que nos atravessa e nos ultrapassa, que constituímos
nossa liberdade. Nele não há um fora nem um dentro, mas plenitude de
ser. Da mesma forma como Joseph K., em O Processo
de Kafaka, que busca descobrir-se no interior de um mundo constituído e
que ele também constitui, o homem nas filosofias de Bérgson e Espinosa é
também um ser-no-mundo. E por assim o ser, não consegue nunca se apartar deste, não há como pensar fora do mundo.
Não há mais espaço para esse eu
puro, espécie de núcleo duro, para esse sujeito que permanece idêntico
na diversidade de seus atos. O que há é um sujeito que se relaciona com o
mundo, descobre-se nesse, o afeta e é afetado por ele. Em Espinosa isto
fica claro se voltarmos nossa atenção para duas de suas obras, uma
delas já referida aqui, o Tratado da Correção do Intelecto[14],
no qual temos como ponto de partida do discurso o homem inserido no
mundo procurando selecionar seus afetos para tentar encontrar o Bem
Supremo. Na Ética temos Deus como o ponto de partida do
filosofar, somente no segundo livro da mesma é que teremos considerações
sobre como conhecemos as coisas, isso por um motivo muito simples, a
saber, tal compreensão só pode se dar depois que soubermos que lugar o
homem ocupa na natureza.
Mesmo
a consciência, consciência de si, ponto de partida da filosofia
cartesiana, encontra em Espinosa sua derivação. Ela não é um conceito
primitivo, mas derivado. Se nos voltarmos para o Apêndice ao primeiro livro da Ética, veremos que a ignorância dessa derivação causa muitas ilusões. A
consciência que ignora o que a antecede, que ignora ser efeito e não
causa, pensa ser dotada da capacidade absoluta de decidir, em outros
termos, acredita ser detentora de livre arbítrio.
Espinosa
apresenta duas teses que ilustram o motivo pelo qual são engendradas as
idéias imaginativas, a saber, (a) todos os homens nascem ignorantes
acerca das causas das coisas, e (b) todos desejam alcançar o que lhes é
útil e disso têm consciência. Ser ignorante das causas das coisas e
consciente dos desejos é o motivo pelo qual a idéia de livre arbítrio,
entre outras, é engendrada. Quando agimos com base na consciência das
volições e desejos que temos, ignorando que estas são efeitos de causas
que nos “dispõem a apetecer e a querer”[15],
agimos tal qual a pedra que recebe o movimento de uma causa externa, e a
continuação do movimento depende sempre dessa causa externa:
Concebes
agora, se quiseres, que a pedra, enquanto continua a mover-se, saiba e
pense que se esforça tanto quanto pode para continuar a mover-se.
Seguramente essa pedra, visto que não é consciente senão de seu esforço,
e não é indiferente, acreditará ser livre e que persevera no movimento
apenas porque quer. É esta a tal liberdade humana que todos se jactam de
possuir e que consiste apenas em que os homens são conscientes de seus
apetites, mas ignorantes das causas que os determinam. É assim que uma
criança crê desejar livremente o leite, um menino vingar-se, se
irritado, mas fugir, se amedrontado. Um ébrio crê dizer por uma livre
decisão aquilo que, sóbrio, desejaria ter calado. Da mesma maneira, um
delirantes, um tagarela e muitos de mesma farinha acreditam agir por um
livre decisão de sua mente e não levados por impulsos [16].
O
exemplo acima ilustra bem a razão pela qual a consciência não pode ser o
ponto de partida da reflexão filosófica. Objetar-se-á que se assim o é,
porque no TIE Espinosa parte da perspectiva do homem
que está envolvido em uma série de causas que entravam o processo na
busca do Bem Supremo? Não seria isso a prova de que a filosofia poderia
partir do ponto de vista da consciência? É certo que no TIE o
ponto de partida são os dados da consciência do homem inserido no mundo
e que há um aprofundamento da mesma, uma reflexão sobre esses dados com
vistas a atingir o Bem Supremo e a idéia de um Ser perfeitíssimo. No
entanto, não podemos esquecer que Espinosa não considera esse texto como
sendo a sua filosofia, esta se encontra na Ética e lá o ponto de partida é já a idéia desse Ser perfeitíssimo causa de todas as coisas.
Portanto,
nunca há essa interioridade na qual o sujeito seria senhor de seus
estados, pelo contrário, ele é invadido, tomado pelos afecções e pensa
que tem livre arbítrio, porque ignora a causa de suas determinações, mas
tem consciência das afecções. Mesmo o processo da dúvida, essencial para que se chegue, na filosofia cartesiana, a certeza do cogito
é recusado por Espinosa, porque há uma idéia verdadeira dada, cabendo
ao verdadeiro método efetuar uma reflexão sobre tal idéia.
Não
pensemos, entretanto, que há total recusa da consciência na filosofia
de Espinosa, o que ele recusa é simplesmente tomar a consciência como
conceito primitivo que possibilite fundar a filosofia. Prova de que não
total recusa é que no final da Ética quando estabelece
uma distinção entre o sábio e o ignorante, essa distinção reside no tipo
de consciência que cada um deles possui:
O
ignorante, com efeito, além de ser agitado de muitas maneiras pelas
causas exteriores e de nunca gozar do verdadeiro contentamento íntimo,
vive, ainda, quase sem consciência de si mesmo, de Deus, das coisas e ao
mesmo tempo que ele deixa de sofrer, deixa também de ser. Enquanto que,
pelo contrário, o sábio, na medida que se considera como tal,
dificilmente se perturba interiormente, mas, consciente de si mesmo, de
Deus e das coisas, em virtude de uma certa necessidade eterna, nunca
deixa de ser, mas goza sempre do verdadeiro contentamento interior [17].
A
consciência do sábio leva em conta não só a si mesma, mas é também
consciência de Deus e das coisas. Só esse tipo de consciência sabe
pensar a partir do lugar que ocupa. Da mesma maneira que em Espinosa em Bérgson a consciência remete a uma anterioridade, essa anterioridade a que nos remete a consciência individual é a Consciência em Geral. Nos dirá Silvestre que na
filosofia bergsoniana não temos uma visão “psicologizante do real,
desprovida de pressupostos metafísicos, onde a realidade toma a forma do
objeto psicológico, como se fosse sua simples e pura ampliação ...” na
filosofia de Bérgson, segundo o comentador, se dá o contrário disso, “rata-se
de uma filosofia onde o tempo psicológico e a consciência individual se
apresentam como um caso específico do Tempo Ontológico e da Consciência
em geral, respectivamente” [18].
Obviamente
que as aproximações entre Bérgson e Espinosa têm seus limites. Nossa
intenção nessa breve exposição era simplesmente a de apontar para o fato
de que há certa relação entre ambos, relação esta que pode ser pensada a
partir da crítica ao conceito de consciência. Obviamente o alvo da
filosofia de Bérgson, ao contrário de Espinosa, muito mais do que
Descartes e sua concepção de consciência, era a psicofisiologia, ou
aquilo que Merleau-Ponty, mais tarde, chamará de pequeno racionalismo. No entanto, esse pequeno racionalismo, como é apontado por Merleau-Ponty, esquece que carrega consigo pressupostos metafísicos e justamente por isso é pequeno e não grande racionalismo. Muitos dos pressupostos que esse pequeno racionalismo comporta provém, sem que o saiba, do Grande racionalismo.
O que queremos dizer é que no limite, a psicofisiologia do XIX é
caudatária da distinção entre corpo e alma efeutada por Descartes no
XVII, portanto, o alvo de Bérgson acaba sendo o mesmo de Espinosa, a
saber, Descartes. Bérgson na conferência sobre A alma e o corpo afirma que:
De
fato, através de todo século XVIII podemos seguir os traços desta
simplificação progressiva da metafísica cartesiana. Na medida em que ele
se estreita, mais se infiltra numa fisiologia que, naturalmente,
encontra nela uma fisiologia muito apropriada para dar a confiança em si
própria que ela necessita. É assim que filósofos (...), cujas ligações
com o cartesianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do XIX o
que ela poderia melhor utilizar da metafísica do século XVII [19].
O
cientista, continua Bérgson, que pensa fazer ciência e comprovar as
teses do paralelismo por meio da experiência pensando que esta nos
revelaria “um paralelismo rigoroso e completo da vida cerebral e vida
mental”, deve ser lembrado de que não está fazendo ciência, mas
metafísica.
Não
podemos esquecer, no entanto, que se, por um lado, Bérgson efetua está
crítica à ciência do XIX - o que nos permitiu mostrar que há uma
discussão com Descartes - ; por outro lado, nesse mesmo texto, Bérgson, é
muito mais amistoso para com Descartes do que para com Espinosa, isso
se deve ao fato de que o primeiro preferia, segundo Bérgson, “a despeito
do rigor da doutrina, deixar algum lugar para vontade livre”, esse
espaço para vontade livre desapareceu na filosofia de Espinosa, a
vontade livre foi “varrida pela lógica do sistema” [20].
Espinosa, juntamente com Leibniz, abriu espaço para instauração de um
“paralelismo constante entre estados do corpo e os da alma”[21].
Agora
podemos retomar as perguntas que fizemos no início de nosso trabalho
sobre o parentesco entre Bérgson e Espinosa. O parentesco parece residir
simplesmente na negação de uma consciência individual entendida como
conceito primitivo da filosofia. Limite preciso, estabelecido pela
acusação de que Espinosa e Leibniz “preparam o caminho para um
cartesianismo diminuído”; talvez devêssemos inverter agora, negando o
que havíamos dito antes, não é Descartes com quem Bérgson está
discutindo, mas com os responsáveis pela formulação desse cartesianismo
diminuído, afinal, estes que foram responsáveis pelo início da
“simplificação progressiva do cartesianismo”[22].
Todo
trabalho de comparação entre os autores em questão deveria antes passar
pelo estabelecimento do modo pelo qual Bérgson leu Espinosa e, talvez
sem o saber, ele seja mais espinosano do que pensa. É certo que não há
em Espinosa liberdade da vontade, mas há liberdade, liberdade esta que
se dá a partir de uma relação contínua do infinito ao finito. É certo
que Espinosa estabelece na proposição 7 do segundo livro da Ética que
a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das
coisas, mas não é certo que isso seja de fato um paralelismo.
Uma
leitura de Espinosa, sem os vícios gerados pelo rótulo “filosofias da
representação”, talvez revele o significado profundo daquela passagem,
conhecida entre os estudiosos de Espinosa, na qual Bérgson afirma que
todo filósofo tem duas filosofias, a sua e a de Espinosa. Marilena
Chaui, referindo-se a esta afirmação de Bérgson, nos diz que com ela o
filósofo pretende significar que “o espinosismo é a tendência natural da
inteligência a fixar-se na imobilidade do Ser, e a petrificar-se no
utilitarismo instrumental que precisa ser contrariado pela mobilidade
criadora do elã vital e da intuição” [23].
Como sabemos, pela própria interpretação da comentadora em questão,
Espinosa não é Eleata, e, portanto, não há imobilidade do ser : intuição
em Espinosa capta o objeto em sua geração e movimento. Talvez Bérgson
seja mais espinosano do que pensa ser e o afastamento que Bérgson crê
possuir em relação a ele deve ser buscado no modo como leu este último.
BIBLIOGRAFIA
BERGSON, H. A Evolução Criadora; Ed. Matins Fontes, São Paulo, 2005.
____________. A intuição filosófica; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural,
São Paulo, 1979.
____________. A Consciência e a Vida; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural,
São Paulo, 1979.
____________. A Alma e o Corpo; Col. Os Pensadores. Ed. Abril Cultural,
São Paulo, 1979.
CHAUI, M. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa;
Companhia das letras, São Paulo, 1999.
ESPINOSA, B. Ética; Col. Os Pensadores, Ed. Nova cultural, São Paulo, 2000.
____________. Tratado da Correção do Intelecto; Col. Os Pensadores, Ed. Nova
Cultural, São Paulo, 2000
____________. Correspondência; Col. Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, São
Paulo, 2000
MALEBRANCHE. Œuvres II, Ed. Gallimard, Paris, 1992.
ONATE, Alberto M. Nietzsche/Descartes: o cogito em questão. In Dissertatio,
nº 9, 1999
PRADO JUNIOR, BENTO. Presença e Campo Transcendenta:l consciência e
negatividade na filosofia de Bérgson, EDUSP, São Paulo, 1988.
SANTOS, Marcos A. Silvestre, Tempo Consciência e vida na filosofia de
Bérgson, [Texto inédito, 2007].
SPINOZA, B. Correspondência; ed. Ailanza Editorial, Madrid, 1998.
*
Texto apresentado no Cólquio Internacional Henri Bergson, 2007, Rio de
Janeiro. 100 anos da Evolução Criadora. Rio de Janeiro, 2007.
[1]
O
leitor poderá notar que não há referências diretas ao texto de
Descartes, portanto, talvez estejamos combatendo um fantasma.
Justificamos a ausência dos textos de Descartes por meio do tempo que
dispomos para efetuar uma comunicação. Caso tivéssemos efetuado
referências diretas, ou reconstituído todos os passos cartesianos em sua
formulação de um conceito de sujeito, o texto teria se tornado muito
complexo. Outra justificativa encontra apoio em um texto de Alquié, o
qual afirmar que um filósofo nunca combate outro filósofo, mas aquilo
que entendeu da filosofia do outro, sua ânsia não é a de encontrar a
coerência do sistema alheio (como o historiador da filosofia deve
fazer), mas sim mostrar suas incoerências, para a partir daí construir
sua própria filosofia. Cf. ALQUIÉ, Ferdinand. Significação e filosofia, p.23-25.
[2]
PRADO JUNIOR, BENTO. Presença e Campo Transcendenta:l consciência e negatividade na filosofia de Bérgson, p.207.
[9]
PRADO JR.. Presença e Campo Transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bérgson, p.165.
[10]
Já na primeira Entretien Malebranche mostra o cogito sem efetuar todo o processo da dúvida, cogito é motrado em três linhas. Cf. MALEBRANCHE. Entretiens sur la métaphysique, sur la religion, et sur la mort. p.672.
SANTOS, MARCOS AURÉLIO SILVESTRE. Tempo Consciência e vida na filosofia de Bérgson. (trata-se de um texto inédito, portanto, não é possível oferecer as referências).
[23]
CHAUI, M. A Nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. p.282.
Fonte: Espinosa Filosofia
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