PICICA: "A primeira coisa que vem à cabeça da maioria das pessoas quando se
trata de resolver conflitos em coletividade é pensar em normas ou leis
mais severas capazes de punir com “eficácia” para controlar as pessoas. A
culpa é sempre da norma ou da lei que é falha e não puni como deveria
punir, é como se toda a complexa atividade das relações interpessoais
fosse reduzida à passividade, à espera de algo que venha de cima para
resolver nossos problemas.
A modernidade matou Deus e intensificou uma racionalização sobre a
vida. A produção de normas e leis passou a ser em escala sem
precedentes, toda a vida passa a ser atravessada, de algum modo, por
alguma palavra regulamentadora. Em suma, uma das questões implicadas com
a “morte de Deus” (ver Deus está morto! (Aforismo 125 | Nietzsche))
no pensamento de Nietzsche é que a razão – portanto, o homem e sua
cognição – destrona as leis enquanto divinas. Na história do pensamento
ocidental a razão ocupa um lugar de adoração à parte. Coube à razão, a
partir de suas categorias, colocar um papel de parede sobre a vida e
dizer eis aí o mundo! É verdade que tudo isso está de maneira
muito simplificada aqui, há várias perspectivas para se falar de razão,
no entanto, busquemos aqui focar, sobretudo, em uma razão instrumental que de maneira dominante tomou conta de nós."
Autoritarismo, capitalismo e o defunto de Deus
O capitalismo se coloca até mesmo como antiautoritário, no entanto, nunca o controle foi tão efetivo sobre a vida. Clama-se por mais leis, normas e regras como formas de gerir a vida. Deus morreu, não cuidamos do defunto e a pedra dos dez mandamentos há muito que foi estilhaçada, suas partículas dissolvidas em um caldo global e derramado sobre o mundo, cada centímetro quadrado de nossas “almas” hoje “contém” mandamentos em formas micro, sutis, leves. Acúmulos que vamos chamando de convenções, regrinhas de bem-comportado para o convívio e bem-estar de… todos! No lugar da criação de vidas possíveis dispomos de uma normatização sobre a vida. Acredita-se que a falta de normatização da vida implicaria em uma queda na violência, no entanto, o desejo por mais e mais normas já é justamente a violência instaurada através de um paradigma de guerra onde qualquer um pode ser o inimigo. Mais do que instaurar amizades, instaura a inimizade como ética entre as pessoas, uma legião de indivíduos preocupados o tempo inteiro em demarcar fronteiras frente às multiplicidades que o ameaçam de fora.
Se tomarmos como referência as sociedades disciplinares e as sociedades de controle descritas e problematizadas, respectivamente, por Foucault e Deleuze, situamos o autoritarismo como elemento fundamental da disciplina, isto é, próprio da sociedade disciplinar. Nas sociedades de controle, porém, a palavra autoritária por si só não consegue manter-se.
Não quer dizer que o autoritarismo deixou de existir, mas que seus meios de se fazer enunciar e executar são outros.
Para
além de pensar a norma enquanto uma categoria do direito é perceber o
quanto foi se enraizando em nós um próprio modo de pensar a partir da
norma.
Se antes os autoritários tinham figurinos certos e visíveis, hoje a
figura do autoritário, por si só, não representa poder. O autoritarismo
mudou de lugar, passou a operar de outras maneiras, até seu vocabulário e
nomes de referência mudaram, aliás, autoritarismo é um termo
cafona demais para o capitalismo quando tudo se passa em tons suaves de
bem-estar para todos – os efeitos autoritários sobre a vida nunca foram
tão eficazes.
A primeira coisa que vem à cabeça da maioria das pessoas quando se trata de resolver conflitos em coletividade é pensar em normas ou leis mais severas capazes de punir com “eficácia” para controlar as pessoas. A culpa é sempre da norma ou da lei que é falha e não puni como deveria punir, é como se toda a complexa atividade das relações interpessoais fosse reduzida à passividade, à espera de algo que venha de cima para resolver nossos problemas.
A modernidade matou Deus e intensificou uma racionalização sobre a vida. A produção de normas e leis passou a ser em escala sem precedentes, toda a vida passa a ser atravessada, de algum modo, por alguma palavra regulamentadora. Em suma, uma das questões implicadas com a “morte de Deus” (ver Deus está morto! (Aforismo 125 | Nietzsche)) no pensamento de Nietzsche é que a razão – portanto, o homem e sua cognição – destrona as leis enquanto divinas. Na história do pensamento ocidental a razão ocupa um lugar de adoração à parte. Coube à razão, a partir de suas categorias, colocar um papel de parede sobre a vida e dizer eis aí o mundo! É verdade que tudo isso está de maneira muito simplificada aqui, há várias perspectivas para se falar de razão, no entanto, busquemos aqui focar, sobretudo, em uma razão instrumental que de maneira dominante tomou conta de nós.
Para além de pensar a norma enquanto uma categoria do direito é perceber o quanto foi se enraizando em nós um próprio modo de pensar a partir da norma, uma estado em nós. A normatividade, de alguma maneira, está impregnada em nós, ao nosso redor, nas reuniões de condomínios, nas escolas e faculdades, na vizinhança, nas organizações entre pessoas, em situações genéricas envolvendo um agrupamento de pessoas e consigo mesmo. A solidão enquanto um negativo do século passa por esses efeitos da normatividade da vida, algo está fora de controle para alguém estar só em uma sociedade que nos obriga a ter amigos espalhados pelo mundo. O chamado “antissocial” e suas variantes também só encontra sentido enquanto categoria psiquiátrica a partir de uma sociedade disciplinar.
Nas situações mais simples do nosso cotidiano que envolva algum
conflito logo vem o desejo de regulamentação – será que se pretende uma
vida sem conflitos? A gerência dos conflitos a partir de nós,
compreendendo a singularidade de cada um e a multiplicidade do nosso
meio é praticamente impensável para quem não consegue enxergar além da
disciplina e do controle.
Inverter a questão e dizer que estamos sobrecarregados de normas e regras e ainda assim os problemas continuam aí não é o suficiente para abrir algumas frestas no obtuso “pensar a partir da norma”, como resposta invoca-se a eficácia da norma, que no caso costuma ser compreendida em termos de o quão severa é a punição.
Mais do que um termo de vocabulário rebelde o antiautoritarismo é
fundamental para o funcionamento do capitalismo e suas bases de
cooperação. Mas a questão não é tão simples assim, no limite, o
autoritarismo sabe estar entre nós de maneira muito suave. Mais do que
marcar a carne e os ossos em praça pública para servir de exemplo ele
marca o afeto, o tempo e o espaço sem precisar chamar a atenção com
coroas e armas.
O autoritário caracterizado por um figurante não tem mais validade por ele mesmo, sabe que ninguém lhe dá mais ouvido. As emblemáticas formas do poder são desfiguradas e descaracterizadas, o capitalismo não quer obrigar ninguém a fazer nada que não queira, gasta-se muito criando instâncias “panópticas” no mundo atual, e isso dá muita visibilidade ao poder, e se tem algo que o poder aprecia muito é ocultar suas relações de dominação. O quão efetiva não é uma dominação que sequer é vista como dominação?
Nada de inscrever leis em tábuas de pedras, muito menos em forma de
decálogos, o que chama atenção demais e torna o autoritarismo evidente.
Internalizamos mais do que dez mandamentos, internalizamos um modo de existir a partir de regras e normas, enfim, um modo de buscar sempre uma referência externa que fale por nós. Se o homem deveria ser o figurante de sua própria vida ele tem sido um figurante que carrega consigo muitas vozes que lhe sopram, ao mesmo tempo, sobre múltiplos papéis que ele deveria assumir. E ser figurante nessa posição só pode resultar em vidas despotencializadas clamando por normatizações.
Pegando alguns fios de pensamento de Nietzsche e modificando-os um pouco, podemos dizer que a alma moderna metamorfoseou-se em um camelo (ver Zaratustra – Das três metamorfoses) e carrega imensos volumes de dados prontos para serem codificados, descodificados e recodificados conforme as travessias contemporâneas de aclimatação afetiva árida e desertificada. Também como camelo, a alma moderna se ajoelha, e recebe dados e mais dados diariamente para se atualizar com os mais novos códigos supostamente necessários para se evitar as ameaças do imprevisível. Nossos corpos se alegram com as possibilidades de longas travessias sem se utilizar das próprias forças físicas, a alma carrega o peso e cansa o corpo, e enquanto isso, sentado sobre as poltronas e sofás de primeira classe, munido de controles e gadgets, o homem parece não entender o motivo do cansaço que ainda sente. Os próprios reflexos de uma vida separada em “corpo” e “alma” que ainda não foi totalmente superada o faz procurar pelas marcas visíveis de um corpo-cansado, afinal, sofrer fora da normatização é pior, mais fácil é sofrer sob a tutela de uma semiótica advinda das polícias da saúde mental.
A arte de metamorfosear, de fazer o visível se dissolver em micropartículas invisíveis, de fazer uma tábua de pedra se liquidificar… as múltiplas maneiras de se fazer marketing sobre a vida sabe muito bem fazer um Hitler se passar como um pai de família sorrindo ao lado de sua bela esposa correndo pelos campos de lírios com um casal de filhos de enternecer os corações dos espectadores mais sisudos.
Não falo só do marketing enquanto campo de um saber específico situado em um mercado. Falo de um marketing generalizado que assistimos hoje para suavizar, persuadir, dissolver, dispersar, enfim, transformar. O autoritarismo é transformado. A religião, a política, a moral, a palavra dos adultos e dos pais, o professor disciplinar, em suma, tudo o que antes tinha valor de autoridade por si só passa por uma modificação, por assim dizer, antiautoritária.
Todo enunciado deve levar em conta a cooperação e o pertencimento das subjetividades. Colocando-se como antiautoritário, o capitalismo procura desfazer todo autoritarismo, não temos mais uma lista com “dez mandamentos”, não estamos mais em vias de conseguir contar quantas “regrinhas” temos agindo em nós através de muitas vozes que falam em nome do bem. O capitalismo desfaz as palavras autoritárias da família, da religião, da moral e da política e suaviza, seduz, legitima, torna consensual a captura. E ao mesmo tempo em que captura ele oferece o sentimento de liberdade, só que essa liberdade rapidamente começa apresentar seus limites porque se esbarra em opções de escolhas que são pré-definidas.
A sexualidade, por exemplo, que
hoje se apresenta com muito mais possibilidades que antes, ainda é uma
sexualidade pré-definida em opções de escolhas disponíveis. O sentimento
de liberdade que perfuma pelos ares do capitalismo é traiçoeiro pois
impede a criação de possíveis. Quantos modos de sexualidade existiriam
se a captura não fosse um modo de operação do capitalismo? Certamente,
nós não teríamos quatro letras para identificar a sexualidade que foge a
uma heteronormatividade.
A vida é múltipla e ao mesmo tempo singular, as possibilidades são
inúmeras enquanto nosso aparato é capenga para lidar com o que é
múltiplo e ao mesmo tempo singular, somos herdeiros de toda uma maneira
de viver explicitamente referenciada nas vias únicas do cristianismo, é
algo que vai além de ser adepto ou não de uma crença. De um
autoritarismo evidente passamos para um autoritarismo nada evidente,
pelo contrário, um “autoritarismo” que se veste com as roupagens da
liberdade, da paz e do bem comum. A dinâmica da multiplicidade é
indigesta ao capitalismo.
Incapaz de integrar o múltiplo o capitalismo cria as exceções e, posteriormente, reintegra as exceções transformando em modo de vida normatizado. Esse é o grande perigo dos movimentos minoritários, ser capturado e passar a desejar, também, os poderes. Deleuze dizia que o capitalismo não tem mais um outro regime ou um outro estado enquanto inimigo, o inimigo hoje pode ser qualquer um, em geral, as subjetividades minoritárias. A máquina de guerra capitalista faz das diferenças que ainda não foram capturadas e integradas na normatização um desertor ou sabotador.
Ora, se o capitalismo é incapaz de integrar a multiplicidade, nada mais elementar em nós do que um constante paradigma de guerra. Guerra contra quem? Contra as minorias de todos os tipos, “…não somente as que pesam sobre os trabalhadores, mas também as que pesam sobre as mulheres, as crianças, as minorias sexuais, etc., as que pesam sobre as sensibilidades atípicas, as que pesam sobre o amor, aos sons, às cores, às ideias… (GUATTARI, Revolução Molecular).
São tempos em que a potência da vida é estimulada diretamente a um poder de racionalização da vida. Estamos distantes de uma estimulação que nos abra ao afetivo, o afetivo só é aberto quando abandonamos o previsível e o controlável. Apesar de o capitalismo entoar uma vida livre sob as mais diversas colorações (não se apegue! não crie vínculos! faça mil coisas ao mesmo tempo! seja diferente! …), é uma vida que passa pela norma de um dever ao gozo subordinada a opções pré-formatadas pelo poder de normatização e regulamentação sobre a vida.
Capturado, o desejo quer guerra. O paradigma da guerra clama por mais leis, normas e regras. Somente uma abertura ao afetivo sustentada por um corpo com capacidade de se colocar em diferenciação começaria por nos nos colocar em condições de nos permitir o abandono do previsível e do controlável, não seria buscando por modos de vida pré-definidos, supostamente mais qualificados (ver As armadilhas da qualidade de vida) que iremos conquistar essa abertura.
Cláudio Ulpiano dizia que só se estimula a potência econômica (ver Só se estimula a potência no campo econômico), ora, um corpo assim se apaixona pelo controle. Por outro lado, um corpo estimulado à potência do múltiplo poderia usar a razão para cartografar bons encontros (ver Por uma ética das paixões alegres), abandonaria o clamor por mais normas e se abriria às possibilidades de criar e gerir a própria vida a partir de composições com outros corpos também potentes.
Ao contrário do que se pensa, sair da lei não é cair em um estado de violência, isso já é uma interpretação cristalizada a partir do referencial da lei. O desejo por mais e mais leis, mais e mais normas, mais e mais regras já é justamente a violência instaurada através de um paradigma de guerra onde qualquer um pode ser o inimigo. Abandonamos a criação de vidas possíveis e passamos a acreditar em direitos, então passamos a pedir por mais e mais direitos. No bojo, vem vingança, vem ressentimento, vem culpa, vem um desejo de passar a exigir que “todo mundo” ou “ninguém” também se enquadre dentro da nossa própria fraqueza – é o coletivo de corpos fracos e despotencializados que fazem o poder. Mais do que instaurar amizades, instaura a inimizade como ética entre as pessoas, uma legião de indivíduos preocupados o tempo inteiro em demarcar fronteiras frente às multiplicidades que o ameaçam de fora, e como as fronteiras não podem ser fixadas o homem gasta toda sua energia se cercando de formas de controle sobre a diferenciação sem se dar conta de que o cerco é contra a própria vida.
Imagem: Angelus Novus. Paul Klee
A primeira coisa que vem à cabeça da maioria das pessoas quando se trata de resolver conflitos em coletividade é pensar em normas ou leis mais severas capazes de punir com “eficácia” para controlar as pessoas. A culpa é sempre da norma ou da lei que é falha e não puni como deveria punir, é como se toda a complexa atividade das relações interpessoais fosse reduzida à passividade, à espera de algo que venha de cima para resolver nossos problemas.
A modernidade matou Deus e intensificou uma racionalização sobre a vida. A produção de normas e leis passou a ser em escala sem precedentes, toda a vida passa a ser atravessada, de algum modo, por alguma palavra regulamentadora. Em suma, uma das questões implicadas com a “morte de Deus” (ver Deus está morto! (Aforismo 125 | Nietzsche)) no pensamento de Nietzsche é que a razão – portanto, o homem e sua cognição – destrona as leis enquanto divinas. Na história do pensamento ocidental a razão ocupa um lugar de adoração à parte. Coube à razão, a partir de suas categorias, colocar um papel de parede sobre a vida e dizer eis aí o mundo! É verdade que tudo isso está de maneira muito simplificada aqui, há várias perspectivas para se falar de razão, no entanto, busquemos aqui focar, sobretudo, em uma razão instrumental que de maneira dominante tomou conta de nós.
Para além de pensar a norma enquanto uma categoria do direito é perceber o quanto foi se enraizando em nós um próprio modo de pensar a partir da norma, uma estado em nós. A normatividade, de alguma maneira, está impregnada em nós, ao nosso redor, nas reuniões de condomínios, nas escolas e faculdades, na vizinhança, nas organizações entre pessoas, em situações genéricas envolvendo um agrupamento de pessoas e consigo mesmo. A solidão enquanto um negativo do século passa por esses efeitos da normatividade da vida, algo está fora de controle para alguém estar só em uma sociedade que nos obriga a ter amigos espalhados pelo mundo. O chamado “antissocial” e suas variantes também só encontra sentido enquanto categoria psiquiátrica a partir de uma sociedade disciplinar.
A
gerência dos conflitos a partir de nós, compreendendo a singularidade
de cada um e a multiplicidade do nosso meio é praticamente impensável
para quem não consegue enxergar além da disciplina e do controle.
Inverter a questão e dizer que estamos sobrecarregados de normas e regras e ainda assim os problemas continuam aí não é o suficiente para abrir algumas frestas no obtuso “pensar a partir da norma”, como resposta invoca-se a eficácia da norma, que no caso costuma ser compreendida em termos de o quão severa é a punição.
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O autoritário caracterizado por um figurante não tem mais validade por ele mesmo, sabe que ninguém lhe dá mais ouvido. As emblemáticas formas do poder são desfiguradas e descaracterizadas, o capitalismo não quer obrigar ninguém a fazer nada que não queira, gasta-se muito criando instâncias “panópticas” no mundo atual, e isso dá muita visibilidade ao poder, e se tem algo que o poder aprecia muito é ocultar suas relações de dominação. O quão efetiva não é uma dominação que sequer é vista como dominação?
Leis, sob a tutela de um bem comum, são uma das principais formas de o estado exercer o poder através das instituições. Mas o que está em questão é uma ampla normatização e regulamentação da vida, um modo de desejar leis, normas e regras que se exerce não só por instituições mas também através de cada um de nós através de modos de pensar e existir cada vez mais incapazes de criar a própria vida. Normatizar e regulamentar a vida adquiriu um status de legitimação tal que já não se questiona a existência da lei, questionamos a insuficiência desta, e assim se clama por mais e mais leis para corrigir – corrigir a vida!Das leis de uma nação às regras mais sutis com que nos convencionamos pelos compassos de nosso mal-estar diário, o controle tem funcionado enquanto uma parte de nós mesmos, o controle de todos contra todos através de olhares, vozes, gestos e signos. Uma “alma” esvaziada de caricaturas de céu e inferno, mas preenchida com uma dinâmica de funcionamento que opera dependendo demais de um plano exterior e sente mal-estar quando se vê sem muletas transcendentes, e tudo isso vivido com a marca da eufórica e falsa liberdade sem culpa e sem ressentimento.
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A pedra dos dez mandamentos há muito que foi estilhaçada, suas partículas dissolvidas em um caldo global e derramado sobre o mundo, cada centímetro quadrado de nossas “almas” hoje “contém” mandamentos em formas micro, sutis, leves. Acúmulos que vamos chamando de convenções, regrinhas de bem-comportado para o convívio e bem-estar de… todos!Nós superamos a pedra para entrar realmente na era dos microchips, tudo parece invisível aos olhos. A questão não é que ficamos sem referências, pelo contrário, as referências foram destronadas, a sólida figura de deus foi liquidificada e pulverizada sobre a vida (ver sobre Modernidade Líquida). A voz de deus, antes absoluta, foi internalizada em muitas vozes, e muitas vozes sem figurante. Se simbolicamente matamos deus, o cheiro do defunto se espalhou pelo mundo, algo do qual cuidamos muito pouco.
Internalizamos mais do que dez mandamentos, internalizamos um modo de existir a partir de regras e normas, enfim, um modo de buscar sempre uma referência externa que fale por nós. Se o homem deveria ser o figurante de sua própria vida ele tem sido um figurante que carrega consigo muitas vozes que lhe sopram, ao mesmo tempo, sobre múltiplos papéis que ele deveria assumir. E ser figurante nessa posição só pode resultar em vidas despotencializadas clamando por normatizações.
Pegando alguns fios de pensamento de Nietzsche e modificando-os um pouco, podemos dizer que a alma moderna metamorfoseou-se em um camelo (ver Zaratustra – Das três metamorfoses) e carrega imensos volumes de dados prontos para serem codificados, descodificados e recodificados conforme as travessias contemporâneas de aclimatação afetiva árida e desertificada. Também como camelo, a alma moderna se ajoelha, e recebe dados e mais dados diariamente para se atualizar com os mais novos códigos supostamente necessários para se evitar as ameaças do imprevisível. Nossos corpos se alegram com as possibilidades de longas travessias sem se utilizar das próprias forças físicas, a alma carrega o peso e cansa o corpo, e enquanto isso, sentado sobre as poltronas e sofás de primeira classe, munido de controles e gadgets, o homem parece não entender o motivo do cansaço que ainda sente. Os próprios reflexos de uma vida separada em “corpo” e “alma” que ainda não foi totalmente superada o faz procurar pelas marcas visíveis de um corpo-cansado, afinal, sofrer fora da normatização é pior, mais fácil é sofrer sob a tutela de uma semiótica advinda das polícias da saúde mental.
A arte de metamorfosear, de fazer o visível se dissolver em micropartículas invisíveis, de fazer uma tábua de pedra se liquidificar… as múltiplas maneiras de se fazer marketing sobre a vida sabe muito bem fazer um Hitler se passar como um pai de família sorrindo ao lado de sua bela esposa correndo pelos campos de lírios com um casal de filhos de enternecer os corações dos espectadores mais sisudos.
Não falo só do marketing enquanto campo de um saber específico situado em um mercado. Falo de um marketing generalizado que assistimos hoje para suavizar, persuadir, dissolver, dispersar, enfim, transformar. O autoritarismo é transformado. A religião, a política, a moral, a palavra dos adultos e dos pais, o professor disciplinar, em suma, tudo o que antes tinha valor de autoridade por si só passa por uma modificação, por assim dizer, antiautoritária.
Todo enunciado deve levar em conta a cooperação e o pertencimento das subjetividades. Colocando-se como antiautoritário, o capitalismo procura desfazer todo autoritarismo, não temos mais uma lista com “dez mandamentos”, não estamos mais em vias de conseguir contar quantas “regrinhas” temos agindo em nós através de muitas vozes que falam em nome do bem. O capitalismo desfaz as palavras autoritárias da família, da religião, da moral e da política e suaviza, seduz, legitima, torna consensual a captura. E ao mesmo tempo em que captura ele oferece o sentimento de liberdade, só que essa liberdade rapidamente começa apresentar seus limites porque se esbarra em opções de escolhas que são pré-definidas.
Como
fica o plano da criação se estamos visados o tempo inteiro por uma
regulamentação que nos faz constranger diante de modos de vida que não
estão chancelados pela sociedade?
Toda forma autoritária é uma barreira à criação, não existe autoridade necessária.Se o caos social é apontado caso a vida não seja regulamentada, se a catástrofe é apontada quando a norma não está presente é porque estamos ainda muito longe de viver uma vida que é múltipla e ao mesmo tempo singular. A catástrofe já está presente e em meio a uma explosão de normas e regras. Não será com a razão, essa que foi colocada no lugar da fé como qualificada para garantir um domínio sobre a natureza e progredir a vida, que iremos conseguir deixar de funcionar nesse modo quase que obsessivo de querer regulamentar os nossos conflitos.
A norma nunca incide só sobre um conflito isolado, antes de tudo ela incide sobre os afetos, vai arruinando nossa capacidade de criação e experimentação aos poucos, tornando-nos mais exigentes e colados a uma racionalização de vida em que os próprios saberes agem enquanto normas.Das fronteiras de um autoritarismo explícito (cristianismo) ao implícito (capitalismo nas sociedades de controle), estamos em um mundo global onde as velhas dicotomias políticas funcionam mais como fachadas (ver Para além de uma política paranoica, por uma política imanente), não estamos em vias de separar as pessoas em simples classes burguesas e proletárias, o capitalismo é mais do que um sistema econômico e político, é um máquina de captura do desejo, implicando em modos de perceber, sentir, pensar e gerir a vida, daí que resistir é uma questão vital.
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Incapaz de integrar o múltiplo o capitalismo cria as exceções e, posteriormente, reintegra as exceções transformando em modo de vida normatizado. Esse é o grande perigo dos movimentos minoritários, ser capturado e passar a desejar, também, os poderes. Deleuze dizia que o capitalismo não tem mais um outro regime ou um outro estado enquanto inimigo, o inimigo hoje pode ser qualquer um, em geral, as subjetividades minoritárias. A máquina de guerra capitalista faz das diferenças que ainda não foram capturadas e integradas na normatização um desertor ou sabotador.
Não se trata de negar a norma por negar. Trata-se de resistências que poderiam nos abrir a outros possíveis, e a gente sabe que podemos abrir rachaduras na grande normose diária e sentir galáxias inteiras, com planetas e estrelas explodindo em nós. É uma questão de vitalidade, de permitir mais passagem de força vital, porque quando sentimos o tesão criador em nós…Resistir ao capitalismo não se reduz meramente a uma negação política e econômica, é cuidar da força desejante em nós para que não sejamos meros representantes do desejado. É um processo de criação. Criar é resistir, pois as linhas de fuga criadoras correm inúmeros riscos diante da máquina de guerra capitalista. As subjetividades minoritárias podem ser capturadas e normatizadas ou até mesmo serem caracterizadas como tendo fins políticos que objetivam a guerra – impossível aqui não fazer o seguinte paralelo: a castração psicanalítica é uma captura, castrar é fazer funcionar dentro da norma.
Ora, se o capitalismo é incapaz de integrar a multiplicidade, nada mais elementar em nós do que um constante paradigma de guerra. Guerra contra quem? Contra as minorias de todos os tipos, “…não somente as que pesam sobre os trabalhadores, mas também as que pesam sobre as mulheres, as crianças, as minorias sexuais, etc., as que pesam sobre as sensibilidades atípicas, as que pesam sobre o amor, aos sons, às cores, às ideias… (GUATTARI, Revolução Molecular).
São tempos em que a potência da vida é estimulada diretamente a um poder de racionalização da vida. Estamos distantes de uma estimulação que nos abra ao afetivo, o afetivo só é aberto quando abandonamos o previsível e o controlável. Apesar de o capitalismo entoar uma vida livre sob as mais diversas colorações (não se apegue! não crie vínculos! faça mil coisas ao mesmo tempo! seja diferente! …), é uma vida que passa pela norma de um dever ao gozo subordinada a opções pré-formatadas pelo poder de normatização e regulamentação sobre a vida.
Capturado, o desejo quer guerra. O paradigma da guerra clama por mais leis, normas e regras. Somente uma abertura ao afetivo sustentada por um corpo com capacidade de se colocar em diferenciação começaria por nos nos colocar em condições de nos permitir o abandono do previsível e do controlável, não seria buscando por modos de vida pré-definidos, supostamente mais qualificados (ver As armadilhas da qualidade de vida) que iremos conquistar essa abertura.
Cláudio Ulpiano dizia que só se estimula a potência econômica (ver Só se estimula a potência no campo econômico), ora, um corpo assim se apaixona pelo controle. Por outro lado, um corpo estimulado à potência do múltiplo poderia usar a razão para cartografar bons encontros (ver Por uma ética das paixões alegres), abandonaria o clamor por mais normas e se abriria às possibilidades de criar e gerir a própria vida a partir de composições com outros corpos também potentes.
Ao contrário do que se pensa, sair da lei não é cair em um estado de violência, isso já é uma interpretação cristalizada a partir do referencial da lei. O desejo por mais e mais leis, mais e mais normas, mais e mais regras já é justamente a violência instaurada através de um paradigma de guerra onde qualquer um pode ser o inimigo. Abandonamos a criação de vidas possíveis e passamos a acreditar em direitos, então passamos a pedir por mais e mais direitos. No bojo, vem vingança, vem ressentimento, vem culpa, vem um desejo de passar a exigir que “todo mundo” ou “ninguém” também se enquadre dentro da nossa própria fraqueza – é o coletivo de corpos fracos e despotencializados que fazem o poder. Mais do que instaurar amizades, instaura a inimizade como ética entre as pessoas, uma legião de indivíduos preocupados o tempo inteiro em demarcar fronteiras frente às multiplicidades que o ameaçam de fora, e como as fronteiras não podem ser fixadas o homem gasta toda sua energia se cercando de formas de controle sobre a diferenciação sem se dar conta de que o cerco é contra a própria vida.
Imagem: Angelus Novus. Paul Klee
Sobre o autor
Adriel Dutra
Mora em Bauru, tem formação em psicologia, mas antes de tudo é
formado pelos amores e desamores que vive, pelos livros, pelas músicas,
pelos autores, pelos filmes, pelas poesias e pela arte que o fizeram,
principalmente, sentir. Tem como hobbie ficar observando detalhes que
ninguém costuma ver, encontra-se beleza demais nessas frestas.
Fonte: LETRA & FILOSOFIA
Fonte: LETRA & FILOSOFIA
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