A eterna traição dos brancos
por Antonin Artaud
Tradução: Vinícius N. Honesko | Nota do tradutor: Em
1936 Artaud permanece uma semana em Havana, onde escreve vários
artigos para jornais cubanos. Este texto, o único reencontrado, foi
publicado em Carteles, em 1º de novembro de 1936. A edição, nas Obras, foi feita por Marie Dézon e Philippe Sollers. Cf. ARTAUD, Antonin. L’Éternelle Trahison des Blans. In.: Oeuvres. Paris, Gallimard. 2004. pp. 681-683.
Cansados de serem deuses, periodicamente os homens se
lembram de que são homens, e começam a exaltar tal condição de homens
como se ela fosse superior àquela dos deuses.
Não sei se já foi observado que, em todos os tempos,
no instante em que os homens se reconhecem apenas como tais e nada
mais, a civilização, por sua vez, colapsa, como se à vida do mundo
fosse preciso, para que ela possa se manter à máxima altura de seu
destino, o suporte da imaginação exacerbada dos homens.
As crises do humanismo, com um notável paralelismo,
sempre correspondem às crises da civilização. A coincidência, é preciso
que se diga, é estranha. Quando o estado da civilização já é de
desespero e quando a ideia de cultura já está em via de total
regressão, os homens então põem-se a falar de humanismo, como se o
homem tivesse poder de escapar da Natureza, como se a anarquia dominante
não tivesse acontecido, antes de tudo, por causa dessa ideia estreita e
aviltante do homem que, através dos séculos, não cessou de se camuflar
sob o termo humanismo: do humanismo do Renascimento ao humanismo
materialista de hoje.
Humanismo sempre significou que o homem reduzia a
Natureza ao seu talante, que ele fazia do patrão “homem” uma espécie de
medida comum, tanto física quanto moral, à qual, de maneira periódica,
deviam se referir todas as coisas do mundo.
E tal momento sempre é aquele em que se propaga o
culto de uma faculdade especificamente humana, a razão, e no qual o
duplo ponto de vista, da moral e da psicologia humanas, estende suas
crueldades em todos os sentidos.
É desconcertante perceber que fora do homem a moral
não existe e que o ponto de vista materialista, que procura fazer da
razão humana uma sorte de chefe universal, chega apenas a um
servilismo, o servilismo do homem diante da Natureza, pois o homem se
faz escravo de sua própria moral e prisioneiro dos tabus que ele mesmo
criou.
Por sua vez, essa concepção de moral da natureza e da
vida – segundo a qual o homem sente em si mesmo sua própria vida como
distinta da Natureza – corresponde a uma ideia dualista das coisas. E
sempre vimos nascer o humanismo nas épocas que separaram o espírito da
matéria e a consciência da vida.
Tal concepção é europeia. O mundo branco, através dos séculos, sempre fez dessa particularização uma especialidade.
Quando na Europa aconteceram guerras religiosas,
estas sempre foram feitas contra a eterna unidade do espírito. A guerra
dos albigenses foi contra os partisans da vida unitária enquanto, no curso das guerras religiosas na Índia, foram os partisans da dualidade da vida e da preexistência da matéria que, invariavelmente, acabaram por ser massacrados.
Através dos tempos, o mundo hindu manifestou uma
inextirpável crença na sua ideia monista do homem, da Natureza, do
espírito e da vida.
E o budismo herético foi extinto na Índia pelos brâmanes ao longo de guerras que duraram duzentos ou trezentos anos.
Buda, o grande Buda, foi um traidor. É considerado como traidor na Índia, e os brâmanes não deixam de proclamar isso.
Não é no Renascimento do século XVI que de modo
próprio retorna a infantilidade pouco invejável dessa diminuição do
homem e dessa ideia anárquica da vida. Havia na Grécia, no século IV
antes de Cristo, uma escola de filósofos céticos que colocavam a vida à
medida do homem e qualificavam como contos pueris os mitos divinos
sobre os quais a autêntica civilização da Grécia tinha se edificado,
mitos estes em que a vida subterrânea e mágica tinha feito fermentar o
drama esquiliano.
De Ésquilo a Eurípides o mundo grego seguiu uma curva
descendente. Nas escolas contamos que o homem, graças a Eurípides,
pôde ter uma ideia mais justa e racional da Natureza. A verdade é que
Eurípides destruiu a consciência da Natureza com sua concepção
mesquinha e humanizada da vida. Os ignorantes falam da eterna cultura
da Grécia e sobre o mesmo plano colocam Ésquilo, Sófocles e Eurípides,
sem ver o mundo que os separa e sem ver que os três nomes representam
as três etapas de uma curva funesta que conduziu, de século em século, o homem a renunciar seus poderes.
O termo “humanismo”, na realidade, nada mais significa que uma abdicação do
homem. Para os mitos divinos, o homem é o igual da Natureza, que ele
compreende sinteticamente; mas quando nasce o espírito analítico, o
homem imagina penetrar a Natureza e dissecar seus segredos, exatamente
como um cirurgião disseca um músculo ou separa os órgãos do corpo; de
modo que, no mesmo instante, assim como o cirurgião cessa de estar à
escuta do corpo, o homem perde seu contato com a Natureza, pois é
apenas pelo instinto que podemos penetrar a alma da Natureza. Diga-se o
que quiser contra o conhecimento instintivo, mas é ele que torna
possíveis todas as grandes invenções humanas. É a imaginação sem limites do
homem que em todos os tempos nutriu as civilizações. Cada vez que
reaparece o espírito racional, essa reaparição indica que um mundo vai
morrer. Ora, no espírito da raça branca, há uma tara que,
periodicamente, a leva a negar que a compreensão do mundo não pode se
limitar e a se concentrar num saber que talvez seja claro, mas inútil,
pois se apoia apenas em objetos mortos, os membros dispersos e
inanimados da Natureza.
A luta, hoje, está localizada entre o saber
ocidental, preciso e morto, e o saber confuso, mas que vive uma eterna
existência, do monismo oriental.
p.s.: Não devemos confundir a alta metafísica do
Oriente, tal como nos foi transmitida desde o século VIII antes de
Cristo, nas versões escritas dos Vedas (metafísica que une o espírito e
a matéria em um todo indestrutível, refletindo-se, por sua vez, por
partes, no mundo do Sangsara ou domínio da ilusão universal),
eu repito, é preciso não confundir essa alta metafísica monista com as
falsificações que nos são oferecidas pelo teosofismo inglês de H. –P
Blavatsky e Annie Besant. A escola teosófica é inglesa e representa o
esforço feito pelo Intelligence Service para meter seu nariz até nas doutrinas do Oriente.
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