Capitalistas, sim, mas zen...
Em seu episódio final de Guerra nas Estrelas, George Lucas não escapa da influência de uma versão ocidental do budismo, que nos permitiria aceitar e participar da engrenagem dos mercados, desde que mantendo uma distância interna
Slavoj Zizek
Filósofo, pesquisador na Universidade de Ljubljana (Eslovênia)
No momento crucial da saga de Guerra nas Estrelas, George Lucas estabelece um paralelo entre o indivíduo e a política
Revelando finalmente, em A Revanche de Sith (episódio III da “primeira trilogia”), o momento crucial de toda a saga de Guerra nas Estrelas(1) (a saber, a transformação do “amável” Anakin no “malvado” Darth Vader), George Lucas estabeleceu um paralelo entre o indivíduo e a política. Na escala do indivíduo, a explicação retoma uma espécie de budismo pop. “Ele [Anakin] transforma-se em Darth Vader porque se apega às coisas”, explica Lucas. “Ele não consegue separar-se de sua mãe. Ele não consegue se separar de sua namoradinha. Ele não consegue renunciar aos objetos. Esse apelo o torna ávido. E quando você é ávido, você está no caminho do lado obscuro, porque tem medo de perder o que possui(2).” A Ordem dos Jedi((3) aparece, em oposição a isso, como uma comunidade masculina fechada, proibindo qualquer ataque, como se fora uma nova versão da comunidade do Graal celebrada pelo compositor Richard Wagner em Parsifal.
A explicação política ainda é mais reveladora: “Como a República transformou-se em Império? (Questão paralela: como Anakin tornou-se Darth Vader?). Como uma democracia se transforma em ditadura? Não é porque o Império tenha conquistado a República, é por que o Império é a República(4)”. O Império nasce da corrupção inerente à República. Conta Lucas que: “Um belo dia, a princesa Leia e seus amigos acordaram dizendo uns aos outros: ‘Não é mais República, é Império. Nós somos os malvados(5)”.
Da nação ao império
Existem conotações contemporâneas de referência à Roma antiga nessa transformação de Estados-nações em Império global
Erraríamos se neglicenciássemos as conotações contemporâneas da referência à Roma antiga nessa transformação de Estados-nações em Império global. Logo, é preciso situar a problemática de Guerra nas Estrelas (a passagem da República ao Império) exatamente no contexto descrito por Antonio Negri e Michael Hardt no livro Império(6), e a passagem do Estado-nação a um Império mundial.
As alusões políticas em Guerra nas Estrelas são múltiplas e contraditórias. Elas conferem à série um poder “mítico”: mundo livre contra o Império do mal; debate sobre o Estado-nação convocando as teses de Pat Buchanan(7) ou de Jean-Marie Le Pen; contradição que leva pessoas da camada aristocrática (princesas, membros da Ordem elitista dos Jedi) a defender a República “democrática” contra o Império do Mal; e, finalmente, a tomada de consciência essencial de que “nós somos os malvados”.
O Império do Mal não está em outro lugar, como dizem esses filmes; seu aparecimento depende da maneira como nós, os ‘bons’, o revertemos. A questão concerne à atual “guerra contra o terrorismo”: como ela vai nos transformar? Um mito político não é uma narrativa dotada de significação política determinada, é um conteúdo vazio no qual depositamos muitas significações contraditórias. A Ameaça Fantasma, episódio I de Guerra nas Estrelas, fornece um índice crucial: as características “crísticas” do jovem Anakin – sua mãe sustenta que ele tenha nascido de uma “concepção imaculada”; a corrida que ele ganha evoca a célebre corrida de bigas de Ben Hur, essa “história do Cristo”.
Compaixão budista e amor cristão
A posição budista é, em síntese, a da indiferença, enquanto o amor cristão é uma paixão que introduz hierarquia na relação entre os seres
O universo ideológico de Guerra nas Estrelas remete ao universo pagão da Nova Era(8). É lógico, portanto, que a figura central de Mal faça eco à do Cristo. Na visão pagã, o aparecimento de Cristo é o supremo escândalo. Na medida em que diabolos (separar, dilacerar) é o contrário de symbolos (reunir, unificar), o próprio Cristo se torna uma figura diabólica no sentido de que ele traz “o gládio e não a paz” e perturba a unidade existente. Segundo o evangelista Lucas, Jesus teria declarado: “Se alguém vier a mim e não desprezar seu pai, sua mãe, sua esposa, seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até mesmo sua própria vida, ele não pode ser meu discípulo(9).”
É preciso considerar que a posição cristã tem natureza diferente da sabedoria pagã. O cristianismo dos primórdios considera o ato mais elevado aquilo que a sabedoria pagã condena como fonte de mal, ou seja, o gesto de separar, de dividir, ou de ligar-se a um elemento que compromete o equilíbrio de todos.
Isso significa que seria necessário opor a compaixão budista (ou taoísta(10)) ao amor cristão. A posição budista é, em síntese, a da indiferença – estado no qual todas as paixões são reprimidas –, enquanto que o amor cristão é uma paixão que visa introduzir uma hierarquia na ordem da relação entre os seres. O amor é violência – e não apenas no sentido do provérbio balcânico segundo o qual “se ele não me bate, ele não me ama”. A violência do amor resulta em arrancar um ser de seu contexto.
Confusão ideológica
O filme paga por sua fidelidade a temas da Nova Era, não apenas por sua confusão ideológica, mas também por sua mediocridade narrativa
Em março de 2005, o cardeal Tarcisio Bertone, em transmissão da Rádio Vaticano, fez uma declaração condenando com firmeza o romance O Código Da Vinci, de Dan Brown, acusado de ser baseado em mentiras e de propagar ensinamentos falsos (que Jesus teria se casado com Maria Madalena e tido descendentes...) O ridículo da atitude não nos pode fazer esquecer que o conteúdo de sua declaração está, no fundo, correto: O Código Da Vinci inscreve o cristianismo na Nova Era sob a rubrica do equilíbrio entre os princípios masculino e feminino.
Retornando à Vingança dos Siths, o filme paga por sua fidelidade a esses temas da Nova Era, não apenas por sua confusão ideológica, mas também por sua mediocridade narrativa: a transformação de Anakin em Darth Vader, momento capital de toda a saga, não atinge a grandeza trágica conveniente. Ao invés de se concentrar no orgulho de Anakin visto como desejo irresistível de intervir, de fazer o bem, de ir até o final pelos que ama (Amídala) e, em conseqüência, perder-se no lado obscuro, Anakin é apresentado simplesmente como um combatente indeciso, que escorrega para o mal ao ceder a tentação do poder e ao cair na dependência de um mal imperador. Dito de outra forma, George Lucas não tem força para estabelecer realmente os paralelos República – Império e Anakin-Darth Vader. É a obsessão de Anakin pelo mal que o transforma em monstro.
Que paralelos fazer? No momento em que a tecnologia e o capitalismo “europeus” triunfam em escala planetária, a herança judaico-cristã, como “superestrutura ideológica” parece ameaçada pelo assalto do pensamento “asiático” da Nova Era. O taoísmo é adequado para se tornar a ideologia hegemônica do capitalismo mundial. Uma espécie de “budismo ocidental”, se apresenta hoje como remédio contra o estresse da dinâmica capitalista. Ele permitiria que nos desligássemos, que mantivéssemos a paz interior e a serenidade, e funcionaria, na realidade, como um perfeito complemento ideológico.
Solução escapista
Em vez de tentar se adaptar, é melhor renunciar e “deixar ir”, mantendo certa distância interior em relação à aceleração do mundo tecnológico
As pessoas não são mais capazes de se adaptarem ao ritmo do progresso tecnológico e das transformações sociais que a acompanham. As coisas andam muito rápido. O recurso ao taoísmo ou ao budismo oferece uma saída. Em vez de tentar se adaptar ao ritmo das transformações, é melhor renunciar e “deixar ir”, mantendo certa distância interior em relação a essa aceleração, que não diz respeito ao núcleo mais profundo de nosso ser. Estaríamos quase tentados a utilizar novamente, agora, o clichê marxista de religião como “ópio do povo”, como suplemento imaginário à miséria terrestre. O “budismo ocidental” aparece, dessa forma, como a maneira mais eficaz de participar plenamente da dinâmica capitalista mantendo uma aparência de saúde mental.
Se precisássemos encontrar um elo com o Episódio III de Guerra nas Estrelas, ficaríamos tentados a propor o documentário de Alexander Oey, Sandcastles. Buddhism and Global Finance, (Castelos de Areia. O Budismo e as Finanças Mundiais), indicador maravilhosamente ambíguo da dificuldade de nossa situação ideológica atual. Mistura comentários do economista Arnoud Boot, da socióloga Saskia Sassen e do professor budista tibetano Dzongzar Khyentse Rinpoche.
Saskia Sassen e Arnoud Boot discutem sobre o alcance, o poder e os efeitos do sistema financeiro mundial. Os mercados de capitais podem, em poucas horas, fazer subir ou abaixar o valor das sociedades e de economias inteiras. Khyentse Rinpoche os enfrenta com considerações sobre a natureza da percepção humana: “Libertai-vos de suas amarras ao que não passa de uma percepção e não existe na realidade”, ele declara. Por outro lado, Saskia Sassen afirma: “O sistema financeiro mundial é essencialmente um conjunto de movimentos contínuos. Desaparece e reaparece”.
Exuberância ilusória
Que melhor prova do caráter não substancial da realidade do que uma gigantesca fortuna que pode se reduzir a nada em poucas horas?
Na visão do budista, a exuberância da riqueza financeira mundial é ilusória, apartada da realidade objetiva: o sofrimento humano engendrado pelas transações operadas nas salas dos mercados e conselhos administrativos invisíveis para a maioria de nós. Que melhor prova do caráter não substancial da realidade do que uma gigantesca fortuna que pode se reduzir a nada em poucas horas? Por que deplorar que as especulações sobre os mercados sejam “apartadas da realidade objetiva” quando o princípio fundamental da ontologia budista enuncia que não há “realidade objetiva”?
Esse documentário fornece, assim, a chave da A vingança de Sith. A lição crítica a aprender é que nós não devemos nos engajar de corpo e alma no jogo capitalista, mas que podemos fazê-lo... mantendo uma distância interna. Pois o capitalismo nos põe diante do fato de que a causa de nossa sujeição não é a realidade objetiva enquanto tal (que não existe), mas nosso desejo, nossa avidez pelas coisas materiais e o apego excessivo que depositamos nelas. Por conseguinte, o que nos resta a fazer é renunciar ao nosso desejo para adotar uma atitude de paz interior. Não é de surpreender que um tal budismo-taoísmo possa funcionar como complemento ideológico da globalização liberal: ele nos permite participar do esquema mantendo uma distância interna... Capitalistas, sim, mas desapegados, zen...
(Trad.: Teresa Van Acker)
1 - Essa epopéia cinematográfica de ficção científica compreende seis filmes, divididos em duas trilogias. A primeira trilogia: A Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança de Sith ( 2005). A segunda trilogia: A Guerra nas Estrelas, Uma Nova Esperança (1977), O Império Contra-ataca (1980) e O Retorno de Jedi (1983).
2 - Citado em “Dark Victory”, Time Magazine, 22 de abril 2002.
3 - A Ordem dos Jedi, em Guerra nas Estrelas, é uma reunião de indivíduos que têm em comum a crença e o respeito na Força, uma espécie de poder extra-sensorial que permite compreender e modificar o ambiente. Os inimigos jurados dos Jedi são os Sith.
4 - Idem. idem Editado no Brasil pela Editora Record, 2001. Patrick J. Buchanan, editorialista católico ultra-conservador, candidato à presidencia dos Estados Unidos em 2000. Síntese pseudofilosófica que surgiu na Califórnia, nos anos 1980, e que tenta responder às questões sobre a vida evocando confusamente anjos, extraterrestres, esoterismo, simbolismo, sabedorias orientais, vidas passadas, experiências psíquicas etc. Lucas, 14,26. Sistema de pensamento religioso e filosófico, o taoísmo constitui um sincretismo que se desenvolveu na China no século VI A.C. Tornou-se, como budismo, uma das duas grandes religiões chinesas. O taoísmo mostra-se mais preocupado com o indivíduo, com sua consciência e sua vida espiritual, até especulativa, na busca de uma harmonia com a natureza e com o universo.
Fonte: Le Monde Diplomatique (Brasil)
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