junho 22, 2008

A primeira nunca se esquece

Marcos Bastos © O Galo
A PRIMEIRA NUNCA SE ESQUECE

Anibal Beça ©

A granja era toda agitação. Na velha vitrola, tocava o disco com a música eleita como a preferida de todos: “Eu não vou mais trabalhar/ só vou criar galinha...laiá larilaiá...” Claro que a preferência se dava por conta da falta de um repertório maior, com outras opções. Aquele disco, 78 rpm, juntamente com a “Ave Maria”, tocada todos os dias no rádio, impreterivelmente, às seis horas da tarde, anunciada pelo speaker de voz de veludo (assim, o locutor Josaphat dos Anjos se apresentava), como ‘A Hora do Angelus” , eram as únicas alternativas musicais da granja. Havia outros discos, mas pelo uso, empacavam entre a repetição fanhosa, por falta de ajuste na rotação, e pelos arranhados das bolachas negras. Daí, a indefectível música das galinhas, eleita como característica musical da “Granja New Hampshire”.

Hildeberto Mascarenhas, o dono da granja, tinha outras preferências musicais. Era fã de programações radiofônicas. Mas só da Rádio Difusora, aquela que “fala para o muuundooo”. Quando não estava ligado em seu outro passatempo de rádio-amador (fazia questão de falar: “my hobby”), lá estava ele cantando, acompanhando os jungles de propaganda: “Melhoral, Melhoral/ é melhor e não faz mal...” (...)”quem bebe grapette/ repete...”, Quem passasse ali todos os dias pela Estrada da Colônia Japonesa, da República Livre do Parque Dez, não deixaria de ouvir, em alto som, o programa dedicado aos aniversariantes do dia: “a jovem e prendada Irlanda Pais, flautista de dotes invulgares, descasca, hoje, mais um abacaxi no pomar de sua existência...” ou “ Os passarinhos amanheceram cantando, em louvor ao aniversário da veneranda senhora dona Marilene Courrier, do signo de aquário, doceira de mão-cheia,,,”

Festa maior, só quando era dia de abate. As discussões dos peões, em torno da sexualidade das galinhas, contribuíam para aumentar a barafunda. Não adiantava as explicações do veterinário de que, aqueles animais, eram frutos da alta tecnologia de ponta, dos avanços nas pesquisas hormonais da engenharia genética.

As galinhas empoleiradas, aguardavam a hora do abate. Já tinham dado o que tinham de dar. Pelo aspecto, não se notava se eram novas ou velhas. A não ser pelas pernas finas, e aquele tremelique estranho.. Delirium tremens, parkinsonismo, Doença de São Guido é que não podia ser. As coitadas nunca saiam daqueles engradados.
- Frango, não, franga...
- Que galo que nada... é galinha... no duro...

Os comentários entre os peões às vezes se acirravam e virava discussão braba. Até uma pequena loteria de apostas era instalada.O mediador da peleja era o próprio Hildeberto Mascarenhas. E o veredito final, aguardado como ansiedade de parto, só se saberia com a presença do veterinário, Dr. Inácio Barroso Barros, profissional tão respeitado no meio rural que, lhe valera, já, a alcunha carinhosa de “Dr. Galinácio”.

O fato é que as bichinhas nunca chegavam a saber a que sexo pertenciam. Galos com certeza não eram. Galo não coloca ovo. Aquelas tinham crista e espora, mas colocavam ovo e não procriavam. “Assexuados”, “bissexuais”, “transexuais” diziam, os peões, daqueles bichos estranhos para eles.

Certo dia, um deles conseguiu sair do tal quadrado de ripas e pulou para o terreiro. Até que tinha pinta de pai-de-galinheiro. Imponente, o papo empinado, crista insinuante, esporas afiadas, um modo de andar firme, resoluto, passava uma impressão de segurança, de quem sabe o que quer.

No terreiro, Hildeberto criava algumas galinhas, dessas que o povo chama de pé-duro, caipiras. Não tinham pedigree, Raça ninguém sabia e nem de alguma árvore genealógica que se pudesse precisar o paradeiro certo daquelas pintadas, pedreses, carijós. Eram pés-duros, não tinham pedigree, mas de uma coisa tinham certeza: eram galinhas, no duro. As penas eram ralas, arrepiadas, o pescoço pelado. Eram galinhas-pirocas, mas faceiras, orgulhosas de seus pintos, da ninhada quase chegando a frangos e frangas,

Os bichos do terreiro tinham sexo. Havia um único galo. Já meio velho, cansado de cobrir as 30 galinhas-pirocas. Hildeberto, inclusive, já havia encomendado um galo novo para pai-de-galinheiro. O galo velho, de há muito, vinha notando, não dava mais no couro. Já era hora de virar capão, estava dobrando o Cabo-da-Boa-Esperança. Andropausa, com certeza. Uma vez ou outra, quase raridade, se peneirava pra cima de alguma franga nova: “galo velho, caldo novo”. Ora, dar assistência só às novas, não estava certo. E as galinhas maduras, balzaquianas, como iam ficar? No caritó da saudade? Nem por brincadeira!

Foi aí, então, que uma delas sentiu a presença imponente do fujão, aquele frangão vermelho, quem sabe, new hampshire, galo de griffe, pedigree de alto escalão. Era a própria nobreza misturando-se à plebe. Sacudiu as penas do rabo, arrepiou-se toda, sentiu um calafrio correr pelo pescoço piroca, um frenesi diferente. A temperatura aumentou, o coração batendo mais forte. Estava ardendo em febre: um frisson de poulle .

O frangão novo, vermelho, quem sabe, new hampshire, galo de griffe, pedigree de alto escalão aproximou-se. Ela respirou fundo, envaidecida. De todas as galinhas do terreiro havia sido a escolhida. O frangão novo, vermelho, quem sabe, new hampshire, galo de griffe, pedigree de alto escalão aproximou-se mais; balançou a crista, os olhos brilhando, levantou as asas, ensaiou um cocoricó,

A galinha eleita, acocorou-se, tremendo e arfando. Todo o terreiro era silêncio. Apreensão. As outras galinhas aproximaram-se, invejosas, Só o galo velho ficou no seu canto, trepado em cima de um abieiro, triste e solitário, ferido nos seus brios de galo macho pai-de-galinheiro.

O frangão novo, vermelho, quem sabe, new hampshire, galo de griffe, pedigree de alto escalão acocorou-se ao lado da felizarda. Espremeu-se todo e, rapidamente, levantou-se olhando para trás, orgulhoso, cacarejando de felicidade. Aquela era a primeira vez. Nunca havia feito aquilo fora de seu pequeno quadrado de ripas: um ovo enorme, rosado, brilhava no terreiro.
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