Mulheres de Olho
“Cérebros (homos)sexuais: as ressonâncias do preconceito”
22 Jun 2008
Um estudo sueco utilizou ressonância magnética e tomografia para comparar cérebros de 90 pessoas, entre estas heterossexuais, gays e lésbicas. O resultado foi divulgado pela revista “Proceedings of the National Academy of Sciences” (PNAS) e teve impacto na mídia, pois mostra que o cérebro de gays tem semelhanças com o de mulheres heterossexuais, assim como o cérebro de lésbicas com o de homens heterossexuais.
Este trabalho compõe uma linha de pesquisa que quer provar que a orientação sexual não é uma opção, mas um traço biológico. É uma abordagem que tem sido questionada e a divulgação deste estudo, realizado por cientistas do Departamento de Neurociências do Instituto Karolinska, em Estocolmo, ensejou um artigo de Alípio de Sousa Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mulheres de Olho publica aqui este texto, com a autorização do autor.
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CÉREBROS (HOMOS)SEXUAIS: AS RESSONÂNCIAS DO PRECONCEITO
Alípio de Sousa Filho - professor da UFRN; editor da revista Bagoas.
TVs, jornais, internet divulgaram: na Suécia, cientistas encontraram as “provas mais sólidas até hoje de que a sexualidade não é uma opção, mas uma característica biológica”. Nos cérebros de homens e mulheres homossexuais, “descobriram” características próprias: o cérebro dos gays é igual ao das mulheres heterossexuais e o cérebro das lésbicas é igual ao dos homens heterossexuais. Estudos com ressonância magnética seriam a “prova”. A idéia de um cérebro gay ou lésbico não é nova. Simon Le Vay, especialista norte-americano em neuroanatomia e autor do livro The Sexual Brain, publicado em 1991, já propunha a tese.
A idéia do cérebro homossexual é vista por muitos gays e lésbicas como um argumento a favor de suas lutas de afirmação identitária e por direitos. Mas é preciso dizer que estes se enganam inteiramente. O argumento segundo o qual a descoberta de “aspectos biológicos” da homossexualidade favorece a gays e lésbicas contra o preconceito é simplesmente equivocado e reacionário. O que a idéia do cérebro gay (ou lésbico) visa barrar é a afirmação das diversas possibilidades do sexual (incluindo a heterossexualidade) como posições libidinais das escolhas do objeto de desejo do sujeito humano, ao mesmo título iguais entre si, nenhuma delas sendo natural, inata, biologicamente configurada.
Nas nossas sociedades, o que é insuportável para muitos é a concepção que a sexualidade é uma escolha, uma tomada de decisão, embora nem inteiramente consciente nem totalmente determinada. Nos sentidos com os quais estudos diversos (em antropologia, sociologia, história, psicanálise) têm afirmado, o desejo sexual é construído em percursos pessoais nos quais se misturam elementos variados, seguindo direcionamentos inconscientes e outros conscientes, e sempre cultural e historicamente situados, mas sempre uma escolha na economia dos prazeres. E por inconsciente não se devendo entender nada em sentido negativo. Da mesma forma, não se pode esquecer o que Michel Foucault apontou: a existência da sexualidade como uma essência dada, que os indivíduos seriam seus portadores, é invenção histórica que se inicia a partir do fim do século XVI em sociedades européias. Hoje, acreditando-se em superação do preconceito, fala-se em “orientação sexual”, como se a locução por si mesma fosse uma solução teórica e politicamente adequada. Não é, haja vista sua substancialização (psicologizante ou biologizante) crescente. Poderíamos simplesmente nomear a homossexualidade como uma variante da cultura sexual humana, como uma possibilidade do sexual, mas prefere-se achar que “orientação sexual” é conceito mais adequado (no fundo, por crença substancialista), esquecendo-se, mais uma vez, que se trata aí de captura do pensamento pelo discurso social-histórico.
Por efeito da longa história de colonização pelo preconceito anti-homossexual, que tornou a heterossexualidade uma evidência em si mesmo de sua natureza natural, pensar que existem causas específicas que produziriam a homossexualidade ou aspectos biológicos que a atestariam como inscrita na biologia dos indivíduos, mas ainda assim estigmatizada como um desvio, tornou-se uma idéia que freqüenta a cabeça de muitos. Mesmo às vezes no pensamento daqueles que se crêem sem preconceitos. No imaginário de nossas sociedades, quando não manifesto, permanece latente a crença que homens e mulheres homossexuais são pessoas que, no seu desenvolvimento sexual, carregam algo que merece ser explicado. Vista como realidade para cuja existência contribui uma causa específica, a homossexualidade é objeto das mais variadas especulações…
A procura por explicar os fenômenos humanos a partir de bases biológicas não é um fato de hoje na história da ciência. Todavia, a onda atual do determinismo biológico tem permitido retornar, com muita força, explicações biologizantes de fatos sociais e fenômenos culturais, com ampla aceitação e difusão pelas mídias. Temos sido bombardeados pela descrição de fenômenos tomados como desencadeados por “ações do cérebro”, à simples vista fenômenos que são reflexos ou reações fisiológicas provocadas por situações emocionais, subjetivas, sociais. Hoje, o uso das imagens feitas com ressonância magnética talvez seja o melhor exemplo dessa inversão. Não faz muito tempo, revista nacional de ampla circulação trouxe matéria sobre as “bases cerebrais” das atitudes de compradores compulsivos: são o nucleus accumbens, o córtex insular e o córtex pré-frontal médio que nos fazem comprar o carro da propaganda na TV, a camisa que está na vitrine ou o perfume que adoramos! No discurso do determinismo biológico, não há sociedade, propaganda, mercado, subjetividades… existem apenas a química dos hormônios e cérebros em atuação.
Simon Le Vay, estudando cérebros de cadáveres, com tecidos naturalmente modificados pela morte, afirmou ter encontrado uma diferença estrutural de tamanho nos hipotálamos de gays e lésbicas: nos homossexuais, seria de menor tamanho. Outro exemplo da extrapolação abusiva do biologismo cientificista é Gunther Dörner, que, trabalhando na Universidade Humboldt, em Berlim, e estudando cérebros de ratos, concluiu que a identidade de gênero dos bichinhos podia ser modificada, quando se interferia em partes de seu cérebro. Gunther Dörner partiu daí para fazer afirmações sobre fatores biológicos da homossexualidade humana… Para o determinismo biológico, ratos, cadáveres e ressonâncias servem para explicar aspectos da subjetividade humana, do desejo, das sexualidades, das construções de gênero.
Vale lembrar aqui as palavras da historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco, que, a propósito da vaga biologizante atual, nomeou-a de “pretensão obscurantista”, denunciando esta por confundir “o pensamento com um neurônio” e “o desejo com uma secreção química”.A idéia do cérebro homossexual converge ainda fortemente para o senso comum social que acredita que os gays são homens efeminados (mulheres em corpos de homens; homens com cabeça e anseios de mulheres), assim como acredita que as lésbicas são mulheres masculinizadas (homens em corpos de mulheres; mulheres com cabeça e anseios de homens). A idéia reforça a crença que gays e lésbicas seriam mesmo os “invertidos” de outrora: inversão que, agora, estaria comprovada: está inscrita nos seus cérebros. Uma tal especulação é certamente útil ao alívio de conservadores e preconceituosos que não admitem que cada um possa decidir o que fazer com seu próprio corpo e por seu desejo. Determinados pela natureza de seus cérebros, provado que “são” homossexuais não por escolha, gays e lésbicas passariam a ser perdoados de seus vícios, pecados, anomalias etc. Até que cheguem aqueles que irão sugerir cirurgias reparadoras da “inversão cerebral”. Engano pensar que a conclusão que o preconceito formulará será outra.
O argumento da natureza despolitiza a reflexão sobre gênero e sexualidade e atrela direitos a serem conquistados pela mudança de mentalidade da sociedade ao obscurantismo do apelo ao biológico. O que a mentalidade conservadora e o preconceito não suportam é simplesmente a idéia da liberdade.
É fato que muitos LGBTTs flertam com as teses de um substancialismo (ou essencialismo) naturalista, sem que tenham consciência da despolitização que a posição representa. Muitos também não suportam (emocional e politicamente) a idéia da escolha. Ao que parece, enxergam nas suas próprias vivências da homossexualidade algo que somente se torna suportável se forem representadas como destino inevitável ou dádiva da natureza. A homossexualidade seria para alguns destes experienciada como peso, fardo, culpa, que somente se tornaria possível aceitar se encarada como uma realidade com a qual já se nasce e que se passa a ser portador, como se porta a cor dos olhos (não seria esta a fonte do discurso da “inclusão social” do segmento LGBTT em políticas públicas? Inclusão social como se fala disso para os chamados “portadores de necessidades especiais”?). Deixando de entender que o caráter transgressivo ou subversivo das homossexualidades está no fato mesmo destas escolhas divergirem da heteronormatividade, escolhas que se tornam alternativas à (ideologia da) heterossexualidade obrigatória, no direito de cada um em se inventar a si mesmo no corpo e na alma, muitos gays, lésbicas, travestis e transexuais renderam-se ao argumento da natureza. Definitivamente, não nascemos gays, lésbicas, travestis, heterossexuais ou o que quer que seja, somos socialmente fabricados, assim como nos inventamos, quanto ao gênero e quanto à sexualidade. Inventamo-nos!
Como, para a mentalidade conservadora e para o preconceito, as homossexualidades são vistas como anomalias, perturbações do desenvolvimento sexual suposto normal, não se pode pretender admiti-las e institucionalizá-las, como reivindicam os movimentos LGBTTs nos diversos países, se não forem enquadradas como coisas inscritas na natureza biológica dos indivíduos. O segredo é: visto que nossas sociedades não conseguem mais barrar as conquistas que se obtém continuamente, a única possibilidade que o preconceito enxerga de reconhecer como legítimas as reivindicações LGBTTs é tornando biológicos o desejo e a diversidade sexual. Do contrário, Estados e sociedades estariam legitimando o que, sendo escolha, preferência, opção, desejo, seria vício, sem-vergonhice, safadeza, pecado. Na moral dominante, não se pode admitir institucionalizar o que seriam caprichos da “falta de vergonha” de gente que escolhe ser diferente, que escolhe divergir da norma social. Assim, o próprio preconceito inventou sua saída: eles querem institucionalizar direitos, mas terão que admitir que a existência de homossexuais não se deve ao desejo, à (liberdade de) escolha, a preferências, mas a fatores biológicos, genéticos, anatômicos, fisiológicos.
Contra as armadilhas do preconceito, contra as naturalizações e reificações perigosas, é preciso opor-se com coragem intelectual e decisão política!
Artigo de Alípio de Sousa Filho, professor da UFRN e editor da revista Bagoas - Estudos Gays, Gêneros e Sexualidades.
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