junho 04, 2008

Manifesto do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Foto: Rogelio Casado - Ricardo Aquino e Nivaldo Lima na UEA, Manaus-AM, dez/2007
Nota do blog: Ricardo Aquino esteve em Manaus, em dezembro de 2007, para o encerramento da exposição "Segunda Pele", de Bispo do Rosário, e "Território", de Nivaldo Lima (fotógrafo, presidente da Associação Chico Inácio - filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial), realizada no Centro Cultural do Palácio da Justiça, numa parceria entre a Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas e Pro-Reitoria de Extensão da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). No Dia Nacional de Luta Antimanicomial (18 de Maio), Nivaldo de Lima voltou a expor no espaço cultural da Reitoria da UEA. Sua obra percorrera todas as Escolas da UEA. Já o Ricardo Aquino continua sua luta contra a redução da arte de inventores como Nivaldo Lima à doença mental. Grande Ricardo!

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Manifesto do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea: O Museu e a Dobra na Sociedade de Controle

Ricardo Aquino

“Contra a Memória fonte da tradição. Por uma experiência pessoal renovadora.”
Manifesto Antropófago – Oswald de Andrade

A sociedade disciplinar organizou instituições tais como a universidade, o asilo, o hospital, a prisão, o museu etc. O museu é a instituição disciplinar que se organiza em torno da memória: memória do Estado nacional, memória do saber científico, memória do valor cultural. Como todas as instituições disciplinares, o museu é uma instituição de afirmação da identidade. O museu histórico ajudou na consolidação do Estado nacional burguês, ou seja, da identidade nacional; o museu das ciências deu substância ao mito da supremacia da identidade do homem europeu – branco, racionalista, cristão – e da história enquanto processo linear, legitimando a exclusão da diferença e do periférico – negro, índio, não-europeu, não urbano, não racional (entre esses, os loucos); o museu de belas artes configurou a identidade da arte da corte como a da Arte. No campo artístico, a tensão promovida pelas vanguardas levou à inclusão no museu das artes acadêmicas, ou seja, da arte da representação ou da arte clássica de outros segmentos artísticos – daí o museu passou a abrigar a arte moderna e a arte contemporânea. Um museu de arte moderna ou um museu de arte contemporânea permanecem nos limites de uma instituição disciplinar.

Entre as funções da instituição disciplinar está o exercício do controle e a afirmação do poder. Todos os tipos de museu (histórico, antropológico ou artístico) de natureza disciplinar exercem e são atravessados por jogos de poder e visam estabelecer uma identidade determinada como a Identidade Absoluta e Prevalente, necessariamente excluindo a diferença.

O conjunto das instituições disciplinares entrou em crise com a passagem para a sociedade de controle. Nesta, a função de controle ultrapassa os limites dos muros institucionais e é exercida em todo o tecido social.

O Manifesto dirige-se a todos aqueles interessados num posicionamento de dobra ao exercício do controle que se multiplica no funcionamento da sociedade contemporânea; a todos que possam se interrogar sobre a maneira como deveria funcionar um museu para que ele possa se colocar como uma estratégia de resistência ao controle e para que ele não funcione mais, ingenuamente, servindo aos intentos do poder.

O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea propõe a reflexão sobre:

1. O entendimento de que o museu disciplinar foi construído em torno do objeto – a obra de arte –, nomeado como de valor para o saber das elites. O museu disciplinar organizou esta coleção de objetos num prédio – a sede do museu –, a ser visitado por um público, pessoas que vão em busca de uma informação ou de entretenimento. A narrativa que o museu veicula é o exercício do poder disciplinar de conferir a identidade de pertencimento ou de exclusão do mundo (de valores) das elites para aqueles que visitam o museu e assimilam ou não a sua narrativa.

Com isso, delineia-se o seguinte entendimento de modelo de museu:

museu = edifício + coleção + público.

2. A crise disciplinar instaurada com a passagem para a sociedade de controle exige uma crítica radical desse modelo. O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea busca funcionar dentro de uma nova lógica, atento para se confrontar com o intuito de controle:
museu = lugar praticado + criação + rede.

O não-lugar é o que caracteriza o espaço desterritorializado da sociedade de controle. Trata-se de pensar o museu funcionando num não-lugar enquanto um espaço praticado pela ação museal que transborda, com isso, os limites dos muros da instituição disciplinar.
A criação artística como o que promove a resistência ao biopoder, com a criação da vida que a arte proporciona. Trata-se de promover a criação artística e não mais valorizar o objeto enquanto memória do ato de criação.

A rede, enquanto modo de funcionamento da sociedade de controle, deve ser redirecionada pela ativação dos nós para a função de resistência. Trata-se de o museu, através da sua ação – de criação desmedida e num lugar praticado –, agenciar novos parceiros para se colocarem na dobra ao poder.

3. Este modelo de funcionamento como resistência ao controle coloca como necessidade para o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, que abriga em seu acervo as obras de Arthur Bispo do Rosário e de outros artistas que criaram nos limites dos serviços de saúde mental:

3.1. A luta contra os (pré) conceitos do campo da Psiquiatria que foram formulados como forma de controle e de redução da produção artística à condição de sintoma de doença mental, e para tanto usada como objeto de estudos etnocêntricos e racionalistas. Esses conceitos são: arte psicótica, arte degenerada, arte psicopatológica ou imagem do inconsciente. Esta última denominação – imagem do inconsciente – foi usada pela Dra. Nise da Silveira, que negava a essa produção o caráter de arte e a colocava como objeto de estudo.

3.2. A luta contra as denominações forjadas no campo artístico que servem como rótulo para essa produção, marcando-a de um caráter de estrangereidade ao mundo da arte: arte virgem, arte bruta, outsider art e folk art.

3.3. A afirmação do caráter desta arte enquanto arte, entendendo-a como boa ou má arte, interessante ou não, e como pertencendo ao universo da arte, sendo desta maneira entendida e integrada, com suas particularidades, em cada uma das correntes artísticas reconhecidas na História da Arte.

Em síntese:

O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea luta contra o controle que a Psiquiatria e o campo da arte procuram exercer sobre essa produção, negando-lhe o caráter de arte autêntica.

3.4. O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea luta pela afirmação da diferença, promovendo através da criação artística a afirmação da singularidade e da cidadania de cada um desses criadores. Circulando pelo espaço liso da sociedade de controle, o museu promove através de suas ações o agenciamento de redes de parceiros interessados na promoção da cidadania dos usuários dos serviços de saúde mental.

Enfim, no momento em que os muros das instituições disciplinares estão em crise, deve-se estar atento às funções sutis do controle. Assim, de nada adianta colocarem-se os usuários para fora dos asilos se eles e sua produção artística circularem no espaço liso etiquetados com os rótulos que a Psiquiatria e os agentes do campo da arte buscaram ligar a essa produção, negando-lhe o caráter de arte autêntica e reduzindo-a à doença mental. Esta é a luta do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea e este é o nosso compromisso com a obra de Bispo do Rosário, um Inventor (Ezra Pound), referência na arte contemporânea nacional e internacional.
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