abril 10, 2011

"127 Horas", Danny Boyle, 2010 - por Bruno Cava.

PICICA: "Parece que a mão do diretor ficou presa junto do protagonista. O filme volta à psicanálise clássica. Delira-se sobre a família, sobre o pai e a mãe. A dor e o sofrimento são negados como culpa, e a salvação vem pelo impulso de autopreservação biológica. Sai a ópera da crueldade, entra o teatrinho piegas: a luta pela sobrevivência e a perpetuação da espécie. O filme reduz o delírio ao psicologismo, e brocha qualquer tônus criativo ante a intimidade do personagem."

"127 Horas", Danny Boyle, 2010.


Crítica: 127 Horas, Danny Boyle, EUA, 2010, 97 minutos, cor.


Do mesmo diretor, Trainspotting quebrou a banca em Cannes 1996. Um uivo. Baseado num romance de fluxo de consciência por Irvine Welsh, esse filme transfigurou em imagem e som a tão rica narrativa da tão pobre juventude do pós-punk, pós-história, pós-HIV. Trainspotting submergiu no caldo subcultural de uma geração sem lugar nem perspectiva. Lá no fundo do vômito e da merda, essa geração pós-tudo reencontrou a salvação em cores alucinadas, embalada pelo tecno, entre anfetaminas, ansiolíticos, metadonas e opióides. Eis aí a geração na corrupção, o reverso do desvalor como o desejo que insiste em pulsar nos "niilificados". Por isso, o mergulho escatológico de Ewan McGregor foi um dos eventos emblemáticos da década de 1990.

Não há nada em comum entre a obra seminal de Danny Boyle e 127 Horas. Sim, não precisaria ter. Todos os realizadores, aliás a produção cultural como um todo reinventam-se a cada vez (ex.: Alain Resnais, talvez quem mais explicite um ímpeto constante de renovação). O problema ocorre, exatamente, quando se fecha a obra. Aí, a inovação poética se converte em cosmética auto-indulgente, os recursos formais em tiques e truques, o vigor do uivo em ecos esmaecidos. Foi o que aconteceu com o último longa de Danny Boyle.

Trainspotting foi tão significativo porque, lá, o delírio não se resumia a jogo de cena, a um drama psicológico. O frenesi do ritmo e os recursos alucinatórios serviam para formular um mundo inteiro, sem perder de vista o plano narrativo. Havia todo um olhar e sentir atrelados às explosões coloridas, aos movimentos violentos de câmera, à crueldade fabular. A narrativa delirante encorpava uma voz, daí sua potência calcinante à flor da pele de públicos e críticos.

Aqui, em 127 Horas, não. Parece que a mão do diretor ficou presa junto do protagonista. O filme volta à psicanálise clássica. Delira-se sobre a família, sobre o pai e a mãe. A dor e o sofrimento são negados como culpa, e a salvação vem pelo impulso de autopreservação biológica. Sai a ópera da crueldade, entra o teatrinho piegas: a luta pela sobrevivência e a perpetuação da espécie. O filme reduz o delírio ao psicologismo, e brocha qualquer tônus criativo ante a intimidade do personagem. Quão longe se está do fluxo de consciência de Welsh!

Não se trata, aqui, de preocupação com a partilha da situação, em um viver-junto do personagem, como escreveram alguns comentadores (por que isso deveria ser o tema, oras?), mas sim com a incapacidade de articular sentidos e exprimir uma linguagem libertadora e constituinte.

Não à toa, a temática da falta, numa narrativa que, de fato, está faltando em muita coisa: em desejo, em agressividade, e mesmo em pulsão de vida. Não por acaso, 127 Horas tenha sido comparado à estética de comerciais de TV. Que é a publicidade senão a captura do desejo, mediante subprodutos narrativos que o embalam, o fecham e nele põem preço? Não tem nada de contemporâneo aí, a não ser o fato de repercutir a lógica do espetáculo que impregna o capitalismo hoje.

O filme suplicia o público mais que o personagem: toma-o por mero consumidor. Estupidifica-o com imagens e sons ao redor de um vazio semântico e sintático. Se o sonho providencial de princesa de Quem quer ser milionário já deitara o outrora potente Danny Boyle no caixão, agora 127 Horas bate os últimos pregos.

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