junho 17, 2011

"Battisti: libertar a década de 1970", por Bruno Cava

PICICA: "Quanta atitude farisaica, legitimada por florestas de livros, por arengas editoriais,  por interesse próprio em renegar um passado ainda vivo, que perturba o estado. O mesmo estado que, nos anos 1970 e seus comandos paramilitares, não sentia remorso em explodir bombas em praças, para dobrar a luta dos trabalhadores. O mesmo estado que, nos anos 1970 e suas leis de exceção, não via problema em prender e arrebentar, matar, estuprar, torturar, em mastigar física e simbolicamente uma geração inteira de resistências, sonhos e amores. Basta de pregação moral sem memória. Esse mesmo estado agora invoca a falácia da impunidade — quando, na realidade, há e sempre houve excesso de punição, e seletiva, e racista, por todo lado —, para rancorosamente perseguir os que, certos ou errados (que me importa o certo?), lutaram. E morreram porque lutaram. E lutaram porque tinham que lutar."
Battisti: libertar a década de 1970

A perseguição terminou. A inquisição perdeu. Graças à coragem do movimento pela libertação, de juristas determinados e de Luís Inácio Lula da Silva, a máquina penal no coração do capitalismo desta vez ficou de mãos vazias. Há um homem que vai para casa. Quanta alegria deves ter sentido, advogado, ao chegar ao cárcere com a prenda mais gloriosa do ofício: o alvará de soltura. Em tudo ao redor do caso Battisti, há qualquer coisa de fisicamente, visceralmente insuportável, algo que faz parte de nossas instituições. O sistema penal aceita tudo. Convoca, em torno de seu ritual malsão, os magistrados, os policiais, os jornalistas e, nem tão na sombra, a sociedade de bem.

Quanta atitude farisaica, legitimada por florestas de livros, por arengas editoriais,  por interesse próprio em renegar um passado ainda vivo, que perturba o estado. O mesmo estado que, nos anos 1970 e seus comandos paramilitares, não sentia remorso em explodir bombas em praças, para dobrar a luta dos trabalhadores. O mesmo estado que, nos anos 1970 e suas leis de exceção, não via problema em prender e arrebentar, matar, estuprar, torturar, em mastigar física e simbolicamente uma geração inteira de resistências, sonhos e amores. Basta de pregação moral sem memória. Esse mesmo estado agora invoca a falácia da impunidade — quando, na realidade, há e sempre houve excesso de punição, e seletiva, e racista, por todo lado —, para rancorosamente perseguir os que, certos ou errados (que me importa o certo?), lutaram. E morreram porque lutaram. E lutaram porque tinham que lutar.

A prisão é um lugar político. Nela desemboca a história: a escuridão em que imergem seus anônimos esmagados. Battisti é um um joão-ninguém? Tanto mais justa a sua libertação. Que seria a história das lutas senão a história desses pés-de-chinelo que ninguém defende, que não valeria a pena defender? Esses pobres diabos sem pai nem mãe, escorraçados e trancados sozinhos na prisão. Esses que, em condições normais, você não poderia sequer ver e ouvir, quando muito os seus vestígios — vestígios de quem “se dana”, e se danando, nos condena.

Foucault certa vez disse ser bom que o poder punitivo por vezes se inquiete, ante estranhos paradoxos e, sempre, não se sinta jamais tão seguro de si próprio.

Dito isto, afirmo com convicção: é preciso libertar a década de 1970. Ela inteira, de A à Z. Sim, libertar todos, todos de esquerda e de direita, matadores, ladrões, estupradores, torturadores de grávidas — não façamos distinção. Que os mortos enterrem os mortos, porque os resistentes nunca morrem. Mas sem conciliação. E sem perdão. O contrário do bobajol vingancista não pode ser o bobajol medianeiro.

Abrir as prisões da história e esconjurar-lhe o silêncio, a tergiversação, a impudicícia histórica, o não-é-bem-assim. Saber tudo, de todos os ângulos, todas as verdades. Engajar-se numa tática de inquietação e provocação. Lutar não pela verdade, mas por um regime de produção dela, que nos faça… melhor, que nos coaja a inapelavemente dizer tudo, sem meias-verdades ou meias-mentiras. Eis a parrhesia como política da memória.



A prisão, a tortura, o horror não foram exceção. Nunca. Achamos que, para enfrentar a ventania que varre as nossas mesas, bastaria pôr pesos sobre os papéis, em vez de fechar a janela. Punir alguns por seus supostos excessos não redime. Instalar o vingancismo no núcleo da verdade não faz justiça aos que lutaram e morreram. Porque a ditadura foi a regra. Não houve excessos, mas normalidade. E à normalidade se alinhou boa parte da classe militar, da classe política, do Jornal Nacional, do funcionalismo público, os promotores, os advogados, os  juízes, os engenheiros, os jornalistas, os professores, a nova e a velha geração — nossos pais, tios, avós. Se todos têm culpa, ninguém a tem? Não. Se todos têm culpa, ninguém não a tem. Então conhecereis a verdade, e ela libertará.
Libertemos a todos.

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Textos recomendados sobre a soltura de Battisti:

Desmonte em dois tempos: quatro falácias sobre o caso Battisti, em A Navalha de Dali

A libertação de Battisti e o estado de exceção, em O Descurvo

Defesa de Battisti no STF (sustentação oral por Luís Roberto Barroso no youtubev — indispensável para entender o caso)


Mino Carta e a síndrome de Moby Dick, em O Descurvo

Sou anti-anti Battisti, no Amálgama


Fonte: Quadrado dos Loucos

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