junho 14, 2011

"A luxúria inventiva de Fernando Pessoa Fernando Pessoa: genialidade baseada em duas características fundamentais", por Enéas de Souza

PICICA: Fernando Pessoa confronta seu trabalho com Shakespeare. Simplesmente porque é preciso discutir com a cultura vigente a criação que faz dos diversos poetas. Diante das múltiplas críticas às suas invenções, que parecem socialmente doidas, a de um poeta criar vários poetas e estar ele mesmo no meio deles, Fernando Pessoa, reivindica o fato de que ninguém coloca essa questão da invenção de múltiplos personagens em Shakespeare. O bardo não é Hamlet, não é King Lear, não é Lady Macbeth e nem tem o mesmo caráter de suas figuras dramáticas. Ou seja, a verdade bastante nítida é que a invenção de Lady Macbeth não faz de Shakesperare um criminoso. Então, por que Pessoa não poderia criar a multiplicidade de poetas, os seus heterônimos, e se incluir nela? Shakespeare e Pessoa são autores que inventam personagens para o palco e para a poesia. Por que não pode o autor, no caso Pessoa, se colocar como uma das máscaras da obra? Por que o Pessoa ortônimo está impedido de entrar na confraria dos poetas? Genialidade que levou o autor Phillip Roth colocar-se também como o personagem Phillip Roth num de seus romances."

A luxúria inventiva de Fernando Pessoa


Fernando Pessoa: genialidade baseada em duas características fundamentais
Enéas de Souza *
A genialidade de Fernando Pessoa na história cultural do Ocidente se baseia em duas características fundamentais: (1) na produção inovadora de uma poesia, na qual nasce uma galáxia de poetas, os seus heterônimos; (2) na construção de uma postura cultural, onde sua poesia faz uma intervenção na área poética, mas igualmente se expressa e atinge o campo filosófico. Claro, existe uma terceira característica, tratando da posição do intelectual na sociedade contemporânea, que deixarei para outra oportunidade. Os dois pontos aludidos acima, que vão ser examinados neste artigo, são decisivos, porque tratam das intervenções que Pessoa faz na cultura para ampliar a concepção da poesia e, ao mesmo tempo, usá-la como uma forma de operar na interrogação e na resposta da filosofia. Participa assim de uma metamorfose profunda que ocorre no Ocidente nos séculos XIX e XX. Alimenta, portanto, com envergadura própria, a dinâmica que parte de Marx, Nietzsche e Freud, na geração de uma transformação histórica do paradigma da sensibilidade e do pensamento cultural. Poderíamos dizer que existe um evento Pessoa, uma ruptura singular na cultura do Ocidente.
Como pensá-la?

Pessoa: árvore de galho duplo

O primeiro aspecto é a formação de uma galáxia de poetas em torno da figura de Alberto Caieiro, “meu mestre”, dizem Pessoa, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. A grande novidade disso tudo é que Fernando Pessoa cria uma confraria de poetas, para arquitetar uma renovação da poesia. Faz a construção de personagens numa configuração poética que vai marcar o Ocidente: a produção de heterônimos. Só que essa produção de heterônimos não fica restrita à poesia, se estende para outros campos da cultura. Nessa trajetória, uma luxúria inventiva, vem Bernardo Soares, que, em prosa, escreve o “Livro do Desassossego”, vem o filósofo Antonio Mora e vem a voz estóica do Barão de Teive, além da produção do ortônimo Fernando Pessoa. Trata-se de uma ampla renovação da literatura, dotada de um modelo baseado no trabalho poético.
Cabe considerar que o núcleo do trabalho de Pessoa é, sem dúvida, a poesia. E focalizando mais de perto, discutir dois temas: o que significa a criação do que chamo ‘galáxia pessoana’, e qual a natureza da sua poesia, porque essa, por sua vez, tem dois aspectos, árvore de galho duplo. O primeiro revela a questão da própria poesia que Pessoa diz ser “dramática”, e o segundo, que se baseia na ideia de que ele faz uma poesia de inspiração filosófica — o que, na verdade, é também uma intervenção na filosofia. Por quê? Porque sua atitude é antifilosófica, já que se coloca fortemente contra uma filosofia sistemática. Nesse sentido, a estratégia de Pessoa entra na onda de uma renovação cultural contra um paradigma organizado ao redor da ideia de sistema e cujo operador seria a racionalidade. Todas as áreas do saber fazem parte desse sistema, que encadeia as partes em relação ao todo, como o todo em relação às partes, discriminando umas em relação às outras. Obviamente, a ciência primeira, a ciência magna seria a metafísica, de onde se desdobraria tudo. Ele, Fernando Pessoa, se inscreve num amplo movimento que produz a fragmentação desse todo como uma das marcas que vai definir a forma dos homens modernos apreenderem o mundo nos dias que correm. “Fragmentação, fragmentação, fragmentação” diz um verso de um poema.

Poesia dramática

1. A Galáxia Pessoana

Fernando Pessoa confronta seu trabalho com Shakespeare. Simplesmente porque é preciso discutir com a cultura vigente a criação que faz dos diversos poetas. Diante das múltiplas críticas às suas invenções, que parecem socialmente doidas, a de um poeta criar vários poetas e estar ele mesmo no meio deles, Fernando Pessoa, reivindica o fato de que ninguém coloca essa questão da invenção de múltiplos personagens em Shakespeare. O bardo não é Hamlet, não é King Lear, não é Lady Macbeth e nem tem o mesmo caráter de suas figuras dramáticas. Ou seja, a verdade bastante nítida é que a invenção de Lady Macbeth não faz de Shakesperare um criminoso. Então, por que Pessoa não poderia criar a multiplicidade de poetas, os seus heterônimos, e se incluir nela? Shakespeare e Pessoa são autores que inventam personagens para o palco e para a poesia. Por que não pode o autor, no caso Pessoa, se colocar como uma das máscaras da obra? Por que o Pessoa ortônimo está impedido de entrar na confraria dos poetas? Genialidade que levou o autor Phillip Roth colocar-se também como o personagem Phillip Roth num de seus romances.

"O núcleo do trabalho de Pessoa é, sem dúvida, a poesia"
Mas o gênio de Pessoa faz isso mesmo, um projeto de criação poética, onde ele se inclui como figura dramática do círculo da poesia. Ou seja, ele é o criador e, ao mesmo tempo, um integrante da galáxia. Há, portanto, dois movimentos na concepção dessa última. Um que vem da criação da irmandade dos poetas, tendo como centro, como mestre, Caieiro, e como discípulos Ricardo Reis e Álvaro de Campos — e que termina por introduzir nesse grupo, o próprio Fernando Pessoa com os seus poemas. A confraria, a galáxia pessoana, reúne tanto os heterônimos como o ortônimo. Mas, nesse processo — e aqui está a grande diferença — há também, em Pessoa, um corte, uma distância dessa galáxia. Significa que ele se põe tanto como poeta da confraria, mas também como seu criador dramático. Num sentido, faz parte da galáxia, portanto é um criador de poemas como os outros, e também admira e chama Caieiro de seu mestre. Mas, noutro sentido, é o poeta dramático, o inventor de todos os poetas e inclusive o autor da sua inclusão na confraria deles. É aqui, na invenção de uma poesia dramática, que ele está no nível de Shakespeare. Pessoa concebe uma dramaturgia criando “poetas” personagens que fertilizam a cultura de Portugal. São inventados para serem imaginaria e simbolicamente integrantes do mundo da literatura. E, ao mesmo tempo, aparecem como máscaras, personas de Pessoa.

2. O mestre Caieiro

A pergunta decisiva é: por que Caieiro é o mestre? Nesse ponto é preciso dar uma alargada na questão da poesia dramática e trazer o tema para a poesia de inspiração filosófica. O que importa entender é que Pessoa recusa, como Marx, Nietzsche e Freud, um pensamento que tenha uma base sistemática. E Pessoa resolve colocar um torpedo na filosofia, entrar na lida de uma antifilosofia que tenta pôr em questão e em causa toda a filosofia ocidental, no mínimo desde Platão até Hegel. Só que não faz como Nietzsche e Heidegger, uma volta aos pré-socráticos. Produz uma volta à situação primeira do homem, a situação do “pasmo essencial” (Pessoa, p. 138) em face ao mundo. E isso é revelado em Caieiro, através desse contato do homem com esse mundo, colando o sujeito ao objeto. É preciso nuançar fortemente aqui. O sujeito e objeto existem em separação, num determinado desencontro. E esse desencontro, a meu ver, funda o caráter trágico da situação do homem no mundo. E essa distância entre o sujeito e o objeto é que levou a filosofia a toda uma revolução de rejeitar a poesia e tentar preencher essa brecha, através do enlace dos conceitos. A cultura se formou como metafísica a partir de Platão e Aristóteles e chega até Pessoa com algo que tenta ser uma totalidade conceitual fechada. A história avança para uma tentativa de recusar a sistematicidade filosófica e a recusa de Pessoa vem através de um formidável vôo cultural, que visa ultrapassar tudo o que foi produzido, romper com o que veio sendo construído. E colocar Caieiro no frescor de um momento original, na mesma posição daquele espanto do verdadeiro contato do homem com o mundo, na origem da história ocidental. É por isso que o mestre cola-se como sujeito ao objeto.
Para essa admiração originante da poesia e da filosofia, Caieiro usa a sensação — sobretudo visual, aquela que tem origem no olhar — para fazer uma emoção poética, uma emoção que descobre que o céu é céu, que a árvore é árvore, o sol é sol, a pedra é pedra. Ou seja, estamos no proto-estágio da filosofia. E daí vem a volta ao paganismo, porque é no paganismo que o homem vive a mais plena admiração do mundo.
Mas Pessoa, em certo sentido, sabe que a filosofia se constrói muito em cima de Platão. E ao buscar a ideia dos objetos no mundo das ideias, o que Platão faz é desqualificar o mundo que nós vivemos como um mundo da aparência. Pois o gesto de Caieiro é o oposto, é aquele de mergulhar no mundo das coisas, no mundo dos objetos. E, nesse sentido, obter uma emoção poética que valide o que está aí, a Natureza em face da qual ele vive. Logo, uma postura importante: Caieiro diz que pensar é estar doente dos olhos. Por quê? Caieiro acaba por nos dizer que, é claro, pensar as ideias platônicas é que é estar doente dos olhos. Exatamente porque não vejo o mundo, pois, no caso de Platão, o mundo só pode ser olhado se estou possuído das ideias inteligíveis que habitam o topos uranos, o céu das ideias. O que é estar cego para o mundo. Por essa razão, há uma forte reação de Caieiro contra essa filosofia. E tudo começa nele com o ver, com o olhar, com estar voltado sensivelmente para a Natureza, para as árvores, para as pedras, para o rio, para as flores, para os montes, para as folhas, etc. Ver, tocar, ouvir, aspirar e ter o sentido gustativo. Como diz Reis sobre Caieiro: “O Pã renasceu”.

"Fernando Pessoa confronta seu trabalho com Shakespeare"
Então, resumindo: Pessoa, por intermédio de Alberto Caieiro, tem dois movimentos: o primeiro, recusando a história da cultura para retomar a atitude primitiva do homem; o segundo, combatendo a origem da filosofia, Platão, que é uma recusa do mundo pré-socrático, um mundo que se expressa fora do encadeamento de conceitos, mas que se expressa metaforicamente a partir de sensações oriundas do mundo sensível. Porém, Caieiro tenta ir além. Pois enlaçando metáforas, os pré-socráticos, sobretudo Heráclito e Empédocles, ainda não estão em contato com o mundo original. É, na verdade, o que busca Caieiro. E por isso, Fernando Pessoa o coloca como o centro da galáxia pessoana, como de todos, o mestre. Porque Caieiro tem o seu “rebanho de ideias” que são originados da sensação dos objetos. E como há em Caieiro uma certa recusa do trágico, a sua tentativa é fundir-se com o próprio mundo, colar o sujeito ao objeto, o homem ao mundo e dizer sem corte conceitual este mundo. Ter as ideias sensações. Ou seja, as ideias são as próprias sensações, só que expressas em forma de linguagem, como ideias abstratas. O que nada tem a ver com as ideias inteligíveis de Platão.
A galáxia, então, tem um centro, o mestre Caieiro, que se joga na recuperação das sensações, oriundas dos sentidos. Por isso que diz “Eu não tenho filosofias, tenho sentidos…” (Pessoa, p. 139). Os demais se organizam em torno desse poeta-mestre. Por exemplo, Ricardo Reis é um poeta onde a separação sujeito e objeto é uma dissonância sempre potencialmente rascante. A separação e o trágico se fazem presentes e Ricardo tem o sentimento de um desequilíbrio muito forte da relação homem mundo. Essa cisão é resolvida com o recurso de duas inspirações. Uma epicurista — ele é um epicurista triste — quando o eu poético, por exemplo, lembra aos seus amores, sobretudo Lydia, o reiterar de que a agitação da vida é perturbante, e que a melhor atitude é “colher flores” e não fazer esforços demasiados. E a outra inspiração tem que ver com uma atitude estóica, devemos renunciar a fazer face ao dinamismo agreste das coisas. “Cumpramos o que somos/ Nada mais nos é dado.” (PESSOA, p. 229)

A Antifilosofia


"O essencial é o saber ver"
“Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações./ Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca.” (Pessoa, p. 146) estabelece para os seus discípulos Ricardo Reis, Álvaro de Campos e o ortônimo Fernando Pessoa, o ponto de partida de qualquer desenvolvimento da poesia. Só que esse princípio é também um ponto de partida para a filosofia. Porque é preciso fazer uma recusa da filosofia ocidental. E a forma de fazer isso é recusar a ideia de que o pensar se reduz às demonstrações sistemáticas da filosofia grega clássica, do cristianismo tomista e todas as variantes da filosofia católica e da filosofia cartesiana até Kant e Hegel. Ou seja, o que se busca é o estabelecimento de uma verdade que seja caucionado por uma atitude primeira diante do mundo. Antes do desenvolvimento de um tratado e, ao mesmo tempo, mantendo-se nessa atitude original. Sob certa forma, Freud faz igual, se detém diante de uma integração da psicanálise a qualquer sistematicidade filosófica. Assim, Caieiro alcança o ato original do pasmo essencial e procura sustentar-se na frequência do “paganismo” das sensações. É preciso estar sempre com essa atitude de maravilhamento em face do que Caieiro chama “a eterna novidade do mundo”.
Mas porque a Natureza e, por extensão, a História, é dinâmica, que a influência de Caieiro culmina na posição contemporânea de Álvaro de Campos. Esse, parte do mestre, mas segue um outro caminho, avança no mundo, na eterna novidade de uma realidade diferente, “a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos”. (Pessoa, p. 240). A gente pode perceber que Álvaro de Campos na “Ode Triunfal” toma uma atitude em face dos objetos atuais, aqueles que surgem no universo das fábricas. Um pouco como Chaplin nos “Tempos Modernos”. Assim, nessa Ode, o que Campos ativa é o cantar longamente da presença dessa hora. “Em febre e olhando os motores como uma Natureza Tropical –/ Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e o futuro,/ Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, / Porque o presente é todo o passado e todo o futuro./ E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas/ Só porque houvera outrora e foram humanos Virgílio e Platão.” (Pessoa, p. 240). Ou seja, Álvaro de Campos se situa em face de um mundo diferente do mundo antigo, tentando compreender essa brutal e nova realidade, mas com a atitude de pasmo essencial originada na posição de Caieiro e estendendo para a eternidade (presente, passado, futuro).
A postura de Álvaro de Campos vai estabelecendo um tema que Alain Badiou, na sua intervenção do Colóquio de Cerisy de 1997, diz de forma aguda: os filósofos têm que ser contemporâneos de Pessoa. Pois é preciso tratar filosoficamente tanto “do Binômio de Newton como da Vênus de Milo”. (Colloque, p. 150). Ou seja, nem ficarmos na definição da realidade pela ciência, nem nos plantarmos no isolamento e na liberdade absoluta da arte. O que interessa para Alain Badiou, na sua proposição de uma filosofia viva e atual, é a dialética do Binômio de Newton e da Vênus de Milo. Fernando Pessoa, através da criação de sua galáxia de poetas e de seus heterônimos, influencia profundamente a visão filosófica de Alain Badiou. Só que numa direção, ao mesmo tempo, dentro da posição de Pessoa e, ao mesmo tempo, fora. O pasmo essencial sim, é um pasmo a Álvaro de Campos, mas a solução de Badiou passa por um retomar a filosofia a la Platão, basta ver o emprego que faz da matemática em “L´Être et l´Èvénement” (“O ser e o acontecimento”). Uma espécie de re-captura da antifilosofia pela filosofia. O que diria Fernando Pessoa diante desse imenso elogio imerso na recaída de um retorno platonizante? Botaria o poeta personagem Caieiro a falar poeticamente: “O essencial é o saber ver,/ Saber ver sem estar a pensar”. (Pessoa, p. 151)
Estão desenvolvidas neste artigo duas ideias que apresentei no seminário coordenado por Lucia Serrano Pereira “A ficção na psicanálise: Freud, Lacan e os escritores”, na ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE – APPOA, encontro que tinha como objetivo examinar a obra de Fernando Pessoa.
Citações:
– Colloque de Cerisy — Pessoa. Unité, Diversité, Obliquité. Christian Bourgeois Éditeur, 2000, Paris.
– PESSOA, Fernando – Obra poética. Editora Nova Aguilar, 1986, Rio.
* Formado em Filosofia, crítico de cinema, psicanalista e economista

Fonte: Sul21

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