junho 18, 2011

"Marchemos", por Camilla Magalhães

PICICA: "Nesse tempo de indignação seletiva, ativismo de sofá e protestos vazios e equivocados, qualquer grupo que se arrisque a colocar o pé na rua, carregar cartazes e entoar gritos de protesto recebe, quase que imediatamente, a pecha de “maconheiro”, “à toa”, “comunista”, ou outra bobagem qualquer. (...) Talvez por pura desinformação, talvez por mera reprodução do senso comum, ou talvez por não se ter mais hoje a compreensão da importância da manifestação do pensamento, tão cara às gerações anteriores."
Marchemos (por Camila Magalhães)


“nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que a
pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão”

Somos todos utópicos, ou devemos ser. E como na famosa frase de Eduardo Galeano, essa utopia nos faz caminhar… e marchar! Nas últimas semanas, três eventos* reavivaram o importante e necessário debate acerca da liberdade de expressão e de reunião. A(s) Marcha(s) das Vadias, as manifestações do estudantes no Espírito Santo pelo passe livre e contra ações truculentas do BME e a votação no Supremo Tribunal Federal da ADF 187 sobre a(s)denominada(s) Marcha(s) da Maconha.
Nesse tempo de indignação seletiva, ativismo de sofá e protestos vazios e equivocados, qualquer grupo que se arrisque a colocar o pé na rua, carregar cartazes e entoar gritos de protesto recebe, quase que imediatamente, a pecha de “maconheiro”, “à toa”, “comunista”, ou outra bobagem qualquer.
Talvez por pura desinformação, talvez por mera reprodução do senso comum, ou talvez por não se ter mais hoje a compreensão da importância da manifestação do pensamento, tão cara às gerações anteriores.
Será que desaprendemos a protestar? Os eventos citados (dentre tantos outros que tomaram conta do país) fazem acreditar que não. E se eles não são suficientes, alguns dos pontos levantados pelo Ministro Celso de Mello, na votação da ADF referida, podem nos (re)ensinar. Em seu brilhante voto, faz a associação entre a liberdade de expressão e a liberdade de reunião, e a importância dessa como “um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar”.
O protesto, a marcha, a manifestação, dê o nome que preferir, é verdadeiro instrumento da liberdade de expressão, possivelmente descaraterizado, abandonado ou subvalorizado ao longo da construção de nossa democracia, mas que, (assim seja!) começa a ser retomado como tal. Mais do que isso, no âmbito de um Estado de direito democrático, garantidor dos direitos fundamentais de seus cidadãos, o protesto é das melhores “armas” de que dispõem as minorias em defesa de “suas idéias, de seus pleitos  e de suas reivindicações,  sendo completamente irrelevantes, para efeito  de sua plena fruição, quaisquer resistências,  por maiores que sejam, que a coletividade oponha às opiniões manifestadas pelos grupos minoritários, ainda que desagradáveis,  atrevidas,  insuportáveis,  chocantes,  audaciosas ou impopulares”, nas palavras do próprio Ministro. Por assim ser, “grupos majoritários não podem submeter, à hegemonia de sua vontade, a eficácia de direitos fundamentais, que se revestem de nítido caráter contramajoritário, especialmente se analisado esse tema na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional”.
O alcance dos direitos e liberdades fundamentais, dentre elas as aqui destacadas liberdades de expressão e reunião, traz em si a ideia de que, como ressaltou a Dra. DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRA,  ” o Estado não pode decidir, pelos indivíduos, o que cada um pode ou não pode ouvir”.
Parece tudo tão óbvio, mas como diz um querido professor: “tarefa mais difícil é essa de provar o óbvio”. Por mais absurdo ou incômodo que seja, não surpreende a necessidade de se requerer ao STF que garanta a liberdade do cidadão em expressar sua opinião. Afinal, por mais que em teoria sejamos um Estado de direito democrático, na prática, vez ou outra, tendemos a um Estado policial, arbitrário, autoritário, repressor e punitivista. Aqueles que acompanharam, por exemplo, os eventos no Espírito Santo, puderam perceber essa verve ainda presente no Estado brasileiro.
Pois se o STF nos (re) ensinou a relevância de marchar, nos (re) ensinou que não só a liberdade de reunião é um direito  e uma prerrogativa essencial do cidadão, como também é uma obrigação imposta ao Estado. Peço licença, aqui, para citar um trecho um pouco mais longo do voto referido, a respeito do dever do Estado na garantia do direito citado e dos limites da atuação estatal.
Isso significa que o Estado,  para respeitar esse direito fundamental,  não pode  nem deve  inibir o exercício da liberdade de reunião  ou frustrar-lhe os objetivos  ou inviabilizar, com medidas restritivas,  a adoção de providências preparatórias e necessárias à sua realização ou omitir-se no dever de proteger os que a exercem contra aqueles que a ela se opõem ou, ainda, pretender impor controle oficial sobre o objeto  da própria assembléia, passeata  oumarcha. É por tal motivo que a liberdade de reunião  encontra veemente repulsa  por parte de sistemas autocráticos,  que não conseguem tolerar a participação popular nos processos decisórios de Governo  nem admitir críticas, protestos  ou reivindicações da sociedade civil.
(…)
É por isso, Senhor Presidente, que se pode identificar, na cláusula constitucional que ampara a liberdade de reunião (CF, art. 5º, XVI),  tanto um direito (titularizado pelos manifestantes) quanto uma obrigação (imposta ao Estado),  tal como assinala PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (“Curso de Direito Constitucional”, p. 443, item n. 3.1.4, 4ª ed., 2009, Saraiva/IDP,  em co-autoria com Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho)
(…)
Disso resulta que a polícia  não tem o direito de intervir nas reuniões  pacíficas,  lícitas, em que não haja lesão ou perturbação da ordem pública.  Não pode proibi-las  ou limitá-las. Assiste-lhe,  apenas,  a faculdade de vigiá-las,  para, até mesmo, garantir-lhes  a sua própria realização.  O que exceder a tais atribuições, mais do que ilegal, será inconstitucional. É dever,  portanto, dos organismos policiais,  longe dos abusos que têm sido perpetrados pelo aparato estatal repressivo, adotar medidas de proteção aos participantes da reunião, resguardando-os das tentativas de desorganizá-la  e  protegendo-os dos que a ela se opõem”.

Há um perigo, contudo, em explanações a respeito da liberdade de expressão: seu uso oportunista por aqueles que querem sob ela esconder posicionamentos nitidamente preconceituosos. E como, contra esses, muitas das vezes apenas o argumento de autoridade parece ter efeito, recorro novamente a Celso de Mello: “É certo que o direito  à livre expressão do pensamento não se reveste  de caráter absoluto,  pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico.  É por tal razão que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social  não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão.”
A lição é então, muito clara. A praça é ambiente democrático e a liberdade de reunião é instrumento indispensável ao exercício da liberdade de expressão. E se, ao fim desse texto, você continua pensando: “tudo coisa de viado, maconheiro e puta”, marque mais um ponto no Bingo da Marcha das Vadias.

Bingo da Marcha das Vadias
*Destaco, aqui, apenas os eventos a mim mais próximos.

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