junho 23, 2011

"A parábola dos estrangeiros indesejáveis", por Greg Foyster

PICICA: Em memória dos meus avós Maria Casado Ramirez (peruana) e Antonio de Jesus Barbosa e Tereza de Jesus Barbosa (portugueses), migrantes que viveram em Manaus, numa época em que ainda não havia a competição homicida, nem as relações hipócritas da sociedade capitalista atual. Atravessaram a pobreza com dignidade e deixaram netos com aversão a movimentos segregacionistas.
A parábola dos estrangeiros indesejáveis


Nesta segunda-feira, 20 de junho, foi celebrado o Dia Mundial do Refugiado. Por isso, o jornalista australiano Greg Foyster conta, no texto abaixo, aquela que poderia ser a parábola do estrangeiro.



O artigo foi publicado no sítio Eureka Street, revista eletrônica dos jesuítas da Austrália, 19-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Eis o texto.


O ano é 2001. Você vive em uma grande casa comum no lado sul da cidade. O lugar tem milhões de quartos, e as pessoas estão sempre indo e vindo. Um dia, um estranho bate à porta. "Socorro!", ele grita. "As pessoas na minha casa estão tentando me matar! Eu preciso me esconder aqui por um tempo".


Instintivamente, você se aproxima da maçaneta da porta. Uma mão enrugada, velha mas firme, agarra seu pulso. Você olha para cima e vê o dono da casa, um homem careca, com grossos óculos retangulares e espessas sobrancelhas. "Nós vamos decidir quem vem a esta casa e as circunstâncias em que vêm", diz ele, rispidamente.


Ele tranca a porta.


Mais tarde, você vê trabalhadores construindo um cercado de arame em uma rótula de trânsito perto da casa do seu vizinho. Um sinal diz "Centro de Processamento". O estrangeiro é colocado lá dentro.


Todas as manhãs pelos próximos sete anos, você fica perto da janela, observando. Milhares de estrangeiros estão agora lotando o pequeno cercado. Eles colocam seus dedos ao redor dos arames do galinheiro e o agitam. Dizem que querem ser soltos, ver um advogado, viver e trabalhar na casa. Eles dizem que não fizeram nada de errado. Estão simplesmente fugindo para salvar suas vidas.


O velho proprietário passa na sua frente e fecha as cortinas. "Apenas ignore-os", diz ele. "Eles estão mentindo. Eles deveriam ter esperado a sua vez".


* * *

Então, em 2007, algo surpreendente acontece. O proprietário morre. Ele se foi, simplesmente isso. Um novo proprietário assume o comando, um homem com cara de estudioso, óculos quadrados, que fala um idioma diferente. Ele abre as cortinas e aponta para o cercado na rótula. "Temos um imperativo moral para priorizar o desmantelamento eficiente dessa instalação", ele anuncia. Ninguém sabe ao certo o que ele quer dizer.


Mas não importa, porque ele mantém a sua promessa estranhamente pronunciada. Você se senta perto da janela, observando como o cercado é tapado, com um sorriso se espalhando por todo seu rosto.


* * *

O ano é 2010. O novo dono foi assassinado. Esfaqueado nas costas. Uma reunião da casa é convocada para eleger um substituto. Você se senta junto aos seus companheiros residentes permanentes – mais de 20 milhões deles –, avaliando a discussão.


O primeiro candidato se levanta. Ele é um rapaz bronzeado e antiquado, com orelhas como antenas de radar que sintonizam os medos das pessoas. "Eu vou tomar uma ação direta e real", diz ele, "para proteger a nossa propriedade e impedir os estrangeiros".
"Se necessário, vou dar meia volta aos estrangeiros. Forçá-los a ir de volta pelo caminho do jardim".


O próximo candidato se levanta. Ela é ruiva e diz as mesmas palavras repetidas inúmeras vezes com um sotaque hipnótico. "Para seguir em frente", diz ela, "precisamos de uma abordagem regional, e isso significa um centro de processamento regional, seguindo em frente".
"Estou discutindo com o nosso vizinho José sobre um novo centro de processamento em uma rótula de tráfego diferente, para que possamos avançar de um modo diferente", ela acrescenta.


A sala está em silêncio. Você olha ao redor para os seus companheiros residentes permanentes. Eles moravam aqui quando o antigo dono estava no comando. Eles viram o grupo de estrangeiros que sofriam na frente da casa porque ninguém os deixava entrar Eles testemunharam o recinto superlotado, os estrangeiros com os lábios costurados, as crianças por trás do arame de galinheiro. E eles sabem que muitas dessas pessoas puderam entrar na casa – elas foram mantidas nesse recinto sem nenhuma boa razão.


Você espera que alguém se levante e diga: "Esses estranhos estão em um estado de necessidade". Você espera que alguém diga: "Nós temos uma obrigação para com essas pessoas". Você espera que alguém diga: "Eu fui estrangeiro uma vez, mas vocês me deixaram entrar".


Mas espere – os moradores estão aplaudindo. Eles estão aplaudindo de pé. "Uma postura mais dura", eles dizem. "Não queremos nenhum maldito estrangeiro pulando a cerca para o nosso quintal".


Você não pode acreditar no que está ouvindo.


* * *

O ano é 2011. Uma década desde que você conheceu aquele estrangeiro na porta. Uma década em que pouca coisa mudou. A mulher de cabelos ruivos reabriu as antigas instalações. Mais uma vez, os estrangeiros estão trancados, gritando para serem soltos. Um médico respeitado, nada menos do que o Residente do Ano, diz que as instalações estão enlouquecendo os estrangeiros. Ninguém escuta.
Exasperado, você convoca uma reunião da casa. "Companheiros residentes", você diz, "temos orgulho por dar oportunidades iguais a todos. Por isso, deveríamos dar a esses estrangeiros o benefício da dúvida".


Os moradores murmuram desconfortavelmente entre si.


"Talvez esses estrangeiros não estejam mentindo. E se talvez eles realmente estejam fugindo do perigo?".


Os moradores parar de murmurar e olham fixamente.


"E, além disso, o número de estrangeiros é muito pequeno, muito pequeno mesmo para afetar o nosso modo de vida, se os deixarmos entrar. Finalmente, deveríamos lembrar que nós mesmos somos estrangeiros nesta casa. Nós invadimos este local e expulsamos os moradores anteriores, então não temos nenhum direito de dizer quem pode entrar e quem pode sair".


Os moradores estão em silêncio. Então, um homem de rosto rosado com camiseta regata e sandálias, vacila. "Olhe, companheiro", ele vocifera, "se você não gosta daqui, por que você não cai fora e volta para onde você veio?".


* * *

Você se levanta na rótula de trânsito perto da casa do seu vizinho, seus dedos agarrados ao arame do galinheiro. Você deveria saber que isso aconteceria. É claro que eles iriam jogá-lo neste cercado. Ao questionar o seu modo de vida, você mostrou que você era diferente. Aos seus olhos, isso faz de você um estrangeiro. E, como todos nós percebemos, os estrangeiros já não são mais bem-vindos.

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Fonte: IHU

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