junho 10, 2012

"A revolução é uma performance", por Eusou Outro

PICICA: "Do mesmo modo, se a emergência que torna possível o protesto Corpo Livre decorre do fato de uma bailarina ter sido afastada da EDTAM por ter dançado nua um solo de dança contemporânea num festival da Escola no TAM, e possa remeter a performer paulista que foi presa durante o Circuito Bode Arte ao performar nua pelas ruas da Cidade Alta, o que a ação deste grupo de artistas põe em jogo, tanto quanto os moralismos da EDTAM e da Polícia, é todo um regime de interdição do corpo e de suas práticas de liberdade. O ato silencioso de despir-se em praça pública desafia diretamente o pudor, na lata: meu corpo nu se volta contra a vida nua, transformamos aquilo que a sociedade rejeita numa arma contra o poder decisório que a sociedade exerce sobre os corpos, e a batalha emerge: está exposta a fratura, e haverá que se aprender a lidar com isso."

A revolução é uma performance 

por Eusou Outro


“Contra toda e qualquer criminalização da liberdade, da livre expressão, das movimentações revoltosas em geral, protestemos pelo direito de protestar, pois ocupar as ruas não é somente passeata, mas atividade transformadora dos campos sociais, e é por isso que devemos ocupá-las, a propaganda pela ação, força ativa que dá vazão as vozes que, desde sempre, tentaram abafar e reprimir.” Escrita coletiva: Carta aberta à população potiguar - Por que devemos continuar ocupando as ruas? (http://tomarshampu.tumblr.com/post/23802907536/revoltapotiguar)


Porque tenho estado sem fôlego, adiro a uma lógica dos confortos que me põe em guerra – estou desconfortavelmente situado numa zona de conforto. Não fui à Revolta, nem a Marcha das Vadias, nem ao protesto do Corpo Livre, embora reconheça nesses eventos um caráter est/ético libertador das pragmáticas políticas institucionalizadas. Parece-me que os rasgos deflagrados por tais insurgências, ainda que expansíveis, produzem resistência em nível extremamente local: trata-se de uma desorganização da experiência política, consequentemente, uma desarticulação das morais revolucionárias.


Ainda que se erijam causas – “estamos lutando por” –, articulem-se mobilizações de caráter estrutural, é entre uma coisa e outra, no espaço da ação, que se efetua o rasgo. A Marcha das Vadias pode mais do que a Lei Maria da Penha (a Lei Maria da Penha, ainda assim, pode muito), porque traz do plano do ideal para a camada da performance, onde a utopia cria demanda na carne, suga-se o seio da impossibilidade, e o que está obscurecido pelo regime de luzes se expõe. Leis não bastam: há que deformar-se o sistema de representações, estetizar a vida para além da lumpenvida, atuar o “mundo melhor” que outrora concebemos como a pasárgada do fim do túnel. Nessa emergência de gente vadia assumida na Praça do Relógio rumo à Feira do Alecrim - e alhures - não é só a constituição federal que está em jogo. É uma forma de vida desviante que se apresenta à realidade interditada. O machismo recolhe o bofete de imediato. Se o falopoder está demarcado na paisagem straight, é o caso de demarcar, também, a resistência, investir contradições nos regimes naturalizados. Se me mandam tomar no cu, não tento convencer ninguém a calar esse xingamento (reprodutor do pânico anal), desvio-o: “tomar no cu é uma delícia, obrigado”. A Marcha das Vadias instaura uma crise evidente, uma tensão no interior da heteronormatividade, porque desvela o que está à sombra, torna visível o fluxo menor que a molaridade das subjetivações capitalísticas tecnobiopatriarcalizadas enseja coibir, regular, tornar invisível e absorver.


Do mesmo modo, se a emergência que torna possível o protesto Corpo Livre decorre do fato de uma bailarina ter sido afastada da EDTAM por ter dançado nua um solo de dança contemporânea num festival da Escola no TAM, e possa remeter a performer paulista que foi presa durante o Circuito Bode Arte ao performar nua pelas ruas da Cidade Alta, o que a ação deste grupo de artistas põe em jogo, tanto quanto os moralismos da EDTAM e da Polícia, é todo um regime de interdição do corpo e de suas práticas de liberdade. O ato silencioso de despir-se em praça pública desafia diretamente o pudor, na lata: meu corpo nu se volta contra a vida nua, transformamos aquilo que a sociedade rejeita numa arma contra o poder decisório que a sociedade exerce sobre os corpos, e a batalha emerge: está exposta a fratura, e haverá que se aprender a lidar com isso. 

Hospedada como documento público, de modo que qualquer um pudesse intervir, uma carta aberta à sociedade natalense foi produzida nessa semana, como apresentação e convite para um protesto chamado #RevoltaPotiguar, que aconteceu na noite de sexta-feira (25/05/2012). Além do caráter autônomo e horizontal, e das pautas abertas, o que me chamou mais atenção no texto – Carta aberta à população potiguar: Por que devemos continuar ocupando as ruas? (http://tomarshampu.tumblr.com/post/23802907536/revoltapotiguar) – foi o rompimento radical com a política como conformação da revolta à distopia dos ideais, suscitando uma est/ética viva, propondo a instauração de movimento, o pique de protestar pelo direito de protestar, de preencher as ruas com a carne dos insatisfeitos. Todo protesto, para além de suas agendas, produz a instabilidade necessária para que nós percebamos a cissura do nosso tempo, o caráter inacabado da realidade, e suas crises. O que se ouve das galeras que param o trânsito no cruzamento da Av. Salgado Filho com a Bernardo Vieira não é o uníssono das palavras de ordem, mas o canto maldito dos desafinados: a ruptura é uma prática; a liberdade uma agonística; e a revolução uma performance.


Avante, manco! 

Fonte: Eusou Outro

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