PICICA: Morre Antonio Brand. Viva Antonio Brand!
Morre o historiador Antonio Brand
Apoiador da causa indígena, Brand estudou o impacto da perda da terra sobre a tradição do povo Guarani Kaiowá
03/07/2012
da Redação
Antonio Brand - Foto: UCDB |
O
historiador e professor Antonio Jacó Brand faleceu na manhã desta
terça-feira (3), em Porto Alegre (RS), em decorrência de um infarto no
pós-operatório de uma cirurgia cardíaca.
Brand,
que tinha 62 anos, era mestre e doutor em história e atuava como
coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas
(Neppi) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) desde março de 1996.
Apoiador
da causa indígena, Brand dedicou sua tese de doutorado ao estudo do
impacto da perda da terra sobre a tradição do povo Guarani Kaiowá.
Confira abaixo entrevista concedida por ele ao IHU On-line, em 2010,
sobre o tema:
O dilema das fronteiras na trajetória guarani. Entrevista com Antonio Brand
A
identidade guarani remete, diretamente, para a ideia de pertencimento e
para as relações de parentesco. Daí a importância da concepção de
território como espaço de comunicação, com as suas marcas referidas e
atualizadas pela memória”, assinala Antonio Brand, em entrevista à IHU
On-Line. Nesse sentido, explica, as fronteiras nacionais representam um
problema para os guarani porque “dificultam essa comunicação”.
Independente da divisão territorial, eles “seguem com noções e conceitos
próprios de fronteira, uma ideia mais sociológica e ideológica, que
inclui, exclui e define quem pertence e quem não pertence à determinada
coletividade”.
Na entrevista a seguir, concedida,
por e-mail, Brand menciona os impactos que as fronteiras nacionais
ocupadas por não-indígenas estão representando na vida social deste
povo. De acordo com ele, os guarani “são postos à margem dos processos
de desenvolvimento que se implantam em cada país, sendo considerados
apenas enquanto eventual mão de obra e/ou estorvo a ser eliminado pelas
mesmas frentes de expansão”. O processo histórico de redução territorial
e confinamento tem gerado inúmeras mudanças no cotidiano dessas
populações, transformando-as em “dependentes do fornecimento de cestas
básicas e de toda a sorte de ajudas externas”.
IHU On-Line – Qual é o impacto das fronteiras nacionais na história do povo guarani?
Antonio Brand - Inicialmente,
a constituição dos Estados Nacionais, no início do século XIX, ou, a
definição das fronteiras nacionais, que atravessaram o território
guarani, não provocaram maiores consequências para os guarani, pois a
efetiva ocupação da região por frentes não-indígenas é bem posterior.
Quando falo em guarani, refiro-me aos diversos grupos reconhecidos pela
antropologia, como guarani, em especial aos Mbya, Nandeva ou Ava, que no
Brasil são os únicos que se reconhecem como guarani e os Kaiowá ou
Pai-Tavyterã, no Paraguai. Vou utilizar, normalmente, o termo guarani
para referir-me a todos eles ou então a autodenominação guarani para
referir-me somente aos Ñandeva, que junto com os Kaiowá, estão presentes
no Mato Grosso do Sul.
Tanto no Paraguai como no
Brasil, instalam-se, no final do século XIX, no território guarani
grandes empresas de exploração de recursos naturais (erva-mate e
madeiras). Essas empresas não têm interesses diretos na propriedade das
terras, mas nos recursos naturais. Por isso, as consequências dessa
presença para os guarani são relativamente menores do que as frentes
posteriores que se instalam no mesmo território indígena e que disputam
com os guarani a posse da terra. Apesar da eventual exploração da mão de
obra indígena e de contribuírem para o aumento de velhas e novas
doenças, que causam grande impacto na população indígena (sarampo,
varíola, tuberculose, entre outras), a presença dessas empresas é
apontada por diversos pesquisadores como um fator de resguardo de grande
parte deste mesmo território, por impedirem a instalação de colonos ou
de projetos de colonização, que poriam em risco seu monopólio e, ainda,
por não terem um “projeto civilizatório” explícito. Ao impedirem a
instalação desse tipo de empreendimento acabam por contribuir para a
preservação do território indígena. Por isso, as comunidades indígenas
conseguem, nessa região de fronteira, manter relativa autonomia
econômica e cultural, que vai, aproximadamente, no Brasil, até a década
de 1950 e, no Paraguai, até a década de 1970. Na Argentina essa
autonomia segue até mais recentemente, quando se intensifica o
desmatamento do território indígena. É um período, também, em que os
guarani desaparecem dos cenários nacionais.
Fronteiras impactam a vida guarani
No
Paraguai, após a extinção do que ainda restava dos “pueblos de índios”,
no governo de Carlos Antonio López , em 1848, o destino dos Guarani
Caaguá (ou Monteses), que viviam na mata, passa a ser decidido no
contexto restrito das frentes de expansão interna de cada país. São
postos à margem dos processos de desenvolvimento que se implantam em
cada país, sendo considerados apenas enquanto eventual mão de obra e/ou
estorvo a ser eliminado pelas mesmas frentes de expansão.
É
um período de grande violência, como atesta a documentação,
consequência da omissão dos novos Estados, que na ocupação de seus
espaços territoriais e na busca da integração econômica, especialmente
no início do século XX, ignoram e se omitem ante os direitos indígenas a
terra, apesar da incipiente legislação, que surge, lentamente, a partir
do início do século XX, buscando garantir estes direitos. Cabe lembrar,
no Brasil, a criação do Serviço de Proteção aos Índios – SPI , em 1910.
Portanto, no que se refere a essa questão das fronteiras e seu impacto sobre os guarani, cabem alguns destaques:
-
O Tratado de Madrid , que define, basicamente, as fronteiras atuais,
não traz imediatas consequências para os guarani. As fronteiras
nacionais só começam a constituir-se em problema para eles na medida em
que são ocupadas por não-indígenas. E, apesar das características
comuns, apontadas acima, os processos de colonização são distintos em
cada país, em especial no que se refere à intensidade e rapidez dessa
ocupação. E, nesse sentido, no que se refere à fronteira
Brasil/Paraguai, a ocupação se dá primeiro e de forma mais intensa no
lado brasileiro, razão porque a situação de confinamento dos guarani
nesse lado é mais radical do que nos demais países;
-
Os guarani tem sido ignorados pelos governos e pelos programas de
desenvolvimento econômico implantados nessas regiões. Muito
recentemente, e na medida em que criam problemas para a ocupação
territorial, é que os governos de cada país passam a ocupar-se deles. No
Brasil, a partir de 1915, o SPI demarca reservas de terra para o
usufruto dos guarani, localizados no atual Mato Grosso do Sul. No
Paraguai, esse processo se dá na década de 1970 e na Argentina, creio
que seja mais recente ainda. No entanto, na medida em que os governos
definem suas políticas indigenistas, buscando atender distintas demandas
e interesses econômicos, os guarani passam a enfrentar, também,
problemas distintos em cada lado da fronteira.
Que grupos guarani vivem nas fronteiras dos países da América Latina? Quais as suas características?
Os
guarani e populações falantes do idioma guarani, no século XVI,
ocupavam um amplo território nas terras baixas da América do Sul, que ia
desde o litoral de Santa Catarina, ao longo do Rio Paraguai, Paraná,
Apa, Miranda e Pilcomayo, chegando até as franjas da cordilheira dos
Andes. Encontram-se, hoje, distribuídos pela Bolívia, Paraguai, Uruguai,
Brasil e Argentina, sendo esse idioma, em suas diversas variedades
dialetais, o único falado em todos esses países. Nesse sentido, podemos
considerar a língua guarani como “língua histórica” do Mercosul.
Os
guarani com os quais temos maior contato pertencem aos grupos
linguísticos Ñandeva (os únicos que se autodenominam guarani), Kaiowá e
Mbyá, que se encontram na região fronteiriça do Brasil com o Paraguai e a
Argentina. Na Bolívia, Argentina e Paraguai encontramos, ainda, os
Guarani-Chiriguano, que assumem, também, diversas denominações.
No
ano passado, no âmbito de um projeto voltado para políticas públicas
comuns aos guarani, no Mercosul, viabilizamos uma viagem para uma
delegação de representantes guarani do Brasil, Paraguai e Argentina, que
durante dez dias visitaram aldeias localizadas ao longo das fronteiras
desses países. Durante a viagem foi possível constatar que, para os
guarani, as fronteiras nacionais seguem não fazendo qualquer sentido,
embora percebam cada vez mais que dificultam a sua circulação
transfronteiriça.
Eles têm parentes nos diversos
países e seguem se visitando regularmente. Aliás, todos os participantes
da viagem tratavam-se como parentes. Segundo Meliá, os guarani seguem
com noções e conceitos próprios de fronteira, uma ideia mais sociológica
e ideológica, que inclui, exclui e define quem pertence e quem não
pertence à determinada coletividade, estabelecendo os limites a partir
dos quais eles não se sentem “a gosto”. O mesmo pesquisador, ao
referir-se à concepção guarani de território, fala em “território de
comunicação”, cheio de marcas, caminhos, casas, recursos naturais e
acontecimentos (MELIÀ, 2007) .
Características
Os
guarani, tradicionalmente, ocupavam seu amplo território, de acordo com
a disponibilidade de locais com recursos naturais considerados
apropriados – preferiam, por isso, estabelecer suas aldeias em áreas de
mata e próximas a bons cursos de água. Além disso, teria que ser um
local livre de ameaças sobrenaturais e de doenças – pesquisando a
história recente dos guarani percebemos que diversas aldeias foram por
eles abandonadas em decorrência de doenças – e próximo a parentelas
aliadas. Distribuíam-se em pequenos núcleos, constituídos por uma ou
mais parentelas, sob a liderança dos ñanderu ou tekoaruvicha, líderes de
caráter marcadamente religioso, cujo poder estava apoiado no prestígio
decorrente de seu parentesco, capacidade de convencimento e generosidade
e não na força ou habilidade física.
A
identidade guarani remete, diretamente, para a ideia de pertencimento e
para as relações de parentesco. Daí a importância da concepção de
território como espaço de comunicação, com as suas marcas referidas e
atualizadas pela memória. Por isso, as fronteiras nacionais são um
problema para os guarani na medida em que dificultam essa comunicação.
Quais
as implicações da perda de terra para as comunidades kaiowá/guarani, em
especial no que se refere à tradição desse povo que busca a terra sem
males?
O processo histórico de redução
territorial e confinamento no interior das pequenas extensões de terra
reservadas aos guarani e kaiowá, no Brasil, gerou inúmeras mudanças no
seu cotidiano, em especial, criou desafios novos para a sua organização
social e é apontado por pesquisadores e representantes indígenas como
causa de inúmeros problemas hoje vivenciados por essa população. O
confinamento e a superpopulação no interior das reservas demarcadas
reduziram o espaço disponível, provocando o esgotamento de recursos
naturais importantes para a qualidade de vida numa aldeia kaiowá e
guarani e dificultou a produção de alimentos. Transformou povos que,
durante séculos, produziram alimentos não só suficientes, mas
abundantes, como atesta a documentação histórica, dependentes do
fornecimento de cestas básicas e de toda a sorte de ajudas externas.
Povos que foram importante mão de obra e contribuíram na implantação de
grande parte dos empreendimentos agropecuários e públicos, como ferrovia
e estradas, em Mato Grosso do Sul, hoje não conseguem mais prover a sua
subsistência e a de suas crianças.
Mas, além das
consequências para a economia indígena, esse processo de confinamento
criou problemas para a sua organização social. Como já afirmado acima,
espalhavam-se em pequenos núcleos macrofamiliares, autônomos, sob a
autoridade dos mais velhos, ñanderu ou tekoaruvicha. Quando a situação
em determinado espaço, por diversas razões, se tornasse inadequada,
buscavam outros espaços, dentro do mesmo grande território. Novas
aldeias se constituíam. O processo de confinamento obrigou esses núcleos
a buscarem abrigo nas reservas demarcadas pelo SPI, que, para
administrar esses “ajuntamentos” de índios e aldeias, criou a figura dos
capitães, líderes indígenas mais familiarizados com o modo de vida
ocidental, nomeados, arbitrariamente, líderes máximos dentro das
reservas. E, para ajudá-los a exercer o poder e a manter a ordem, sobre
quem não tinham poder nenhum, foi criada, também, a polícia indígena. Na
medida em que o território indígena tradicional foi sendo ocupado pelas
diversas frentes de exploração, os grupos macro familiares foram sendo
obrigados a se deslocar para dentro das reservas e, dessa forma, além de
conviver e disputar lotes cada vez mais reduzidos com outros grupos
macro familiares, tinham que submeter-se à autoridade de lideranças
estranhas.
Durante muitos anos, em decorrência da
forte presença repressiva do próprio SPI e depois da FUNAI, e, também,
da persistência de “aldeias refúgio” nos fundos das fazendas, até a
mecanização da atividade agrícola, na década de 1970, foi possível
manter um relativo controle dentro das reservas indígenas.
O
aumento, verificado nos últimos anos, da violência entre os próprios
índios de uma mesma terra indígena, é, certamente, um indicativo
importante para avaliar o grau de tensão e profundo mal estar dentro das
terras indígenas. Essa violência é, inclusive, uma das causas para os
deslocamentos de muitas famílias para a beira de estradas e/ou
periferias urbanas, percebidas pelos índios como únicos espaços nos
quais ainda é possível, embora em condições precárias, deslocar-se, ou
desenvolver a prática do oguata (caminhar), em casos de conflitos e/ou
tensões de diversas ordens. Outros indicativos desse mal estar são,
certamente, os altos índices de suicídio e mesmo o alcoolismo e consumo
de outras drogas, presentes em várias comunidades.
As
crescentes dificuldades na viabilização e funcionamento das instâncias
organizativas e mecanismos próprios de controle interno manifestam-se,
também, nas reiteradas denúncias de violência contra mulheres, crianças e
adolescentes. A mulher ocupava um lugar de grande prestigio no interior
da sociedade guarani. Hoje, as mulheres guarani, em muitos casos,
acabam isoladas e confinadas, em casas e quintais cada vez mais
reduzidos e precários e, como consequência, mais dependentes dos homens e
do dinheiro que estes trazem dos contratos nas usinas de produção de
açúcar e álcool. Como educar seus filhos nesse contexto? Lembra a
pesquisadora Paz Grünberg que a situação desses dois segmentos –
mulheres e crianças – decorre e reflete a precarização das condições
sócio/econômicas da mulher/mãe, que não encontra mais condições para
desempenhar suas funções. Ao referir-se à desnutrição verificada entre
os Kaiowá, Paz Grünberg reconhece que, em muitos casos, esta não é
decorrente diretamente da falta de comida, mas consequência de outros
problemas – um não sentir-se bem por parte da mãe .
Qual
é a participação e a inserção dos guarani nos processos de ocupação
histórica de seu território? Em que sentido massacre e resistência
marcam a trajetória desse povo?
Os
guarani sempre se opuseram à entrega de seus territórios, mas foram, de
certa forma, atropelados pela força, rapidez e violência desse processo.
Resistiram em suas aldeias tradicionais enquanto puderam. Mas, sem o
apoio de ninguém e tendo contra eles os próprios órgãos públicos, como o
SPI e a FUNAI, criados, historicamente, para defendê-los, acabaram
tendo que abrir mão de suas terras e transferir-se para os pequenos
pedaços reservados pelo Estado para aí alojá-los. É importante destacar
sempre que esse processo de confinamento dos guarani e kaiowá, no Mato
Grosso do Sul, se deu ao total arrepio da lei e que a atuação do SPI e
da FUNAI foi, sob esse aspecto, totalmente ilegal porque a Constituição
de 1934 já reconhecia o direito dos índios às terras que ocupavam. E na
década de 1970 encontramos, ainda, a FUNAI, obrigando esses índios a
abandonarem suas terras. É importante destacar esse aspecto legal ou
ilegal que marcou o confinamento dos guarani e Kaiowá no Mato Grosso do
Sul porque hoje utiliza-se contra os índios o fato de não estarem mais
nessas terras, em 1988, ano em que é promulgada a nova Constituição.
Como poderiam estar nessas terras se de lá foram retirados
compulsoriamente e muitas vezes pelos próprios órgãos públicos que
deviam protegê-los?
A partir do final da década
de 1970, os guarani começam a contar com o apoio em suas demandas por
terra de setores da Igreja, através do Conselho Indigenista Missionário –
CIMI, e da sociedade civil, através de ONGs. Verifica-se, na região, a
partir de 1980, um movimento ambivalente. Ao mesmo tempo em que ocorre a
radicalização do confinamento e o simultâneo crescimento da taxa de
suicídios, verifica-se, também, o inicio da quebra desse mesmo processo
histórico de confinamento, mediante o reconhecimento legal de terras
como sendo de ocupação indígena fora das oito reservas demarcadas pelo
SPI. Retomam, a partir de 1980, um total de 11 terras tradicionais, que
somam 22.450 ha, hoje já devidamente demarcadas e de posse dos índios. É
importante lembrar que o total de terras demarcadas pelo SPI, até 1928,
somava 18.240 ha. Diversas outras terras indígenas, que somam,
aproximadamente, 65 mil hectares, seguem em processo de identificação,
ou já estão identificadas, estando os índios, em alguns casos, ocupando
pequenas parcelas da terra pretendida. Cabe lembrar que, em 2007, por
pressão dos índios, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta –
TAC entre a FUNAI, o Ministério Público Federal e as lideranças
indígenas, pelo qual a primeira faria, num prazo determinado, a
identificação de mais 32 terras indígenas para usufruto dos kaiowá e
guarani.
Que
contribuição os estudos sobre a história guarani (enfrentamentos
históricos com colonizadores) trazem para o processo de formação dos
guarani de hoje? Isso tem contribuído para um desenraizamento da cultura
guarani ou para um engajamento?
É
importante destacar que junto com a perda do território instalam-se nas
comunidades guarani escolas e igrejas evangélicas, todas preocupadas em
“ajudar os índios” a sobreviverem em um cenário no qual o seu modo de
vida e seus saberes historicamente acumulados tornaram-se supérfluos e
“imprestáveis”. Parte significativa dos professores indígenas kaiowá e
guarani que hoje lecionam para suas comunidades, estudou em escolas fora
de suas aldeias e são filhos de pais integrantes de igrejas
evangélicas, sendo eles mesmos ativos participantes dessas igrejas. O
modo de vida tradicional dos kaiowá e guarani, sob a ótica do entorno
regional, era e é, certamente, não apenas coisa do passado, mas
entendido como um empecilho para o seu desenvolvimento.
No
entanto, a percepção de parte significativa desses professores – muitos
deles buscaram um espaço no entorno, abandonando a vida na aldeia – é
que, apesar do estudo, eles não conseguiram e não conseguem superar o
preconceito que pesa contra eles pelo fato de serem índios. Ao assumirem
as funções como professores nas escolas que atendem as suas comunidades
de origem, confrontam-se com um processo novo e desafiador, em curso. O
novo texto constitucional de 1988, ao afirmar o direito à diferença e
definir o papel do Estado não mais como agente promotor da integração
dos índios, mas sim de protetor da diferença, impõe a revisão do sistema
educacional no interior das áreas indígenas. De uma escola preocupada
em “preparar” a criança indígena para viver fora de sua comunidade,
emerge o desafio de uma escola voltada para dentro, ou seja, para a
construção de alternativas de futuro a partir e na comunidade. E este
desafio põe os professores índios diante de um problema complexo.
O desafio indígena
Cabe
destacar que os programas de formação de professores Kaiowá e Guarani,
que completam dez anos, deram grande ênfase no estudo e na revisão
crítica da história regional, valorizando, especialmente, a memória dos
mais velhos. E, este estudo, junto com a abordagem antropológica sobre
dinâmica cultural, provocou enorme interesse nos professores indígenas.
Perceberam que a história de seus antepassados e a sua história
constituíam um recurso poderoso para questionar a “história oficial”
regional, em especial, o processo de colonização, no qual perderam suas
terras, que passaram, em muitos casos, pela força, para outras mãos.
Embora a região sul do estado de Mato Grosso do Sul fosse uma região
densamente ocupada por populações indígenas, estas não podiam ser
admitidas pelo governo, pelos colonizadores e pelos historiadores como
entes de direito, como seres inteligentes ou como sociedades organizadas
e aqui já estabelecidas.
O desafio de pensar uma
escola indígena leva-os a perceber o seu passado enquanto continuidade a
ser reconstruída, buscando repensar, a partir dos desafios do presente
as experiências do passado. Percebe-se claramente a alegria e o
potencial de luta que emerge do reencontro e da releitura de sua
história, que contesta leituras sedimentadas por uma determinada
historiografia regional, alinhada ao lado dos colonizadores. Os
professores visualizam novas perspectivas de futuro para suas
comunidades e passam a ter mais clareza sobre o papel político da escola
na construção deste futuro.
Finalizando, podemos
afirmar que os kaiowá e guarani vêm atravessando um momento importante
de sua história. A par do agravamento dos conflitos em torno da posse
das terras e da persistência dos preconceitos e estereótipos,
constantemente reafirmados pela imprensa regional, da violência e dos
muitos outros problemas, os guarani vêm demonstrando extraordinária
capacidade de enfrentamento dessas questões. Preocupados em se capacitar
melhor, estão batendo às portas das universidades, buscam acesso a
tecnologias, em especial a novas mídias, organizam-se melhor e reafirmam
sua identidade guarani, confirmando a grande dinamicidade de sua
cultura.
Fonte: Brasil de Fato
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