PICICA: "Desenhista nato, Marius Bell presenciou de perto esta fase final dos
cinemas. E chegou a pintar mais de nove mil painéis para quase todos os
cinemas manauenses da época. Tornando-o, com certeza, um personagem
importante para a História da arte e da cultura no Amazonas. "
Marius Bell: Manaus e a História do cinema em cartazes
O que seria do cinema sem seus cartazes? Pois com os cinemas de rua que, até a década de 1990, funcionavam em Manaus, não era diferente. Se você tem mais de 20 anos, com certeza os viu nas entradas, até o fechamento dos últimos estabelecimentos. Seus cartazes figuravam as fachadas de cinemas como o Cine Chaplin, Cine Ypiranga, Veneza e Studio Center.
Desenhista nato, Marius Bell presenciou de perto esta fase final dos cinemas. E chegou a pintar mais de nove mil painéis para quase todos os cinemas manauenses da época. Tornando-o, com certeza, um personagem importante para a História da arte e da cultura no Amazonas.
Ainda na infância, um desenho feito em hora e local impróprios resultaram em uma puxada de orelha e uma expulsão da escola. Ao invés da frustração, o fato direcionou e impulsionou a vida deste homem para as artes, especialmente aos desenhos e as tintas.
Próximo à sua maior obra, pintado no muro lateral da cadeia pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa e que faz fundo para o Largo Mestre Chico, no Centro da cidade, a Revista Babel ouviu e reviveu uma história de amor com as artes e com cultura, relatadas pelo próprio protagonista desta história.
Revista Babel – Para começar a pintar os murais, você precisou gostar das artes. Como e quando surgiu o seu interesse pelas artes plásticas?
Marius Bell – Eu atribuo isso a uma experiência que eu tive no colégio, no primário. Na década de 1960, eu tinha entre 11 e 12 anos e, por conta de um desenho erótico, eu fui expulso do colégio. Mas eu sustento que era um desenho inocente.
RB – Que efeito esse episódio teve de fato na sua vida?
MB – A primeira reação seria eu ficar frustrado, principalmente com aquele desenho que era pesado para a época. A diretora e as professoras que me pediam para fazer os cartazes das datas festivas ficaram horrorizadas. Foi todo mundo em cima. Eu nunca mais vi esse desenho, mas isso me estimulou a querer trabalhar com desenho.
RB – E como foi esse início?
MB – Com a repercussão desse desenho, minha mãe que era daquelas senhoras conservadoras, quando viu ficou uma fera. E o meu castigo foi ter que trabalhar. Passei pelo DERA (Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas), do Exército, onde minha função era limpar os paralelepípedos. A maior parte das ruas de Manaus era assim. Depois, fui trabalhar com pintura de parede.
O despertar mesmo veio aos 20 anos quando, ainda no Exército, um cabo viu uma reprodução que eu havia feito do indiozinho da TV Ajuricaba e se empolgou. Acabou que, quando eu dei baixa, eu saí de lá com uma carta de recomendação para fazer um teste como desenhista. Eu nem passei e ainda me disseram para eu procurar outra atividade.
RB – E aí o que você fez para se virar?
MB – Um amigo meu, da época do DERA, me disse que estavam precisando de um letrista na Amazonas Publicidade. E eu fui fazer o teste. Fui aprovado, mas eu acho que eles estavam precisando muito de alguém, porque hoje eu olho os meus desenhos e acho os traços todos tortos. E é aí que eu entro no mundo da propaganda trabalhando nessa empresa cujos os donos eram Felippe Daou, Milton Cordeiro e o Luís Margarido.
RB – E como surgiu o cinema na sua vida? Eu sei que essa temática é recorrente em seus trabalhos, até hoje.
MB – Quando surgiram os cinemas em Manaus, por volta de 1976, mais ou menos, eu morava no (bairro) São Francisco e o (cinema) Ypiranga ficava por ali. E eu tinha que suportar um painel pintado pelo meu amigo Francisco Alves, do King Kong. E eu ficava imaginando que um dia pintaria um daqueles. Mas nem tinha a noção do tamanho que aquele painel tinha.
RB – E como surgiu o convite para fazer o seu primeiro painel?
MB – Então… eu tinha que suportar o King Kong, toda manhã, e depois mudou para o Búfalo Branco. No terceiro, me convidaram e eu estava no Departamento de Artes, longe das tintas. Era para fazer o cartaz de Guerra nas Estrelas. Não deu muito certo e não foi pra frente, acabei não fazendo.
RB – Como você foi parar no Ypiranga então?
MB – Eu tinha um vizinho que era porteiro do cinema e ele sabia que eu desenhava. Um dia ele foi na minha casa e me disse que o dono do cinema queria falar comigo. Eu fui. E lá ele me encomendou um painel. Era um peixe assassino, nem lembro mais o nome. Mas o primeiro destaque foi o “Expresso da meia-noite” e depois veio o “Último tango em Paris” e uma série de outros filmes.
RB – E para o Cine Chaplin, foi indicação também ou você já conhecia o Joaquim Marinho, que era o proprietário?
MB – De 1979 para 1980, eu recebi um convite dele e do sócio dele, que estavam montando um cinema. O primeiro cartaz que eu fiz para ele foi o “Bye bye Brasil”. E aí eu fiquei entre o Chaplin e o Ypiranga. Foi aí que começou uma revolução.
RB – Que revolução?
MB – O cinema do Marinho foi criado para ser um cinema de arte, para intelectuais, e esses filmes não davam um público necessário para manter. Lançamos vários por lá. E foi uma loucura, porque no Ypiranga eu pintava e o cartaz ficava um mês. Já no Chaplin, o filme mudava quase todo dia.
RB – E você dava conta de pintar tantos painéis em um curto espaço de tempo?
MB – Na época, isso me irritava um pouco. Mas hoje eu agradeço. Isso me deu muita habilidade e velocidade na pintura. Foi nessa época que apareceram os grandes filmes, como “Os Trapalhões”, “Embalos de sábado a noite”…
RB – Você lembra qual foi o último cartaz que pintou?
MB – O último foi uma reprodução, na verdade. Eu me ausentei da cidade por três anos e, quando voltei, o cinema já estava naquela fase final. Quando eu fui ao centro vi um homem aranha muito estranho e negociei com ele para refazer aquele painel. O filme já estava em cartaz. Só que eu não sabia que aquele era o meu último. Se eu soubesse, teria feito uma loucura, porque o Marinho também embarcava nas minhas viagens. Acabou que foi o último e, a partir dali, os cinemas foram fechando.
RB – O que ficou dessa época dos cinemas de rua para você?
MB – Uma boa lembrança. Eu trabalhava sempre com música, então tem toda uma relação dos meus cartazes com música. Aquela música dos anos 1980. Mas também tem alguns “causos” interessantes como, por exemplo, o painel que incomodou o Papa (João Paulo II), quando ele veio pernoitar na Joaquim Nabuco, que foi “O Convite ao prazer”. E eu tive que colocar uma tarja, pois o filme era erótico. Nós cobrimos e fizemos uma saudação a ele.
Tinha os roubos também. A gente colocava os painéis em uma noite e na manhã seguinte já não estavam no lugar.
RB – Você chegou a reproduzir algum painel seu?
MB – Sim, o cartaz de “Dona Flor e seus dois maridos”. Fiz um para o cinema e outra para a “Andanças de Cigano”, a pedido do jornalista Mário Adolfo, que na ocasião iria homenagear Jorge Amado.
RB – E depois dos cartazes você fez o quê?
MB – Depois do cinema, eu passei a me dedicar na produção de telas com temas voltados para os astros de cinema, as grandes divas e tudo mais. Fiz algumas exposições, duas individuais e uma coletiva.
RB – E qual o projeto atual? Alguma coisa em vista?
MB – Estou em negociação para exposição com uma cantora portuguesa. Tenho a intenção de um dia levar minhas obras para o exterior. Por agora, estou pensando em uma homenagem aos amigos escritores e artistas, no estilo arte pop, abrindo um espaço no cebo do alienígena, na Praça Heliodoro Balbi (Praça da polícia), em Manaus.
Fotos: Jorge Leite
Imagens dos cartazes: arquivo pessoal de Marius Bell.
Fonte: Revista Babel
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