PICICA: "Ainda é incerta a
influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se
deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que
domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores
conservadores — que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América
Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E
chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em
que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras — e
testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo — ao
contrário do novo líder católico."
América Latina: a última fronteira dos papas
15/03/2013
Por Hugo Albuquerque
Por Hugo Albuquerque | UniNômade, blogueiro do Descurvo
Loucura Sagrada
Sonhei que o Papa enlouquecia
E ele mesmo ateava fogo ao Vaticano
E à Basílica de São Pedro.
Loucura sagrada!
Porque Deus atiçava o fogo que os
Bombeiros, em vão, tentavam extinguir.
O Papa, louco, saia pelas ruas de Roma
Dizendo adeus aos embaixadores
Credenciados junto a ele
Jogando a Tiara ao Tibre.
Espalhando pelos pobres, todos,
O dinheiro do banco do Vaticano.
Que vergonha para os cristãos!
Para que um Papa viva o Evangelho
Temos que imaginá-lo em plena loucura
(Dom Hélder Câmara)
A escolha do cardeal Bergoglio como papa Francisco I é
um marco que vai para além do fato dele ser o primeiro não-europeu em
mais de um milênio — e o primeiro jesuíta — a ocupar o trono de
pontífice romano. Sua escolha vai mais além até do significado peculiar
que representa na continuidade da cruzada internacionalista neoliberal
da Igreja — na esteira de Wojtyla e Ratzinger, cujas indicações marcaram
uma gradual expansão para além da Itália. Trata-se de um marco singular
sobretudo porque, por meio de sua aclamação, a Igreja reconhece a
América Latina, onde estão a maior parte de seus fiéis, como fronteira
final e, ao mesmo tempo, seu refúgio existencial.
Se com Wojtyla o
internacionalismo católico vinha do Leste para afirmar o Oeste, agora,
ele se põe ao Sul para defender e salvaguardar o Norte. Sob Ratzinger,
havia a preocupação de reevangelizar a Europa, de centrar os esforços da
Igreja numa Europa extra-italiana, mas isso não surtiu lá muito efeito.
Enquanto a Igreja se preocupava com a Europa e os Estados Unidos
voltavam-se para o Oriente Médio, a América Latina via suas minorias
usarem os mecanismos da (limitada) democracia representativa contra quem
os inventou: mesmo depois dos ciclos ditatoriais militares e a
distensão pela pax neoliberal, ainda havia resistência e luta. A
história continuou viva e a América Latina foi o maior laboratório de
experiências políticas da última década.
O cardeal Bergoglio esteve
presente em todos esses ciclos. Seus silêncios e intervenções formam a
cacofonia do discurso da dominação na América Latina nas últimas
décadas. Ter se calado em relação à ditadura local enquanto gritava para enquadrar a Companhia de Jesus – tanto que acabou suspeito de participação em episódios bisonhos de desaparecimentos durante o regime militar argentino – ou, também, sua mudez com Menem e sua histeria contra o casal Kirchner — sobretudo sua investida estridente contra o casamento gay na Argentina — são interessantes e relevadores contrastes.
Bergoglio foi o mais
papista entre os jesuítas, tanto que virou papa — e Bergoglio é, hoje, o
mais europeu dos latino-americanos. Sua arritmia atenta para uma
aritmética moderna de indignação seletiva — e muito bem calculada. Sua
presença no trono de Pedro é uma reação política à liberação reformista
latino-americana: em verdade, uma nova contrarreforma. Se a
Igreja se voltou contra o Leste Europeu, tanto menos por democracia —
coisa com a qual jamais compactou, platônica que é — e mais por outros
interesses, agora o alvo da vez parecem ser os governos
democrático-populares latino-americanos.
Enquanto a multidão que se mobiliza em torno do legado de Chávez na Venezuela é, em grande parte, católica, a hierarquia de sua Igreja é visceralmente antichavista — a ponto de ter participado do golpe de 2002, como não deixa de ser recorrente na nova onda de golpes brancos que assolam governos populares: em Honduras e no Paraguai, onde a participação do clero foi decisiva. Francisco I tem uma importância geopolítica central para o Vaticano, portanto.
Outro ponto é a captura da potência produtiva dos pobres. Depois de décadas sob o discurso da ortodoxia marxista, o quadro mudou com forças populares antineoliberais que pensam para além da racionalidade industrial e do fetiche proletarista: a esquerda se abriu para os pobres, reconheceu sua dimensão produtiva e governou para o povão ou, até mesmo, com o povão.
O novo papa, ao assumir um discurso generalista e abstrato pelos pobres, que coloca a caridade — e a carência — no lugar da catalisação do desejo de viver, emprega um meio, poderoso, de adestrar e fazer novamente dóceis quem se levantou depois de séculos de submissão. A estética da resignação e da renúncia se afirma sobre a vida.
Ainda é incerta a influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores conservadores — que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras — e testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo — ao contrário do novo líder católico.
Francisco pode ser o santo de Assis — que falava com os animais e pregava o amor aos pobres — quanto o Xavier, jesuíta colonizador dos confins do Globo: e, como ele, os jesuítas protagonizaram a dialética da colonização latino-americana; de um lado havia os colonizadores laicos (como os bandeirantes) fazendo dos nativos objetos a serviço da metrópole, enquanto a Companhia de Jesus seguia nas clareiras abertas pelos primeiros fazendo dos índios su(b)jeitos da Cristandade.
Os jesuítas faziam dos índios sujeitos: eles eram postos sob a Lei da Cristandade, embora fossem assim submetidos enquanto gente, e não como coisa, o que abria uma linha de fuga em meio ao paradoxo. E os jesuítas tornavam-se, assim, perigosos. Mas jamais romperam com a Igreja.
Figuras como Bergoglio são esses ícones do lastro fiduciário que sempre houve para com o papa, unindo o (aparentemente) irascível e insubmisso da Companhia de Jesus com a hierarquia celeste. Mas Bergoglio particularmente talvez tenha transposto uma linha vital, na ditadura pela qual passou seu país, para ter se tornado tão confiável. O tensionamento entre o biopolítico e o bipoder na Terra do Sol chega, portanto, em um nível altíssimo.
Fonte: Rede Universidade NômadeEnquanto a multidão que se mobiliza em torno do legado de Chávez na Venezuela é, em grande parte, católica, a hierarquia de sua Igreja é visceralmente antichavista — a ponto de ter participado do golpe de 2002, como não deixa de ser recorrente na nova onda de golpes brancos que assolam governos populares: em Honduras e no Paraguai, onde a participação do clero foi decisiva. Francisco I tem uma importância geopolítica central para o Vaticano, portanto.
Outro ponto é a captura da potência produtiva dos pobres. Depois de décadas sob o discurso da ortodoxia marxista, o quadro mudou com forças populares antineoliberais que pensam para além da racionalidade industrial e do fetiche proletarista: a esquerda se abriu para os pobres, reconheceu sua dimensão produtiva e governou para o povão ou, até mesmo, com o povão.
O novo papa, ao assumir um discurso generalista e abstrato pelos pobres, que coloca a caridade — e a carência — no lugar da catalisação do desejo de viver, emprega um meio, poderoso, de adestrar e fazer novamente dóceis quem se levantou depois de séculos de submissão. A estética da resignação e da renúncia se afirma sobre a vida.
Ainda é incerta a influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores conservadores — que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras — e testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo — ao contrário do novo líder católico.
Francisco pode ser o santo de Assis — que falava com os animais e pregava o amor aos pobres — quanto o Xavier, jesuíta colonizador dos confins do Globo: e, como ele, os jesuítas protagonizaram a dialética da colonização latino-americana; de um lado havia os colonizadores laicos (como os bandeirantes) fazendo dos nativos objetos a serviço da metrópole, enquanto a Companhia de Jesus seguia nas clareiras abertas pelos primeiros fazendo dos índios su(b)jeitos da Cristandade.
Os jesuítas faziam dos índios sujeitos: eles eram postos sob a Lei da Cristandade, embora fossem assim submetidos enquanto gente, e não como coisa, o que abria uma linha de fuga em meio ao paradoxo. E os jesuítas tornavam-se, assim, perigosos. Mas jamais romperam com a Igreja.
Figuras como Bergoglio são esses ícones do lastro fiduciário que sempre houve para com o papa, unindo o (aparentemente) irascível e insubmisso da Companhia de Jesus com a hierarquia celeste. Mas Bergoglio particularmente talvez tenha transposto uma linha vital, na ditadura pela qual passou seu país, para ter se tornado tão confiável. O tensionamento entre o biopolítico e o bipoder na Terra do Sol chega, portanto, em um nível altíssimo.
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