março 15, 2013

"Dois filmes para duvidar do que conhecemos", por Bruno Carmelo

PICICA: "Nestes dois filmes complexos e perturbadores, o procedimento é o mesmo: apreender a natureza, interpretá-la, analisar suas entranhas, microscopicamente, para depois admitir, em sua pequenez humana, que ainda não conhecemos tudo, que a imagem nunca vai traduzir ou conter o real. Esta postura agnóstica – ou simplesmente racional, cética – é de um profundo humanismo, porque valoriza acima de tudo o conhecimento, tanto pela ciência quanto pela arte."

Dois filmes para duvidar do que conhecemos

 
Caverna 1
Caverna dos Sonhos Esquecidos e Sem Sol sugerem: sempre que ser humano aproxima-se da realidade, esta escapa-lhe entre os dedos

Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.

Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010) e Sem Sol (1982), dirigidos por Werner Herzog e Chris Marker, respectivamente, partem de temas distintos: o primeiro investiga as pinturas rupestres mais antigas da História, descobertas na gruta de Chauvet, na França. Já o segundo mostra os relatos de viagem de um homem anônimo, que percorreu o Japão, Guiné-Bissau e outros países, estabelecendo reflexões sobre as culturas e ritos locaisApesar dos pontos de partida distintos, a obsessão que perpassa os dois filmes, e de certa maneira a filmografia inteira de ambos os cineastas, é a mesma: o papel da memória e a representação da natureza em imagens.

Isto não é um leão

Herzog possui um interesse manifesto pelas artes, pela história e pela arqueologia, mas o que realmente impulsiona o cineasta a adentrar a caverna francesa é a busca de uma nova possibilidade de representação. Segundo suas próprias palavras, o grande interesse nas pinturas pré-históricas, com seus animais e desenhos de caça, é poder imaginar como os homens viviam naquela época, e como representavam sua própria rotina através dos rabiscos nas paredes. Diante da impressão de movimento dos animais, ele exclama: “É quase um protocinema…”

cave_of_forgotten_dreams_movie_image_Werner_Herzog 

O cineasta convida diversos tipos de técnicos para o local, de historiadores de arte a paleontólogos, e mesmo um criador de perfumes. Este último, a partir dos cheiros encontrados na gruta, tenta conceber o cotidiano dos humanos de antigamente. Ora, o cinema contemporâneo pode não reproduzir o odor em sessões, mas as conclusões deste especialista em cheiros, embora não sirvam como documento científico, funcionam como começos possíveis de uma nova história – são como sonhos. Por mais que os cientistas afirmem com certeza a data em que foi feito cada desenho, ou o movimento preciso dos homens paleolíticos ao desenhá-los, Herzog prefere questioná-los e abraçar a incerteza, o decalque platônico entre o real e sua representação, inerente a qualquer imagem.

Quando encontra um jovem arqueólogo, o diretor torna-se fascinado pelos sonhos do rapaz, que passou a dormir e vislumbrar leões após a visita à caverna. O cineasta pergunta: “Mas você sonhava com leões verdadeiros, ou desenhos de leões?”. “Os dois”, responde o outro. Esta é a verdadeira fascinação deste magnífico documentário, Caverna dos Sonhos Esquecidos: compreender o que se perde, se ganha ou se transforma na apreensão artística em imagens.

Perder o esquecimento

Sol 1 

Sem Sol, de Chris Marker, começa com a seguinte narrativa: “A primeira imagem de que ele me falou era a de três crianças numa estrada na Islândia, em 1965. Ele disse que, para ele, esta era a imagem da felicidade, e também que ele tinha tentado várias vezes combiná-la com outras imagens – sem sucesso. Um dia – ele disse –  eu vou colocar esta imagem no início de um filme, seguida por uma longa faixa preta. Se as pessoas não virem a felicidade na imagem, pelo menos elas verão o preto”.

Como a caverna de Herzog, os mitos de Marker são representações de fatos passados, memórias cristalizadas em gestos humanos. A narração inicial separa dois aspectos da percepção humana: a evidência concreta (qualquer um pode constatar, diante de uma tela preta, que se trata de uma tela preta), e a interpretação dependente do tempo e do espaço (nem todas as pessoas vão interpretar a imagem como símbolo de felicidade, algumas talvez vejam o tédio, a apatia etc).

O que interessa ao francês é a passagem de uma instância semiológica à outra. Quando é que um fato (a presença de três garotinhas) torna-se uma interpretação (a imagem da felicidade)? Marker seleciona imagens de diversas cerimônias no Japão, que vão de homenagens à alma de bonecas quebradas aos templos dedicados aos gatos perdidos. Os lugares estão povoados por lápides, estátuas, pedras (como as pedras das cavernas de Chauvet), mas as pessoas veem nestes símbolos mais do que pedras. Para elas, trata-se de uma possibilidade de contato com o além, uma comunicação transcendental. Não é por acaso que tanto Herzog quanto Marker flertam com o discurso religioso: os filmes de ambos partem da realidade concreta para compreender significados e valores abstratos – que permeiam tanto a filosofia quanto as crenças metafísicas.

Sol 2 

O título do filme, Sem Sol, remete a uma obra imaginária, cuja ideia é apresentada ao espectador pela narradora. Esta seria uma história diferente de todos os roteiros em que personagens perdem a memória. Pelo contrário, a trama apresentaria um homem que perde o esquecimento, que passa a se lembrar de tudo. Um homem que não pode mais interpretar as lembranças de acordo com suas experiências sociais, porque tem à sua disposição uma série de fatos objetivos, inquestionáveis. Este homem está fadado a uma sina, à perda do tempo, do espaço, e de sua própria subjetividade.

Jacarés albinos

Após visitar a caverna, o filme de Herzog toma um rumo inesperado ao adentrar uma estufa próxima da gruta de Chauvet, onde foram criados artificialmente jacarés de todos os tipos. O cineasta observa dois jacarés albinos, diferentes dos demais. Logo, ele imagina se os humanos, diante das pinturas rupestres, não são como esses jacarés, incapazes de compreender a natureza que os cerca: serão eles os diferentes, ou todos os demais? Como estes animais interpretam os jacarés comuns ao redor? O que pensariam do mundo exterior, se saíssem da estufa?

Caverna 4 

A cena supõe que o próprio ser humano vive preso em sua caverna, interpretando e representando subjetivamente o mundo ao redor. Talvez todos estejamos errados. Talvez estejam erradas as conclusões dos cientistas, de que os leões pré-históricos não tinham jubas, porque as pinturas também não tinham. O que garante que os homens paleolíticos simplesmente não tenham esquecido de pintá-las, ou tenham preferido, por uma razão qualquer, deixar este detalhe de fora do desenho? Não há certeza. Da mesma maneira, Marker capta os rituais asiáticos e africanos e, para livrar-se do peso documental dos fatos, transforma-os em rabiscos digitais, alterados pelo computador, “para mostrá-los como verdadeiramente são: apenas imagens”.

Nestes dois filmes complexos e perturbadores, o procedimento é o mesmo: apreender a natureza, interpretá-la, analisar suas entranhas, microscopicamente, para depois admitir, em sua pequenez humana, que ainda não conhecemos tudo, que a imagem nunca vai traduzir ou conter o real. Esta postura agnóstica – ou simplesmente racional, cética – é de um profundo humanismo, porque valoriza acima de tudo o conhecimento, tanto pela ciência quanto pela arte.

Sol 3 

Caverna dos Sonhos Esquecidos e Sem Sol terminam em um tom agridoce, misto de sucesso e fracasso. Os diretores conseguiram extrair de suas imagens (a gruta para um, os rituais para outro) diversas reflexões valiosas sobre a natureza do homem, da arte, do tempo e da memória. Mas este conhecimento nunca os levou à Verdade, com um “v” maiúsculo, esta busca filosófica incessante. Ambos os filmes são concluídos com questões retóricas, abertas, sobre seu próprio valor. Esta é a sina da arte metalinguística, filosófica, reflexiva: a cada vez que o artista aproxima-se da realidade, ela lhe escapa por entre os dedos.

Fonte: Outras Palavras

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