março 26, 2013

"Os batalhadores brasileiros, de Jessé Souza", por Bruno Cava

PICICA: "Jessé demole preferencialmente as teorias da modernização. Essas teorias ainda emolduram os debates que se veem na imprensa e em boa parte da academia. À esquerda, o caso é modernizar o estado, dotá-lo de novas instituições e mecanismos para assegurar a eficiência, a sanidade fiscal, o combate à corrupção, a transparência e a sustentabilidade de suas ações. À direita, o estado é o atraso, devendo ser depurado de ineficiência, gastança, corrupção e fisiologismo. As posições no fundo se avizinham. A esquerda modernizante, embora diga vivas ao “estado”, não percebe que o estado modernizado também serve ao desenvolvimento do modo capitalista, falhando em problematizá-lo. A direita modernizante, por sua vez, continua a querer “estado”, um estado oculto, uma “estrutura ausente” em que as relações de classe estejam mistificadas como liberdades individuais e econômicas. O que significaria voltar, noutros termos, à égide da economia política clássica e neoclássica — o que Marx e alguns marxistas vêm devastando como teoria e práxis há século e meio.

Os batalhadores brasileiros, de Jessé Souza
Resenha de SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros; nova classe média ou nova classe trabalhadora? 2a ed. BH: UFMG, 2012 [2010].



O livro de Jessé Souza se destaca no debate sobre as profundas transformações por que vem passando a sociedade brasileira nos últimos dez anos.

Em primeiro lugar, simplesmente por reconhecer essas transformações, e reconhecê-las como profundas e duradouras.

Em segundo, por articular a pesquisa de campo com a massificação de políticas sociais do governo Lula. Nesse aspecto, Jessé está bem situado numa discussão sobre o lulismo e a aparição da dita “nova classe média” no Brasil (ver, entre outros, André Singer, Giuseppe Cocco, Francisco de Oliveira, Marcelo Neri e Marcio Pochmann).

Sobretudo, o mérito deste livro consiste em não se apressar a sínteses sobre os sentidos do lulismo e da nova composição social, fechando o discurso sobre acontecimentos muito difíceis de fixar. Assim como reconhece as transformações, Jessé reconhece as polivalências, ambiguidades e paradoxos que habitam essa esteira de transformações, e cujo desenlace ainda é uma obra aberta, a depender mais das lutas políticas do que de veredito intelectual.

O autor fala de uma “nova fase do capitalismo mundial e brasileiro”, e aponta a possibilidade de mudança nesse contexto, dentro e além do modo de produção capitalista. Contra qualquer condenação que cerre o discurso de dogmatismo, para Jessé pode ser produzido, sim, um sentido libertador em meio à dinamização do mercado interno, à relativa inclusão social, ao desenvolvimento socioeconômico e ao crescente acesso a renda e consumo por grande parcela da população brasileira.

O caminho dessa construção passa, necessariamente, pelos novos atores que ele decidiu estudar com um mutirão de pesquisadores-auxiliares.

Com ânimo descritivo de uma formação social em estado nascente, em Os batalhadores brasileiros se tenta apreender o todo a partir de relatos e conclusões fragmentárias, segundo uma matriz sociológica sincrética, que alterna chaves de leitura de Bourdieu (principalmente), Weber, Boltanski e Marx. Ao longo do livro, capítulo a capítulo, são desenvolvidos perfis do novo “batalhador brasileiro”: o batalhador do microcrédito, o batalhador que sofre racismo, a batalhadora empreendedora e superexplorada, redes informais, o feirante, a família, a igreja neopentecostal.

O propósito é fabricar conhecimento “desde baixo”, engajadamente, conciliando crítica e pesquisa de campo. Esta se presta a captar os dramas, anseios, sonhos, preocupações e percepções dessa nova formação social. O compromisso é também com a dor e o sofrimento, como desafios para a alteridade, para a relação entre sujeitos na pesquisa. O novo “social” que se engendra deve ser compreendido a partir das dores do parto, daquilo que existencialmente tensiona e demanda, de como são enfrentados os desafios concretos pelas pessoas em carne e osso. Jessé pretende inclusive avançar esse estudo no plano da subjetividade, sublinhando que, muito mais do que uma categoria econômica, de renda ou consumo, o que deve ser pesquisado é também “uma nova estética, uma nova psicologia e um novo estilo de vida em todas as dimensões”. Tudo isso sem se render a leituras simplórias. Dessas que fazem da coleta de opinião e das primeiras informações um juízo definitivo, como num típico populismo metodológico de má consciência que, para glorificar a opressão e o oprimido, converte a fala inacabada e polissêmica do oprimido em um atestado de verdade e dogma de pesquisa. O conhecimento vem com deglutição.

Os batalhadores, por um lado, de fato, cumpriram a catequese do capital financeirizado. Enquadraram-se às exigências extraordinárias de um mercado de trabalho e de oportunidades pautado por flexibilidade de posições, insegurança permanente e competividade intensa. Um mercado que solicita empreendedores e empregados dispostos a sacrificar quase todo o tempo de vida para ser bem sucedido. Os batalhadores tem de ser diligentes, astutos, determinados, espertos, polivalentes. Não podem se abater diante da adversidade, capazes de manter o futuro como um foco palpável de ação e expectativa, que os impele a continuar batalhando. Esse desafio, os batalhadores enfrentam contra um histórico de violência simbólica por parte da sociedade brasileira, de preconceito e precariedade onde quer que se olhe, várias gerações atrás sem interrupção. Para dar conta disso, essa formação social  se apega ao que tem à mão, organiza-se em redes de cooperação e fraternidade, promove formas de comunidade e arranjos produtivos, no que atravessa as instituições e subsistemas que vai encontrando pelo caminho: a família ampliada, a igreja, o culto, a fé e o misticismo popular, as redes informais de comércio e socialidade, as plataformas e políticas sociais dos governos mais à esquerda. Para não sucumbir quando as crises se abatem sobre eles, orgulha-se do próprio sofrimento, transforma a eventual pobreza em motivo para mais luta e dignidade. Um “estoicismo prático do trabalhador”, como chama o autor, com o que perseguem exaustivamente viver melhor, “subir na vida”, crescer existencialmente as condições para si e os seus. Com isso, esses batalhadores conseguem se incluir e passam a ser reconhecidos, com efeito, como incluídos pelo capitalismo: um “degrau” acima da “ralé” (título de outro livro do autor), improdutiva e sem futuro, mas ainda, de toda sorte, um “degrau” abaixo da velha classe média branca e ilustrada.

Jessé descarta a identidade entre batalhadores e “classe média”, entendida como as camadas sociais tradicionalmente intermediárias entre ricos e pobres no Brasil. A pirâmide social mudou, tornou-se mais complexa.

É aí, nesse atrito entre batalhadores e velha classe média, que o livro exerce a sua agressão crítica.

A velha classe média, através das cátedras e da grande imprensa, despreza as qualidades e determinações positivas que saturam a nova classe de batalhadores. Desdenham-nos. Não aceitam sequer percebê-los como um sujeito histórico. Limitariam-se a mero objeto, um subproduto de uma década de políticas sociais “assistencialistas” e “eleitoreiras”. Insuficiente. Noutras palavras, para as elites enraizadas na universidade pública e na grande imprensa, pobre continua pobre independente de ter mais acesso à renda, consumo e cultura. Continua infausto de “capital cultural”. Continua cafona, alienado, conservador, sem consciência política. Não é qualificado o suficiente para exibir os gestos, o bom tom, a sensibilidade, as sutilezas civilizatórias com que a velha classe média não só se enaltece arrogantemente em todos os espaços que sempre hegemonizou com a polícia às costas, como também se legitima a própria boa consciência, chamando de “mérito” o que na verdade não passa de herança e privilégio, na mais descarada falsidade ideológica da história da burguesia mundial.

Vale cotejar, nesse debate, por exemplo (Jessé prefere fustigar Sérgio Buarque e seus herdeiros), com André Singer. Na avaliação sobre o lulismo (SINGER, 2012), o professor uspiano assinala um realinhamento eleitoral a partir de 2006. Esse fenômeno da ciência política teria ocorrido essencialmente em razão das políticas de transferência de renda, aumento do salário mínimo e ampliação do crédito popular. Essas políticas se tornaram autônomas em relação às eleições, passando a determinar o resultado delas em vez do contrário. O realinhamento teria então neutralizado a tradicional oposição entre esquerda e direita, fazendo o cenário político brasileiro convergir numa nova dualidade, agora entre pobres e ricos. Uma dualidade retrógrada e despolitizante. Com Lula, se firmaria um novo pacto classista, um New Deal renovado, baseado em algumas benesses parciais e “não-estruturais” aos pobres e reformas graduais, de prazo demasiado longo, até favorecendo o modo de produção capitalista e o aprofundamento da exploração.
Nesse outro livro, digamos, mais prosaico na análise, a tese de Singer se acerca, ainda que devagarzinho, ao tom apocalíptico de seus cupinchas da USP, que não cansam de chorar o vazio da política e o fim da esquerda como alternativa factível no contemporâneo. A única opção, embora no chororô admitam quase impossível, é resgatar o elo perdido que o lulismo teria fossilizado, ao trair… ao trair quem? Em português claro, eles mesmos, enquanto intelectuais-heróis a guardar o pote transcendental da verdadeira esquerda. A genealogia dessa moral da impotência não está distante.

Jessé demole preferencialmente as teorias da modernização. Essas teorias ainda emolduram os debates que se veem na imprensa e em boa parte da academia. À esquerda, o caso é modernizar o estado, dotá-lo de novas instituições e mecanismos para assegurar a eficiência, a sanidade fiscal, o combate à corrupção, a transparência e a sustentabilidade de suas ações. À direita, o estado é o atraso, devendo ser depurado de ineficiência, gastança, corrupção e fisiologismo. As posições no fundo se avizinham. A esquerda modernizante, embora diga vivas ao “estado”, não percebe que o estado modernizado também serve ao desenvolvimento do modo capitalista, falhando em problematizá-lo. A direita modernizante, por sua vez, continua a querer “estado”, um estado oculto, uma “estrutura ausente” em que as relações de classe estejam mistificadas como liberdades individuais e econômicas. O que significaria voltar, noutros termos, à égide da economia política clássica e neoclássica — o que Marx e alguns marxistas vêm devastando como teoria e práxis há século e meio.

Isto significa que, para esquerda e direita modernizantes, quer dizer, para a velha classe média e suas cátedras e jornalistas, é preciso antes modernizar o pobre, a permitir que galgue a condição de classe média — como aqueles já teriam conquistado algum dia por mérito próprio. É o esclerosado argumento da educação-vem-primeiro. Eles não teriam “capital cultural”, não estão preparados, não reúnem os elementos espirituais para uma cidadania plena. Nada do que o governo Lula tenha feito valeu como mudança estrutural, porque o “povo” continua sem educação. Cotas nas universidades? Bolsa família? Pontos de cultura? Não valem um tostão furado, sem primeiro investir em educação fundamental e média. Sabe quanto ganha um professor primário?! E por aí vai. Modernizar, nesse sentido, significa primeiro ser como eles, qualificar-se desde cima, desde esse discreto charme de ostentar diplomas, frequentar lugares in em cidades na Europa, fazer compras em Miami ou Nova Iorque, discutir platitudes sobre cultura, livros e filmes, como se fossem lazer.

Para a teoria da modernização, da esquerda à direita, o subdesenvolvimento é um problema 1) social de educação e 2) político de corrupção do estado e patrimonialismo. O mercado, a velha classe média e os grandes proprietários/empresários da classe alta, esses é que são incorruptíveis, eficientes, intransigentes em termos morais. Essas pessoas que têm em Eike Batista ou Justus seu referencial é que seriam competentes para arrancar os pobres da noite bárbara dos trópicos. Jessé Souza escreve linhas agudas contra essa violência de classe, erigida disfarçadamente à doxa das humanidades universitárias. Ele não vacila em estabelecer a equivalência: tese patrimonialista = racismo de classe = culturalismo burguês. Por trás da boa consciência do progresso, do mérito e da educação, persiste a mente colonizada, o estigma ao pobre (batalhador ou não) e o horror à favela. Numa palavra: o preconceito.

É um livro difícil de precisar tese inequívoca sobre o lulismo, no que talvez consista sua grande qualidade. Porque a perplexidade marca o nosso tempo pós-Lula. Reconhece que as políticas sociais sejam “amplamente insuficientes”, mas não cessa de repetir que algo está acontecendo, algo latente, subterrâneo. As sagas biográficas desenvolvidas em Os batalhadores dão pistas sobre trajetórias, às vezes breves lampejos, onde alguma coisa se passa. Precisamos deixar para trás estruturas obsessivas, esquemas didáticos e certa afetação deprimente na hora de imaginar as coordenadas da luta e das alternativas. Isso não funciona, chega de complexo de Paulo Martins.

O livro esboça uma épica do pobre brasileiro no século 21, no que talvez cometa o erro de misturar-se impudicamente com algumas prescrições da ética do trabalho e dos modos de legitimação, bem ao gosto weberiano. A pesquisa pode afinal ceder à incomensurabilidade do sofrimento, e não conseguir mais distanciar-se o suficiente. Sensivelmente, não deve ser fácil descarregar-se das paixões tristes que geram o cansaço, o esforço e a tensão das batalhas do labor.

Os batalhadores de Jessé são criaturas e criadores de sua condição. São determinados pelo modo produtivo e, paradoxalmente, determinantes de uma inovação dentro e além desse mesmo modo de produção, um elemento de autonomia e autoprodução, que é a própria condição para a libertação. Uma tarefa em andamento.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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