março 19, 2013

"A Vida dos Outrossss" (Psicotramas)

PICICA: "Há que tomar cuidados quando se espia o alheio, pode-se carregar dores desconhecidas. Pode-se até resolvê-las ou resolver-nos. Existem taaantas histórias andando pelas estações (da vida, de vida)." 

A Vida dos Outrossss

Revi “Das Leben der Anderen” (Florian Henckel von Donnersmarck, 2006). Filmaço!!


Me toca especial-mente a falta de opções dos personagens y a encruzilhada mudar&não mudar. Admiro a bravura deles em se manterem vivos, até onde ainda é possível. O que o filme tem de + admirável, além da óbvia y nítida precisão&concisão de narrativa&roteiro são os dilemas enfrentados tanto pelos homens ‘do Bem’ quanto pelos ‘do Mal’…

Há que tomar cuidados quando se espia o alheio, pode-se carregar dores desconhecidas. Pode-se até resolvê-las ou resolver-nos. Existem taaantas histórias andando pelas estações (da vida, de vida).
boa Christa (Martina Gedeck) precisa responder a si mes-ma até onde pode fazer concessões ao sistemão RDA; até onde colaborará pra matar os que ama. O mau Gerd Wiesler (o estupendo&saudoso Ulrich Mühe,  ele dá conta duma gama de emoções&afetos quase sem movimentar 1 músculo do rosto) precisa responder a si mes-mo até onde pode fazer concessões a seu lado bom, sem perder seu posto no sistemão.

E aí caímos no que o nauseabundo chefão-Minister dispara numa festa, conversando com Dreyman (Sebastian Koch): “Seus personagens mudam, diferente do que acontece na vida… onde ninguém muda”. Isso me remeteu a Bergman, que tinha essa visão amarga da Existência arraigada em si. Ou ainda poderíamos falar do synthoma?…

Christa tentou ser má e… suicidou. Jenska, o diretor de teatro e amigo de Dreyman, tenta aturar o sistemão e… também suicida. Gerd Wiesler tenta ser bom, vê-se rebaixado num serviço menor nos correios, pero de certa forma consegue uma vitória íntima, né?… mesmo sem o livro e a glória final do reconhecimento por Dreyman fica a sensação de que coletaria&entregaria cartas até a morte vir buscá-lo…

Minister perdido na nova Alemanha reunificada tenta adaptar-se à nossa realidade não-paranóica – ou menos paranóica, como se queira – e num consegue.

Nessa linha de raciocínio, Dreyman seria a incógnita maior. O diretor Florian concede a ele uma nova relação amorosa, uma nova perspectiva de vida, ao final. Creio que existem pessoas com essa capacidade enorme de se reciclarem, de passarem sobre dramas terríveis.

Assistindo 1 filme assim tem-se uma idéia do que autores engajados&politizados mencionam sobre o Inferno aqui mes-mo no planetinha. Ou nas refutações de Camus ao existencialismo na linha “há problemas mais importantes a resolver do que dilemas existencialistas.”

Sem deixar de dar certa razão a meu queridíssimo argelino, dilemas existenciais também matam… (vide) Será que Christa e Dreyman seriam amantes-perfeitos numa sociedade livre? – would that be the question?? Que relações amorosas teria Gerd Wiesler numa sociedade livre&KAPITALista? Trocaria ele sua opulenta loura-barcaça profissional por alguma alma gêmea, alguma “solitária-sensível”?

Seja como for, a noção de ‘bondade’ nos realizadores é generosa, e contempla perdão a coisas imperdoáveis ou quase…

Quanto ao personagem em si do espião, Gerd Wiesler (EXTRAORDINÁRIO), acontece em seu íntimo aquele momento de quebra onde não + se torna possível ser o simples – y eficiente!! – mico amestrado que sempre fora. 1 rasgo desvairado de sintonia com o “exterior” que desequilibra o até entonces irretocável rame-rame burokrático em que tá atoladíssimo.

O roteiro segue admirável na medida em que num busca soluções redentoras, espetaculares e/ou heróicas. A atuação do espião assim envolvido lembra 1 lance de xadrez, pontual&preciso, o possível ali pra minimizar o estrago que já fora causado e que ainda teria seu arrasto logo adiante.

Acho ótimo o desfecho da trama, a hierarquia fria&impiedosa que relega o antigo espião ao subalterno. Seu pathos vivido no ostracismo onde sem-pre&sem-pre soube pertencer, ao universo dos subservientes…
.
1 colega psicanalista favoreceu o enfoque do “obsceno” (fora de cena) ligado à cena primária (obsceno como aquele que, por estar de fora duma cena emocional-mente carregada, a invade com seu olhar de modo ilegal ou indevido). Sem discordar deste aspecto ligado à cena primária y ao obsceno, penso que empobrece o que se entende no filme.

Hauptmann Gerd Wiesler encarregado de espionar o casal de artistas em to-dos os momentos da sua vida, em princípio, espionava qual-quer coisa. Sua vida empobrecida (prostitutas frias, comida fria&industrializada, moradia precária, uniforme im-pe-cá-vel) me parece a expressão da violência social que deforma uma criança que num tem quem a oriente, fora do estado totalitário, privando-a de qual-quer experiência com a Cultura y suas formas de sensibilidade humanística. O capitão era 1 autômato do Estado, seu único orgulho narcísico remetia ao uniforme, à fidelidade y eficiência ao ideal imposto. Até a hora em que espiona um casal “normal”, ele num tinha idéia do que eram pessoas em convívio Generoso&Amigo, num sabia o que era Carinho&Respeito, num conhecia Poesia. Ou, quem sabe, o agente num era robotizado de nascença. Foi marcado pelo modelo de família y isto foi recalcado a tal ponto pela automação da sua educação que somente conseguiu retornar después da cena em que ele invade o quarto do casal y acaricia o lençol da cama dos amantes, quase de joelhos. De repente (não + que de repente), 1 Mundo se abriu pra ele. Devagariiiinho, entrando sem ser visto no apartamento dos Outros, ele encontrou uma família.

Seu 1º crime, pecado particular, foi retirar dali 1 livro de Bertold Brecht (trago o poema lido no filme no próximo post!). Encantador, hã!? Personagem tocado&transformado pela Arte.
Ele num era 1 mero voyeur, patológico, embora social-mente posto neste papel e o executando com mestria&perfeição. Ele teria sido uma criança carente, privada de contato com gente capaz de amar ao longo de toda sua vida mas que, no fuuuundo, tinha amor, deslumbramento, generosidade y tudo isso fora nele recalcado pela Cultura. Ele se achou vendo o casal parental, sem inveja destruidora… Why not?!??

Pensar sob o ângulo da cena primária e o obsceno “infantil” num é suficiente pro lado + amplo da vigilância política. Nem da transformação do frio espião/voyeur/obsceno num “homem bom”.  O arco do personagem, no filme, tá claro. Ele faz parte da tchurma que num acredita que o ser humano seja capaz de mudar y ele próprio, se transforma, d’água pro vinho, assim des-man-chan-do o axioma totalitário. Ele personifica a Contradição de t-o-d-a uma visão de mundo, naquilo que ela traz de + cativante. Uma verdade parcial, humana e, por isso mes-mo, libertadora.
.
(1 parêntese) Uma pessoa se apaixonou por 1 menininho do Haiti quando aconteceu o terremoto. Ela viu na televisão vários resgates e descrevia este, em particular, com os olhos arregalados y rosto vulnerável: “… depois de soterrado durante uma semana, ao ser resgatado, o garoto abriu os braços assim… (pausa surpresa, encantada)… assim… Mas aí, porque emagreceu bastante, a calça dele começou a cair e ele, rapidinho, a puxou de volta… assim…”  Caramba, esta cena é uma representação do que pode acontecer com o Haiti. Uma resposta parcial, particular, jubilante&libertadora…
Acho que num foi 1 parêntese. Esta historinha sobre o Encantamento d’algum modo diz o que queria dizer sobre o filme.

Fonte: Psicotramas

Nenhum comentário: