PICICA: "John Monteiro trazia considerável experiência em pesquisa documental nos arquivos das Américas, da Europa e da Índia. Publicou, em 1994, o livro seminal Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. Lá,
apoiado em farta documentação, redimensiona o papel dos índios na
história de São Paulo e desconstrói a baboseira de que o bandeirante
paulista contribuiu para alargar e povoar o território brasileiro.
Recoloca na história do Brasil, como sujeito, o negro da terra ou gentio da terra, expressão usada para designar o índio escravizado."
JOHN, UM NEGRO DA TERRA
José Ribamar Bessa Freire
31/03/2013 - Diário do Amazonas
Ele
nasceu, em 1956, nos Estados Unidos. Era americano. Portanto tinha,
inapelavelmente, que se chamar William ou John. Ficou John. Mas por ser
filho de português, seu destino era ser registrado como Manuel ou
Joaquim. Acabou herdando o Manuel do pai. E foi com esse nome composto -
John Manuel - que veio de mala, cuia e Machado para o Brasil, onde
criou raízes, filhos, livros e deixou marcas.
Aqui
deu aulas, palestras e conferências, organizou eventos, iniciou
estudantes na pesquisa, formou mestres e doutores, fez discípulos,
vasculhou arquivos, pesquisou, escreveu, publicou, amou e foi amado,
apaixonou-se pela história indígena, abrasileirou-se e transfigurou-se
em negro da terra, termo consagrado em um de seus livros sobre índios e bandeirantes.
Foi
ironicamente na Rodovia Bandeirantes, em Campinas, na terça-feira, que
um táxi desgovernado chocou o carro dirigido por John, eliminando um dos
expoentes da história indígena. Ele morreu no local, aos 56 anos, no
auge de sua vida intelectual, vítima da guerra absurda do trânsito, que
no Brasil mata anualmente mais do que qualquer guerra civil. Na última
quinta-feira, 28 de março, depois de velado no salão da biblioteca, na
Unicamp, foi levado para o Crematório na Vila Alpina, em São Paulo.
Índios e bandeirantes
O
historiador John Manuel Monteiro era paulista, mas paulista de Saint
Paul, Minnesota, onde nasceu. Lá, muitos moradores descendem de alemães e
escandinavos, que migraram para os Estados Unidos no final do século
XIX, encurralando a população nativa em reservas indígenas, que hoje
sediam cassinos. Quando os portugueses e hispânicos chegaram, os índios
já eram minoria discreta, mas capazes ainda de despertar o interesse de
um pesquisador sensível e generoso como John, um paulistano de coração.
Desde
a graduação em história, no Colorado College (1974-78), ele vinha
buscando entender o processo de colonização portuguesa nos trópicos,
inicialmente em Goa, na Índia, e depois no Brasil. No mestrado
(1979-1980), focou seu interesse sobre o Brasil Império, no século XIX, e
finalmente no Doutorado (1980-1985) na mesma Universidade de Chicago,
debruçou-se sobre a escravidão indígena, os bandeirantes e os guarani de
São Paulo.
Quando
o conheci, em 1992, apresentado por Manuela Carneiro da Cunha, ele
trabalhava com ela num grande projeto interdisciplinar, de âmbito
nacional, que procurava localizar, mapear e avaliar a documentação
manuscrita sobre índios existente nos arquivos de todo o Brasil. Fui
convocado para coordenar a equipe do Rio de Janeiro. Com John, entramos
em cada um dos 25 grandes arquivos sediados no Rio. No final, ele
organizou a publicação do Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em Arquivos Brasileiros.
O
objetivo do projeto era criar uma ferramenta para combater a
cumplicidade da historiografia brasileira que "erradicou os índios da
narrativa histórica" ou tentou "torná-los invisíveis". O Guia foi
elaborado por equipes que reuniu mais de cem pesquisadores em todas as
capitais do país, coordenados por John Monteiro. Localizou muitos
documentos desconhecidos e até então inexplorados, criando as condições
para "repensar, de forma crítica, tanto o passado quanto o futuro dos
povos indígenas neste país".
John Monteiro trazia considerável experiência em pesquisa documental nos arquivos das Américas, da Europa e da Índia. Publicou, em 1994, o livro seminal Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. Lá,
apoiado em farta documentação, redimensiona o papel dos índios na
história de São Paulo e desconstrói a baboseira de que o bandeirante
paulista contribuiu para alargar e povoar o território brasileiro.
Recoloca na história do Brasil, como sujeito, o negro da terra ou gentio da terra, expressão usada para designar o índio escravizado.
Dança dos números
As
pesquisas de John Monteiro fizeram uma revisão profunda do discurso
sobre a "extinção", mostrando como as populações indígenas foram
afetadas pelo colonialismo. Ele discute não apenas o declínio
demográfico, mas também "os processos de recuperação e rearranjo das
populações e das unidades políticas indígenas" no Brasil colonial. O
artigo que publicou em 1994 - a Dança dos Números: a população indígena do Brasil desde 1500 - trabalha com a noção de etnocídio, a qual acrescentou posteriormente a de etnogênese.
Logo
após a promulgação, em 2008, da Lei 11.645, que torna obrigatória a
temática indígena em sala de aula, John Monteiro publicou o artigo Sangue Nativo
na Revista de História, abordando a escravização dos índios no Brasil.
Contribuiu, dois anos depois, com a produção de documentários "Histórias
do Brasil', exibidos pela TV Brasil. Desta forma, sua produção
acadêmica alcançou os professores da rede pública e privada de ensino e
penetrou nas escolas.
John
Monteiro havia assumido recentemente a direção do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp. É conhecido, admirado e querido
em todo o Brasil, em cujas universidades seus livros são discutidos,
mas também no exterior. Orientou e dirigiu pesquisas na Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e foi professor em várias
universidades americanas - Harvard, Michigan e North Carolina-Chapel
Hill (1985-86), onde nasceu Thomas, seu filho com Maria Helena Machado,
pesquisadora da USP e companheira de todas as horas.
No Grupo de Trabalho Índios na História,
que John Monteiro articulava, sua morte foi sentida e pranteada.
Mensagens de todos os recantos circularam nas redes sociais, expressando
sentimento de dor pela perda irreparável. A Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), a Associação Nacional de História (ANPUH), a
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), entre outras, manifestaram o pesar da comunidade acadêmica:
"À
sua esposa Helena e aos filhos Álvaro e Thomas, e demais familiares,
estendemos nosso conforto e afeto. John será sempre lembrado por nós" -
finaliza a nota da ABA, expressando um sentimento generalizado.
Aqui,
no Diário do Amazonas, registramos um adeus saudoso a John Monteiro,
reproduzindo mensagem do antropólogo Carlos Alberto Dutra, pesquisador
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul:
- Os
povos indígenas perderam o historiador John Monteiro. Cientista social
que sempre soube respeitá-los e traduzir para o mundo, para além das
fronteiras da modernidade, suas lutas e seus direitos, pelos meandros da
academia, seus livros e ensino. Que Ñhanderu o acolha e console seus
admiradores pela perda.
Fonte: TAQUIPRATI
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