março 14, 2013

"Estou com os evangélicos contra Feliciano", por Bruno Cava

PICICA: "Estou dizendo isso enquanto ateu até o osso, como um filho da classe média branca e ilustrada em cuja adolescência escarnecia febrilmente da religiosidade e delirava em esmagar todas as igrejas. Mas agora concordo com Marx, na Questão judaica, quando diz que o ateísmo é causa desfocada, senão insípida. É ineficaz combater religiões e igrejas, mas sim as condições de escassez e miséria que conduzem as pessoas a religiões e igrejas. Para que tenham bases materiais e subjetivas para dispensar o transcendente. E se elas quiserem religiões e igrejas, que seja pela abundância de vida e sentido que possam encontrar em religiões e igrejas, talvez noutros arranjos produtivos de subjetividade. Em qualquer caso, ideias não podem ser vencidas apenas com ideias, e por isso nunca depositei muita confiança em “humanismos seculares”, ateísmos e quejandos. As ideias detêm uma força interna que precisa ser bancada materialmente, entre outros, no plano ético." 

Estou com os evangélicos contra Feliciano


Na última semana, parte da esquerda nas redes sociais novamente preparou a cama do fascismo. Meteu os pés pelas mãos em mais um transe de cliqueativismo “curtir & compartilhar”, sem um mínimo de profundidade crítica. Tudo o que o deputado Feliciano queria era a associação raivosa que atribui aos evangélicos um caráter conservador, moralista e fanático. Tudo o que ele queria era a confirmação midiática da lógica: evangélico, logo homofóbico — e também contrário à legalização do aborto e das drogas. Nada poderia ajudar mais o discurso do pastor do que a materialização do inimigo que persegue o culto e discrimina o crente. A esquerda nas redes sociais fez-lhe esse enorme favor.

Como se antes houvesse evangélicos que são homofóbicos, machistas ou racistas; e não que haja homofóbicos, machistas ou racistas que são, além disso, evangélicos. Mas bem poderiam ser católicos, ateus ou judeus. A diferença não é sutil e não depende de ponto de vista. Com o episódio, foi reforçada a identidade “evangélico”, cimentando um sentimento de pertencimento e uma interioridade social, exatamente sobre o que se constroem as igrejas, seus sacerdotes e sistemas de autoridade moral.

A esquerda acha que sabe tudo mas tem muito a aprender com os evangélicos. Aliás, a expressão da esquerda nas redes sociais simplesmente não é párea, quantitativa ou qualitativamente, para o trabalho de base disseminado por todo o território, e majoritariamente entre os pobres, que os crentes realizam, e na sua grande maioria gratuitamente. Uma brutal diferença de práxis entre o sofá e a terra batida. Hoje, partidos e sindicatos não têm como competir com as igrejas em termos de mobilização e influência políticas.

Sim, é óbvio, existe a forma-empresa por dentro do neopentecostalismo, e é generalizada, e quem lucra fábulas no negócio da (má) fé. O problema está em direcionar o ataque aos evangélicos como grupo, num preconceito reverso. Ora, a mais antiga monarquia absolutista do planeta, a Igreja Católica conta dois mil anos construída em cima da aliança com a classe dominante, a exploração social e a violência contra pobres e minorias. Uma instituição muito mais hierárquica, dogmática e reacionária, sem falar na pedofilia institucional, do que qualquer igreja evangélica, que bem ou mal propicia maiores chances de mobilidade interna, alguma horizontalização teológica e, diga-se de passagem, posições frequentemente menos intransigentes com relação ao aborto, células-tronco, camisinha, direitos queer e drogas.

Atacar o deputado Feliciano com ênfase na questão evangélica — em vez de concentrar-se no problema real — não deixou de arregimentar estranhos aliados à causa. Aliados talvez nem assim tão distantes de uma esquerda que não sabe nem quer compreender o pobre que tanto defendem em falas, panfletos e teses acadêmicas. Aliados talvez na crença que os evangélicos sejam piores, mais fanáticos e reacionários do que os católicos, ou mesmo que os agnósticos e ateus. Eis aí mais um rosto do pobre: o crente, tanto mais ameaçador e discriminado quanto mais emerge socialmente. O pobre é sempre pior quando chega perto do rico. É o pobre brasileiro discriminado desde sempre por suas elites e sua alta sociologia (de bar ou da USP) que nunca deixou de imputar-lhe um déficit de espiritualidade, racionalidade ou “consciência de classe”.

Estou dizendo isso enquanto ateu até o osso, como um filho da classe média branca e ilustrada em cuja adolescência escarnecia febrilmente da religiosidade e delirava em esmagar todas as igrejas. Mas agora concordo com Marx, na Questão judaica, quando diz que o ateísmo é causa desfocada, senão insípida. É ineficaz combater religiões e igrejas, mas sim as condições de escassez e miséria que conduzem as pessoas a religiões e igrejas. Para que tenham bases materiais e subjetivas para dispensar o transcendente. E se elas quiserem religiões e igrejas, que seja pela abundância de vida e sentido que possam encontrar em religiões e igrejas, talvez noutros arranjos produtivos de subjetividade. Em qualquer caso, ideias não podem ser vencidas apenas com ideias, e por isso nunca depositei muita confiança em “humanismos seculares”, ateísmos e quejandos. As ideias detêm uma força interna que precisa ser bancada materialmente, entre outros, no plano ético.

O fato é que igrejas e pastores evangélicos têm sido bem sucedidos em se acoplar ao sonho de “subir na vida”. Isso as faz potentes e produtivas, todavia necessárias, seja no plano organizacional da composição, seja no plano estratégico das alianças. Os pobres sabem como é fundamental construir uma fortaleza existencial para enfrentar a adversidade. Como é fundamental apegar-se à sensação de não estar só na luta pelo futuro digno —por um futuro simplesmente. Apesar de, há várias gerações, tudo ao redor os limitar, constranger, diminuir e violentar; os pobres têm consciência e veem a esperança de viver melhor, finalmente, se concretizando. Essa consciência é uma organização de relações e práticas, em que muitas igrejas se inserem sem preconceitos e sem ódio de classe.
E a esquerda que vá fazer seu dever de casa, antes de se considerar superior e mais esclarecida.

Fonte: Quadrado dos loucos

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