PICICA: "O amor é a força que produz o comum pela diferença: das diferentes espécies, mitos, tempos, ambientes… das combinações singulares – cada qual um mundo distinto com seus diversos conflitos, mas que nem por isso deixam de compor a multidão de corpos e que, ao partilharem a força do amor são capazes de coabitar o mesmo espaço não pela subordinação, hierarquia ou guerra, mas através da luta pela vida e por sucessivos atos de devoração do outro desejado. Voracidade! Luta pela vida que é o oposto da fome, assim como o amor que se coloca é o oposto da morte: desejo que nos toma plenos e nos atira além, em busca daquilo que queremos e desejamos. Aqui a luta por amar se torna amor pela vida… pelas vidas, no plural!"
AMOR / Matilha Amorosa
AMOR1
Não
se trata aqui de dizer que o amor é isso ou aquilo, que esse tipo
interessa, mas aquele não, e sim de, diante de suas múltiplas facetas,
encontrar terrenos férteis onde ele aparece como o contrário da morte,
ao invés de simples dimensão da vida: o que torna possível diferenciar a
vida da morte é o amor! Diante disso, propomos o
amor enquanto ferramenta de luta – como razão de ser mesma das
ferramentas, e das lutas: terreno onde são semeadas as possibilidades de
amar a vida, ou seja persistir na existência e de viver amando, lugar
onde é semeada a experimentação da vida. Contra duas visões do amor: a
arma que transforma sem ferir dos movimentos “peace and love” dos anos
70 que – como os saudosistas não se cansam de dizer – transformaram
profundamente o mundo, sem tomar o poder.
E o pragmatismo político que não deixa espaço para o amor: a
negatividade que sustenta que a luta é sempre violência e objetividade. E
que, por isso, a dimensão afetiva atrapalha e desvia o foco do combate.
Queremos
nos afastar do amor compassivo, identitário, base incondicional da
filantropia dentre tantas outras formas caridosas de ação política. No
pressuposto reiterado do “lutar por amor”, este é colocado como sinônimo
de solidariedade, espécie de altruísmo em benefício dos iguais: quase
sempre homens, brancos, heterossexuais, trabalhadores e “respeitáveis”;
que se “ajudam” mutuamente ou “ajudam” os outros fazendo o trabalho de
conscientizá-los e de organizar suas formas de vida. Procura-se impor ao
outro um modo de ser a partir de uma forma de amor homogeneizante e
excludente que exige um comportamento, uma forma de vida pré-determinada
e uma identidade que justifiquem as suas relações. Como foi o caso da
França revolucionária, que reprimiu brutalmente os bravos haitianos que,
inspirados nos ideais da revolução francesa, fizeram a revolução em seus próprios termos;
ou dos indígenas no Brasil, tratados como grupos de segunda classe por
não serem “como nós” – e que por isso não tem direito à terra e às
vezes, mesmo à vida.
Um
corpo que não ama é um corpo morto. Nesse sentido o amor se materializa
nos encontros, pelo simples e poderoso fato de encontrar o outro. O
outro negro, a indígena, a outra travesti, mulher e/ou jovem, a vadia, o
artista, o operário, o camelô, o maconheiro, a hacker, o militante, a
favelada, o estudante, a punk, o viciado, o hippie da praça. O amor
nesse sentido é marginal e é o comum que nos une a todos contra os
ritmos e determinações das pulsões de morte do capital. Que recentemente
e em última instância se materializam em Fukushima, Pinheirinho, Belo
Monte, Guerra do Iraque, nos celulares e laptops manchados com sangue
dos trabalhadores chineses etc.
É
no amor enquanto força que excede o campo do dado, do constituído, do
aceito – que é normalmente e normativamente imposto – que o amar a vida e o viver amando
florescem, admitindo os riscos, a relação com o desconhecido, o
desviante – aquilo que faz desviar – o deslocamento, o inesperado, a
nomadização: insistindo em outros roteiros diante de formas já
estabelecidas (e capturadas) de repressão assim como de resistência. O
amor enquanto abertura ativa para a diferença, expressão da criação e da
invenção, que se opõe às formas de amor pelo semelhante, pelo conhecido
– como forma de dissolução das diferenças e apaziguamento dos
conflitos, que levadas ao extremo, despotencializam o amor e se tornam
amor pela guerra, amor enquanto guerra.
Contra
os planos de morte do capital, e escapando deles, os planos de vida
atravessados pelo amor em que a luta pela vida é necessariamente
perpassada pela criação e/ou manutenção da vida em suas muitas formas:
como o “ecologismo dos pobres”, expresso nas lutas de resistência
praticadas cotidianamente por caiçaras, tambaquis, quilombolas,
guairobas, indígenas, capivaras, caipiras, palmeiras, tatus,
agroecologistas e tantos outros. Um amor pela terra, leia-se insistência
da vida e crença na própria terra, nos homens, nas coisas e nos
sentimentos. Luta que se materializa também na atitude dos jovens das
periferias das grandes metrópoles que, num gesto prenhe de paixão,
ateiam fogo e destroem tudo o que encontram a sua volta, o que lhes
lembra o amor que a cidade lhes nega! Na estratégia experimentada por
estudantes gregos e chilenos que nos protestos utilizam-se do amor para
conter os ataques truculentos da polícia. O beijo na boca na linha de
frente das manifestações que imobiliza a repressão e faz o poder se ver
desprovido das suas rotinas e protocolos totalmente baseados no já
esperado confronto e disputa de força com os manifestantes. Plano de
vida expresso pelo amor gay dos beijaços
praticados mundo afora, e que em São Paulo paralisaram um grande centro
comercial da cidade em resposta à repressão de um casal homossexual por
agentes de segurança do shopping: beijaço que envidenciou que gays somos todos os que vivem (contra e) apesar das normas.
O
amor é a força que produz o comum pela diferença: das diferentes
espécies, mitos, tempos, ambientes… das combinações singulares – cada
qual um mundo distinto com seus diversos conflitos, mas que nem por isso
deixam de compor a multidão de corpos e que, ao partilharem a força do
amor são capazes de coabitar o mesmo espaço não pela subordinação,
hierarquia ou guerra, mas através da luta pela vida e por sucessivos
atos de devoração do outro desejado. Voracidade! Luta pela vida que é o
oposto da fome, assim como o amor que se coloca é o oposto da morte:
desejo que nos toma plenos e nos atira além, em busca daquilo que
queremos e desejamos. Aqui a luta por amar se torna amor pela vida…
pelas vidas, no plural! As vividas e as imaginadas: força que nos
atravessa e que, nos atravessando, nos liga uns aos outros; força que
desestabiliza ao mesmo tempo em que agrega. Como partículas que tanto se
atraem mutuamente como se repelem, compondo aqui e ali com outras
partículas e formando novos corpos. Sempre com grande violência. Nenhuma
partícula é indiferente à outra, assim como nenhum corpo passa
despercebido a outro corpo. O amor nos leva assim a novos lugares, novas
situações, a alternativas e alternâncias, a variações sucessivas,
sempre escapando da previsibilidade e do movimento linear. Afinal, que pode um corpo senão, entre corpos, amar?
Fonte: Global Brasil Revista Nômade
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