março 31, 2013

"Homossexuais na Idade Média", por Antonio Ozaí da Silva

PICICA: “Cristo não havia delineado um conjunto abrangente de ética sexual, e não há registro de que tenha encontrado algum homossexual. Mas, quando se deparou com uma adúltera sendo apedrejada – e o adultério era, como a homossexualidade, uma ofensa capital na lei do Antigo Testamento – disse: “Aquele dentre vós que não tiver pecado, atire a primeira pedra”, e, para a mulher, “Vai, e não peques mais”. Perdão e compreensão, então, em vez de punição, era a mensagem de Cristo”.

Homossexuais na Idade Média

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Qual a postura da Igreja Católica e da cristandade sobre a homossexualidade na Idade Média? “Visto que o sexo, segundo os ensinamentos cristãos, foi dado ao homem unicamente para os propósitos da reprodução e por nenhuma outra razão, qualquer outra forma de atividade que não levasse ou não pudesse levar à procriação era um pecado contra a natureza. Os pecados contra a natureza incluíam especificamente a bestialidade, a homossexualidade e a masturbação”, escreve Jeffrey Richards.[1]
Já no século IV, Santo Agostinho, uma das mais importantes autoridades da Igreja, foi taxativo:

“Pecados contra a natureza, por conseguinte, assim como o pecado de Sodoma, são abomináveis e merecem punição sempre que forem cometidos, em qualquer lugar que sejam cometidos. Se todas as nações os cometessem, todas igualmente seriam culpadas da mesma acusação na lei de Deus, pois nosso Criador não prescreveu que pudéssemos utilizar uns aos outros dessa maneira. Na realidade, a relação que devemos ter com Deus é ela mesma violada quando nossa natureza, da qual ele é o Autor, é profanada pela lascívia perversa”.[2]
Estas palavras, retiradas das Confissões de Santo Agostinho, são inspiradas por uma determinada leitura e interpretação bíblica, ainda presente[3], de Levítico:

“Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação” (Lv., 18, 22).
“O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação: deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv., 20, 13).[4]
Vemos o quanto é perigoso a leitura literal e fundamentalista da Bíblia. Se devem morrer, alguém deve ser o instrumento de Deus que cumpre a sentença condenatória. Afinal, homofóbicos e fanáticos religiosos imaginam-se imbuídos de uma missão purificadora. Mas, retornemos à Idade Média – muito embora persistam pensamentos e posturas medievais em pleno século XXI! Na medida em que o cristianismo medieval concebia o sexo apenas para procriar e considerava antinatural e pecaminoso tudo o que não se enquadrasse nesta perspectiva, qual é a sua posição diante dos pecadores? O Antigo Testamento não deixa dúvidas. Cristo, porém, teve uma atitude tolerante, compassiva e amorosa. Como assinala Richards:

“Cristo não havia delineado um conjunto abrangente de ética sexual, e não há registro de que tenha encontrado algum homossexual. Mas, quando se deparou com uma adúltera sendo apedrejada – e o adultério era, como a homossexualidade, uma ofensa capital na lei do Antigo Testamento – disse: “Aquele dentre vós que não tiver pecado, atire a primeira pedra”, e, para a mulher, “Vai, e não peques mais”. Perdão e compreensão, então, em vez de punição, era a mensagem de Cristo”.[5]
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Outra foi a mensagem da cristandade medieval. Os primeiros padres da Igreja adotaram a linha condenatória. Suas opiniões foram sacramentadas em lei quando o império romano assumiu o catolicismo enquanto religião oficial. O imperador Justiniano (527-65), que se considerava o representante de Deus, impôs um rígido código moral e a homossexualidade passou a ser passível da pena de morte:

“Justiniano tinha uma visão dos atos homossexuais como sendo literalmente uma violação da natureza que provocava a retaliação da mesma: “por casa destes crimes ocorrem fomes coletivas, terremotos e pestes”, declarou. Este refrão deveria retornar no período posterior à Idade Média, quando uma sucessão de calamidades que surpreendeu a cristandade foi diretamente atribuída pelos pregadores populares e pelos teólogos à existência da sodomia”.[6]
Outro santo, Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, concordava que o ato inatural, ou seja, todo ato sexual que não cumprisse o preceito de servir à reprodução da espécie, ainda que praticado sob consentimento mútuo ou individualmente, ou mesmo sem acarretar prejuízo a outrem, era caracterizado como o pior dos pecados, uma injúria a Deus:

“Eles violavam a ordem natural determinada por Deus. Por ordem crescente de gravidade, os pecados contra a natureza eram: masturbação, relação inatural com o sexo oposto[7], relação homossexual e bestialidade. Estas concepções eram amplamente determinadas, e se, em alguma medida, a literatura foi um reflexo da opinião popular, elas predominaram na sociedade secular”.[8]
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Nos séculos XII e XII, a política eclesiástica e civil contra a homossexualidade tornou-se ainda mais rigorosa. O Concílio de Nablus (1120), determinou que “o adulto sodomita persistente e do sexo masculino seria queimado pelas autoridades civis”.[9] Esta medida colocava os homossexuais “no mesmo patamar que os assassinos, hereges e traidores”. O passo seguinte foi a penalização cada vez mais crescente pela lei secular. De um lado, o puritanismo moralista mobilizou-se para reprimir a homossexualidade. Por outro, a “inquisição e as irmandades leigas associadas com as ordens mendicantes tornaram-se instrumentos de perseguição aos hereges e sodomitas”. O Concílio de Siena (1234) passou a designar homens cuja função era caçar sodomitas. O objetivo desses ancestrais medievos dos homofóbicos e fanáticos religiosos modernos era “honrar ao Senhor, assegurar a paz verdadeira e manter os bons costumes e uma vida louvável para o povo de Siena”.[10]

“O vício que não pode ser nomeado”[11] passou a ser cada vez mais perseguido. A sodomia deveria ser extirpada da sociedade, os sodomitas deveriam ser excluídos social e fisicamente. A homossexualidade foi equiparada a uma doença contagiosa, às impurezas que contaminavam a pureza cristã e social:

“Assim como o lixo é retirado das casas, de modo a que não as infecte, os depravados devem ser afastados do comércio humano pela prisão ou pela morte.” O pecado tem que ser destruído pelo fogo e extirpado da sociedade. “Ao fogo!” esbravejava são Bernardino em sua assembléia. “Eles são todos sodomitas! E vós estareis em pecado mortal se tentardes ajudá-los.”[12]
Em conclusão, nas palavras de Jeffrey Richards:

“O cristianismo era fundamentalmente hostil à homossexualidade. A mudança na Idade Média não foi um deslocamento da tolerância para a intolerância por razões não-intrínsecas às crenças cristãs, mas uma alteração nos meios de lidar com a questão. No período inicial da Idade Média, a punição era a penitência; no período posterior, a fogueira. Mas nunca foi questão de permitir aos homossexuais prosseguir em sua atividade homossexual sem punição. Eles eram obrigados a desistir dela ou arriscar a danação”.[13]
Era? Deixou de sê-lo? Qual o peso e influência do ideário teológico medieval sobre os homens e mulheres do nosso século? É certo que não se acendem mais as fogueiras inquisitoriais, mas a inquisição, sob outras formas, incluindo as mais sutis, persiste. Imagine o pai e a mãe de um filho homossexual diante dos são Bernardinos do nosso tempo! É curioso como os inquisidores se candidatam a santos e como muitos terminaram por ser canonizados! De qualquer forma, o preconceito contra a homossexualidade tem raízes profundas e milenares. Os mortos dominam o cérebro dos vivos e, apesar do passar do tempo, são renitentes! De certa maneira, a cada pensamento e gesto preconceituoso em relação à homossexualidade ressuscitamos os inquisidores medievais! Talvez devêssemos nos espelhar mais em Cristo do que nos santos padres da Igreja ou no Antigo Testamento.






[1] RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 136.

[2] Apud in idem.

[3] Sugiro que assista ao documentário Como diz a Bíblia (For The Bible Tells Me So. Direção: Daniel G. Karslake. EUA, 2007, 95 min.).

[4] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

[5] RICHARDS, 1993, p. 139.

[6] Idem.


[8] RICHARDS, 1993, p. 145-146.

[9] Idem, p. 146.

[10] Idem, p. 148.

[11] Idem, p. 149.

[12] Idem, p. 150.

[13] Idem, p. 152.

Fonte: Blog do Ozaí

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