março 27, 2013

"Os pobres entre Franciscos e Felicianos", por Vladimir Santafé

PICICA: "Na conjuntura, não custa lembrar as palavras de outro pastor que morreu defendendo os direitos civis dos negros norte-americanos e reacendeu a chama da resistência e da fraternidade nos guetos e favelas oprimidos pelo racismo: “Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira .O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos.Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos” (Martin Luther King)




Os pobres entre Franciscos e Felicianos

26/03/2013
Por Vladimir Santafé


Este é o quinto texto publicado no âmbito da UniNômade Brasil sobre a “questão evangélica” na política brasileira. Santafé critica as consequências da ligadura estabelecida com os pobres pelo novo papa e os novos pastores, no contexto do capitalismo brasileiro. Enquanto isso, continuam minoritárias e sob achaque as vertentes “mais à esquerda”, que existem por dentro das redes articuladas ao redor do cristianismo.

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Por Vladimir Santafé | Professor e militante de movimentos sociais

Um pouco antes das 19 horas, na 1ª Igreja Batista de Alto Araguaia, interior do Mato Grosso, cidade fronteiriça com o estado de Goiás, os fiéis começam a chegar. Chove. Os sons da Igreja dominam a paisagem, os fiéis se amontoam a passos largos, apressados. Vêm em motos, caminhonetes, pés, todos caminham em direção à redenção nos céus, pelo sucesso nos negócios, por acolhimento e reconhecimento social, pelo sossego da alma e o preenchimento do Espírito Santo, ou por simples convenção social familiar ou comunitária. Eles chegam aos montes, de todos os lugares, todas as vestes e caras se encontram na Igreja, tal como profetizado por Jesus, “a minha Igreja, Pedro, está na pedra”. E a pedra se ergueu em muitas igrejas e casas de pau a pique abençoadas e transformadas em lugares de devoção e entrega. 

Às 19 horas, os fiéis se encontram e comungam, mas a dinâmica eclesial começa antes, muito antes. Ela se espalha pelas salas, quartos, cozinhas e corações dos homens e mulheres que “perderam tudo” ou nunca o tiveram, este tudo que os meios de comunicação propagam como o sonho de muitos, o paraíso consumista de um reino de felicidade e facilidades, onde o desejo se apodera dos bens e transforma-se em mercadoria. Ou em busca do rosto caloroso da dignidade humana que encontram na comunidade evangélica. Rosto que o catolicismo negou durante séculos, apesar da reação de padres e militantes que inspirados em São Francisco, em Marx e no próprio Jesus, voltaram a abraçar a causa dos pobres, mobilizando-os política e espiritualmente. A esse movimento chamaram Teologia da Libertação.

Papa em nome dos pobres

Hoje, o Papa Francisco I, acusado por muitos de ter mantido relações ambíguas com os militares durante a sanguinária ditadura militar na Argentina1, volta a reivindicar a “igreja dos pobres e para os pobres”, uma Igreja menor, sonhada por São Franciso de Assis e Santa Clara, que movidos pelo desejo de mudança e o rompimento com os dogmas e as convenções da antiga igreja medieval, se despojaram de seus trajes e se voltaram para os pobres, para a potência dos pobres. Reconstruindo seu sonho pedra por pedra, horizontalizando o poder litúrgico que antes unicamente traçava a intricada relação que a Igreja Católica mantinha com a nobreza europeia e que ainda se mantém, mas agora através das redes de poder contemporâneas, bancos e contratos fraudulentos com investidores privados. Vê-se o caso Vatileaks2, motor, segundo muitos, da renúncia de Bento XVI ao papado.
O fato é que a Igreja Católica permanece romana, isto é, já não se rezam missas em latim de costas para o público, com algumas exceções à regra, mas o centro das decisões políticas e litúrgicas ainda é o Vaticano e sua cúpula. As redes que atravessam o poder e reforçam as ligaduras em seu processo de consolidação dos estratos convergem aos “olhos de Deus”, que contemplam o teto da Capela Sistina na obra monumental de Michelangelo e sua gênese do mundo, como num espelho onde Deus é o outro de si mesmo. Divina dialética que sintetiza o poder mundano e transcendente em instituições sociais específicas, sob a égide da Cúria romana, como o Secretariado para as religiões não cristãs, o Dicastério da unidade dos cristãos, o Dicastério das missões, o dos direitos humanos e justiça etc. 

Apesar de o teólogo e filósofo Leonardo Boff, — de clara inspiração franciscana, ordem a que pertencia antes da expulsão da Igreja pelo atual Papa Emérito Bento XVI, — acreditar numa linha de descentralização dos poderes administrativos e políticos do catolicismo. Boff acredita que o novo Papa presidirá na caridade, onde “a Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais dos direitos humanos, os da Mãe Terra e da natureza, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade  condividida”3. Mas sem a presença dos anômalos que a Igreja considera como expurgos da fé cristã, do modelo idealizado por apóstolos, teólogos e filósofos, que negam à cópia a sua autonomia diante do mundo das ideias, do Demiurgo que planeja a vida e os seres que a habitam segundo a própria semelhança. Potência do mesmo, poder constituído. 

Logo, os homossexuais e os demais hereges não poderiam compartilhar do vinho e do pão, a eucaristia antecipa aqueles que podem ou não participar do Reino dos Céus, o contrário da cidade mundana (e ao mesmo tempo participante do Divino) idealizada por Plotino, onde os homens são iguais à potência emanada por Deus. A subversão sexual, — ou consórcio entre as forças do masculino e do feminino, instância do sagrado que não passa necessariamente pela rebeldia ou pelo desregramento dos sentidos, ainda que atravesse o transe, — sempre foi perseguida e punida pela moral judaico-cristã. Os hereges, muitas vezes, são aqueles que invocam a carne como mediação entre Deus e os homens, daí a importância da mulher para os pagãos e sua condenação pelos cristãos, pois ela é meio e instrumento dos deuses ou de Deus para a criação da vida.

O discurso de Francisco I também recai numa possível captura da potência dos pobres, potência anômala por natureza, dado que esta se faz a partir da carência, da ausência do desejo e sua afirmação niilista, ao martírio da resignação que distribui, ao menos no discurso, a miséria aos peregrinos sobre a terra (todos miseráveis e pecadores) e nega a vida4. Muitos analistas identificam a ascensão de Franciso I como uma retomada do conservadorismo populista de João Paulo II, que através da sua força e carisma manteve a estabilidade da Igreja, reforçando os dogmas e limites, como o celibato, a denúncia do aborto e dos métodos contraceptivos, o patriarcalismo inerente à hierarquia religiosa, dentre outros princípios que norteiam e constituem o poder da ortodoxia católica.
Apesar do aceno parcialmente favorável a novas formas litúrgicas que mobilizam os fiéis e ampliam o seu número, como as adotadas pelos carismáticos no Brasil, fortemente influenciados pelo pentecostalismo. Em alguns casos, o sincretismo é tão grande que até alguns princípios do kardecismo são usados para manter os fiéis integrados à comunidade católica.
Os princípios da Teologia da Libertação, no entanto, de transformação social e mobilização política dos pobres, foram negados e combatidos com veemência nas bases da Igreja, ainda que com resistência das pastorais ligadas às lutas da cidade e do campo. Uma Igreja que se volta para o espiritual e nega as tramas do mundo, uma Igreja além da política, como defendido por Francisco I em seu primeiro discurso como Papa. A bula Manifestis probatum est argumentis.

A “questão evangélica”

Enquanto o catolicismo tenta recuperar o rebanho desgarrado, os evangélicos se disseminam no país, principalmente nas periferias e favelas. Segundo o último censo do IBGE, houve um crescimento vertiginoso dos evangélicos nos últimos 10 anos, cerca de 61,45 %, representando 15,4% da população, aproximadamente 42.275.440 de fiéis espalhados por todos os cantos do Brasil, crescendo com maior volume no Norte e no Nordeste do país. 

Entre os católicos houve, — desde o primeiro Censo em 1872, onde 99,7% da população era ou dizia-se católica para não ser punida pelas autoridades imperiais escravocratas, que reivindicavam o poder secular e divino no corpo estatal, — uma queda de 35,1% no número de fiéis5. Mas os dados nunca são exatos e a precisão das pesquisas esbarra no ruído das ruas. Caminhando pelos subúrbios do Rio de Janeiro, nas favelas, ou pelas ruas de Alto Araguaia, os sinos da Igreja são abafados pelo ecoar de cantos e louvores a Jesus, não o crucificado que expõe suas feridas e seu sofrimento aos homens, carregando todos os pecados que sua cruz pode suportar, mas o Jesus performático que arrebata os corpos e mentes dos fiéis, berrando ou sussurrando línguas estranhas, a língua dos anjos, dizem eles, e rolam no chão dominados pelo Espírito Santo. 

Dentre as igrejas evangélicas que mais crescem no país, as pentecostais e as neopentecostais se impõem como maioria, articulando-se fortemente nos meios de comunicação, entre batistas, congregacionalistas, metodistas, presbiterianos, etc. E para eles não há meio termo entre as palavras sagradas enunciadas pela Bíblia e a vida: eles se doam de forma integral às missões, à evangelização do mundo, o cotidiano deles é traçado pela “salvação das almas”, movidos pelo poder pastoral que organiza cada membro da comunidade, onde todos são pastores em potencial, julgando e policiando cada movimento em falso, cada deslize para o mundo, como eles próprios afirmam. 

O poder dos evangélicos é um reflexo das redes que engendram e sustentam o capitalismo atual, cognitivo ou imaterial, horizontalizado em sua base e concentrado em sua cúpula. Diferente da rígida hierarquia católica, os evangélicos se organizam em “núcleos de base”, onde cada membro da comunidade se responsabiliza pela realização da liturgia e conservação dos fiéis, em seu grupo de oração ou de ajuda aos casais, pela catequização das crianças, não sendo necessário anos de filosofia e teologia para exercer tais funções, mas vontade e dedicação à igreja. 

Além, é claro, do domínio das passagens bíblicas que regem a vida da comunidade e de cada um. Mas a palavra final geralmente é do pastor. É ele quem concentra a produção afetiva e simbólica disseminada pelos fiéis, capturando e redirecionando seus atos de fé e suas palavras, determinando sua proximidade ou afastamento das leis do Senhor, canalizando, em seu fluxo, o pecado e a salvação.
Nas comunidades evangélicas, os pobres se levantam e mostram a sua cara, por mais que o poder pastoral se exerça e a partir dele, eles podem falar e ser ouvidos. Mas os discursos que reproduzem refletem, muitas vezes, os preconceitos estruturais da sociedade brasileira, ainda assolada pelos vestígios da escravidão e do patriarcalismo dos “senhores de engenho”. Algumas igrejas pentecostais como a Assembléia de Deus marcam seu discurso pela defesa intransigente dos dogmas e práticas cristãs, acentuando sua luta contra o diabo e as tentações mundanas, os dons da cura e da profecia, assim como da família patriarcal, do ascetismo da carne e do espírito e da fidelidade inquestionável às palavras da Bíblia, “o primeiro e último livro escrito sobre a terra”.

Pastoreando a homofobia

O pastor, aquele que fala, muitas vezes expropria o desejo dos fiéis, determinando seus modos de vida e suas opções eleitorais. Uma parte considerável da comunidade evangélica, predominantemente as vertentes pentecostal e neopentecostal, possui um projeto político para o Brasil. Esse projeto está em curso e enfrenta forte resistência dos movimentos que lutam pela diversidade sexual e cultural no país. 

Por exemplo, o decreto legislativo que tem por objetivo abolir dispositivos aprovados em 1999 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), intitulado na imprensa “cura gay”. A proposta, de autoria do presidente da Frente Parlamentar Evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO), pretende mudar a resolução elaborada pelo Conselho Federal de Psicologia que impede os profissionais de psicologia a colaborar com “eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”, garantindo “tratamento” gratuito a quem voluntariamente se apresentar para ser “curado” através do Sistema Único de Saúde (SUS)6

Ou o mais recente ataque à democracia e à multidão de vozes e corpos que compõem a pluralidade sexual, étnica e religiosa, num país em que ainda  seluta contra os fantasmas da ditadura e da escravidão: a eleição do pastor e deputado federal Marco Feliciano, da Igreja Catedral do Avivamento, à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). 

Feliciano ficou conhecido pelas frases racistas e homofóbicas que difundiu nas redes sociais e em sermões, tendo acusado diversos parlamentares de promover privilégios e gastar o dinheiro público com minorias que pervertem a sacralidade da família. Frases do quilate de: “Índio nasce índio, não tem como mudar; negro nasce negro e não pode mudar, diferente dos homossexuais”, ou “… até a palavra homossexual deveria ser abolida do dicionário, já que se nasce homem ou mulher”. Ou a eloquente e patética afirmação dele, que os negros seriam descendentes de Canaã, filho amaldiçoado de Noé, e por isso herdeiros de sua maldição. 

A esse ataque a resposta das ruas foi imediata, e as manifestações contra o Pastor Feliciano se disseminaram pelo país e no mundo como enxames7.

Na conjuntura, não custa lembrar as palavras de outro pastor que morreu defendendo os direitos civis dos negros norte-americanos e reacendeu a chama da resistência e da fraternidade nos guetos e favelas oprimidos pelo racismo: “Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira .O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos.Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos” (Martin Luther King)

NOTAS:

1 O jornalista argentino Horacio Verbtsky, do jornal Página 12, foi entrevistado pelo Democracy Now e revelou sua pesquisa sobre a relação dos eclesiásticos com a ditadura militar no país, em que mais de 30 mil pessoas foram sequestradas e assassinadas. Brasil de Fato, “Fransciso e a repressão: algo a esconder?”: http://www.brasildefato.com.br/node/12354 

2 Escândalo que envolve o vazamento de documentos secretos do Vaticano e a existência de uma ampla rede de corrupção e nepotismo relacionados a contratos ilícitos, a preços inflacionados, com os seus parceiros italianos.

3 Brasil de Fato, “Francisco: um Papa que presidirá na caridade”: http://www.brasildefato.com.br/node/12350

4 Universidade Nômade, “América Latina: a última fronteira dos papas”, Hugo Albuquerque: http://uninomade.net/tenda/america-latina-a-ultima-fronteira-dos-papas/

5 G1, “Número de evangélicos aumenta 61% em 10 anos”: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-de-evangelicos-aumenta-61-em-10-anos-aponta-ibge.html

6 O Dia, “Evangélicos debatem projeto de ‘cura gay’ no Congresso”: http://odia.ig.com.br/portal/brasil/evang%C3%A9licos-debatem-projeto-de-cura-gay-no-congresso-1.414973

 7 G1, “Protesto contra pastor Feliciano reúne movimentos sociais em Goiânia”: http://m.g1.globo.com/goias/noticia/2013/03/protesto-contra-pastor-feliciano-reune-movimentos-sociais-em-goiania.html

REFERÊNCIAS:

Jornal do Comércio, ” Novos atos contra o pastor Feliciano”: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2013/03/16/novos-atos-contra-o-pastor-feliciano-76652.php

Revista Fórum, “São Paulo: Manifestantes promovem “beijaço” contra Marco Feliciano”: http://revistaforum.com.br/blog/2013/03/sao-paulo-manifestantes-promovem-beijaco-contra-marco-feliciano/
Carta Capital, “Protestos contra Marco Feliciano chegam a Berlim”: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/protestos-contra-marco-feliciano-chegam-a-berlim/

Luis Nassif Online, “Manifestação em Paris contra Feliciano reúne brasileiros“: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/manifestacao-em-paris-contra-feliciano-reune-brasileiros

Revista Fórum, “Pelo Brasil, um desejo comum: Fora, Feliciano”: http://revistaforum.com.br/blog/2013/03/pelo-brasil-um-desejo-comum-fora-feliciano/
Fonte: Rede Universidade Nômade

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