PICICA: "Na conjuntura, não custa lembrar as palavras de outro pastor que morreu
defendendo os direitos civis dos negros norte-americanos e reacendeu a
chama da resistência e da fraternidade nos guetos e favelas oprimidos
pelo racismo: “Se
soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a
minha macieira .O que me assusta não é a violência de poucos, mas a
omissão de muitos.Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como
os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos” (Martin Luther King)"
Os pobres entre Franciscos e Felicianos
26/03/2013
Por Vladimir Santafé
Este é o quinto texto
publicado no âmbito da UniNômade Brasil sobre a “questão evangélica” na
política brasileira. Santafé critica as consequências da ligadura
estabelecida com os pobres pelo novo papa e os novos pastores, no
contexto do capitalismo brasileiro. Enquanto isso, continuam
minoritárias e sob achaque as vertentes “mais à esquerda”, que existem
por dentro das redes articuladas ao redor do cristianismo.
Por Vladimir Santafé | Professor e militante de movimentos sociais
Um
pouco antes das 19 horas, na 1ª Igreja Batista de Alto Araguaia,
interior do Mato Grosso, cidade fronteiriça com o estado de Goiás, os
fiéis começam a chegar. Chove. Os sons da Igreja dominam a paisagem, os
fiéis se amontoam a passos largos, apressados. Vêm em motos,
caminhonetes, pés, todos caminham em direção à redenção nos céus, pelo
sucesso nos negócios, por acolhimento e reconhecimento social, pelo
sossego da alma e o preenchimento do Espírito Santo, ou por simples
convenção social familiar ou comunitária. Eles chegam aos montes, de
todos os lugares, todas as vestes e caras se encontram na Igreja, tal
como profetizado por Jesus, “a minha Igreja, Pedro, está na pedra”. E a
pedra se ergueu em muitas igrejas e casas de pau a pique abençoadas e
transformadas em lugares de devoção e entrega.
Às 19 horas, os fiéis se encontram e comungam, mas a dinâmica eclesial
começa antes, muito antes. Ela se espalha pelas salas, quartos, cozinhas
e corações dos homens e mulheres que “perderam tudo” ou nunca o
tiveram, este tudo que
os meios de comunicação propagam como o sonho de muitos, o paraíso
consumista de um reino de felicidade e facilidades, onde o desejo se
apodera dos bens e transforma-se em mercadoria. Ou em busca do rosto
caloroso da dignidade humana que encontram na comunidade evangélica.
Rosto que o catolicismo negou durante séculos, apesar da reação de
padres e militantes que inspirados em São Francisco, em Marx e no
próprio Jesus, voltaram a abraçar a causa dos pobres, mobilizando-os
política e espiritualmente. A esse movimento chamaram Teologia da
Libertação.
Papa em nome dos pobres
Hoje,
o Papa Francisco I, acusado por muitos de ter mantido relações ambíguas
com os militares durante a sanguinária ditadura militar na Argentina1, volta a reivindicar a “igreja dos pobres e para os pobres”, uma Igreja menor,
sonhada por São Franciso de Assis e Santa Clara, que movidos pelo
desejo de mudança e o rompimento com os dogmas e as convenções da antiga
igreja medieval, se despojaram de seus trajes e se voltaram para os
pobres, para a potência dos pobres. Reconstruindo seu sonho pedra por
pedra, horizontalizando o poder litúrgico que antes unicamente traçava a
intricada relação que a Igreja Católica mantinha com a nobreza europeia
e que ainda se mantém, mas agora através das redes de poder
contemporâneas, bancos e contratos fraudulentos com investidores
privados. Vê-se o caso Vatileaks2, motor, segundo muitos, da renúncia de Bento XVI ao papado.
O
fato é que a Igreja Católica permanece romana, isto é, já não se rezam
missas em latim de costas para o público, com algumas exceções à regra,
mas o centro das decisões políticas e litúrgicas ainda é o Vaticano e
sua cúpula. As redes que atravessam o poder e reforçam as ligaduras em
seu processo de consolidação dos estratos convergem aos “olhos de Deus”,
que contemplam o teto da Capela Sistina na obra monumental de
Michelangelo e sua gênese do mundo, como num espelho onde Deus é o outro
de si mesmo. Divina dialética que sintetiza o poder mundano e
transcendente em instituições sociais específicas, sob a égide da Cúria
romana, como o Secretariado para as religiões não cristãs, o Dicastério
da unidade dos cristãos, o Dicastério das missões, o dos direitos
humanos e justiça etc.
Apesar
de o teólogo e filósofo Leonardo Boff, — de clara inspiração
franciscana, ordem a que pertencia antes da expulsão da Igreja pelo
atual Papa Emérito Bento XVI, — acreditar numa linha de descentralização
dos poderes administrativos e políticos do catolicismo. Boff acredita
que o novo Papa presidirá na caridade, onde “a Igreja Católica poderia
se transformar numa instância não autoritária de valores universais dos
direitos humanos, os da Mãe Terra e da natureza, contra a cultura do
consumo, em favor de uma sobriedade condividida”3. Mas
sem a presença dos anômalos que a Igreja considera como expurgos da fé
cristã, do modelo idealizado por apóstolos, teólogos e filósofos, que
negam à cópia a sua autonomia diante do mundo das ideias, do Demiurgo que planeja a vida e os seres que a habitam segundo a própria semelhança. Potência do mesmo, poder constituído.
Logo,
os homossexuais e os demais hereges não poderiam compartilhar do vinho e
do pão, a eucaristia antecipa aqueles que podem ou não participar do
Reino dos Céus, o contrário da cidade mundana (e ao mesmo tempo participante
do Divino) idealizada por Plotino, onde os homens são iguais à potência
emanada por Deus. A subversão sexual, — ou consórcio entre as forças do
masculino e do feminino, instância do sagrado que não passa
necessariamente pela rebeldia ou pelo desregramento dos sentidos, ainda
que atravesse o transe, — sempre foi perseguida e punida pela moral
judaico-cristã. Os hereges, muitas vezes, são aqueles que invocam a carne como
mediação entre Deus e os homens, daí a importância da mulher para os
pagãos e sua condenação pelos cristãos, pois ela é meio e instrumento
dos deuses ou de Deus para a criação da vida.
O
discurso de Francisco I também recai numa possível captura da potência
dos pobres, potência anômala por natureza, dado que esta se faz a partir
da carência, da ausência do desejo e sua afirmação niilista, ao
martírio da resignação que distribui, ao menos no discurso, a miséria
aos peregrinos sobre a terra (todos miseráveis e pecadores) e nega a
vida4.
Muitos analistas identificam a ascensão de Franciso I como uma retomada
do conservadorismo populista de João Paulo II, que através da sua força
e carisma manteve a estabilidade da Igreja, reforçando os dogmas e
limites, como o celibato, a denúncia do aborto e dos métodos
contraceptivos, o patriarcalismo inerente à hierarquia religiosa, dentre
outros princípios que norteiam e constituem o poder da ortodoxia
católica.
Apesar
do aceno parcialmente favorável a novas formas litúrgicas que mobilizam
os fiéis e ampliam o seu número, como as adotadas pelos carismáticos no
Brasil, fortemente influenciados pelo pentecostalismo. Em alguns casos,
o sincretismo é tão grande que até alguns princípios do kardecismo são
usados para manter os fiéis integrados à comunidade católica.
Os
princípios da Teologia da Libertação, no entanto, de transformação
social e mobilização política dos pobres, foram negados e combatidos com
veemência nas bases da Igreja, ainda que com resistência das pastorais
ligadas às lutas da cidade e do campo. Uma Igreja que se volta para o
espiritual e nega as tramas do mundo, uma Igreja além da política, como
defendido por Francisco I em seu primeiro discurso como Papa. A bula Manifestis probatum est argumentis.
A “questão evangélica”
Enquanto
o catolicismo tenta recuperar o rebanho desgarrado, os evangélicos se
disseminam no país, principalmente nas periferias e favelas. Segundo o
último censo do IBGE, houve um crescimento vertiginoso dos evangélicos
nos últimos 10 anos, cerca de 61,45 %, representando 15,4% da população,
aproximadamente 42.275.440 de fiéis espalhados por todos os cantos do
Brasil, crescendo com maior volume no Norte e no Nordeste do país.
Entre
os católicos houve, — desde o primeiro Censo em 1872, onde 99,7% da
população era ou dizia-se católica para não ser punida pelas autoridades
imperiais escravocratas, que reivindicavam o poder secular e divino no
corpo estatal, — uma queda de 35,1% no número de fiéis5.
Mas os dados nunca são exatos e a precisão das pesquisas esbarra no
ruído das ruas. Caminhando pelos subúrbios do Rio de Janeiro, nas
favelas, ou pelas ruas de Alto Araguaia, os sinos da Igreja são abafados
pelo ecoar de cantos e louvores a Jesus, não o crucificado que expõe
suas feridas e seu sofrimento aos homens, carregando todos os pecados
que sua cruz pode suportar, mas o Jesus performático que arrebata os
corpos e mentes dos fiéis, berrando ou sussurrando línguas estranhas, a
língua dos anjos, dizem eles, e rolam no chão dominados pelo Espírito
Santo.
Dentre as igrejas evangélicas que mais crescem no país, as pentecostais
e as neopentecostais se impõem como maioria, articulando-se fortemente
nos meios de comunicação, entre batistas, congregacionalistas,
metodistas, presbiterianos, etc. E para eles não há meio termo entre as
palavras sagradas enunciadas pela Bíblia e a vida: eles se doam de forma
integral às missões, à evangelização do mundo, o cotidiano deles é
traçado pela “salvação das almas”, movidos pelo poder pastoral que
organiza cada membro da comunidade, onde todos são pastores em
potencial, julgando e policiando cada movimento em falso, cada deslize para o mundo, como eles próprios afirmam.
O poder dos evangélicos é um reflexo das redes que engendram e
sustentam o capitalismo atual, cognitivo ou imaterial, horizontalizado
em sua base e concentrado em sua cúpula. Diferente da rígida hierarquia
católica, os evangélicos se organizam em “núcleos de base”, onde cada
membro da comunidade se responsabiliza pela realização da liturgia e
conservação dos fiéis, em seu grupo de oração ou de ajuda aos casais,
pela catequização das crianças, não sendo necessário anos de filosofia e
teologia para exercer tais funções, mas vontade e dedicação à igreja.
Além,
é claro, do domínio das passagens bíblicas que regem a vida da
comunidade e de cada um. Mas a palavra final geralmente é do pastor. É
ele quem concentra a produção afetiva e simbólica disseminada pelos
fiéis, capturando e redirecionando seus atos de fé e suas palavras,
determinando sua proximidade ou afastamento das leis do Senhor,
canalizando, em seu fluxo, o pecado e a salvação.
Nas comunidades evangélicas, os pobres se levantam e mostram a sua cara, por mais que o poder pastoral se exerça e a partir dele,
eles podem falar e ser ouvidos. Mas os discursos que reproduzem
refletem, muitas vezes, os preconceitos estruturais da sociedade
brasileira, ainda assolada pelos vestígios da escravidão e do
patriarcalismo dos “senhores de engenho”. Algumas igrejas pentecostais
como a Assembléia de Deus marcam seu discurso pela defesa intransigente
dos dogmas e práticas cristãs, acentuando sua luta contra o diabo e as
tentações mundanas, os dons da cura e da profecia, assim como da família
patriarcal, do ascetismo da carne e do espírito e da fidelidade
inquestionável às palavras da Bíblia, “o primeiro e último livro escrito
sobre a terra”.
Pastoreando a homofobia
O pastor, aquele que fala,
muitas vezes expropria o desejo dos fiéis, determinando seus modos de
vida e suas opções eleitorais. Uma parte considerável da comunidade
evangélica, predominantemente as vertentes pentecostal e neopentecostal,
possui um projeto político para o Brasil. Esse projeto está em curso e
enfrenta forte resistência dos movimentos que lutam pela diversidade
sexual e cultural no país.
Por
exemplo, o decreto legislativo que tem por objetivo abolir dispositivos
aprovados em 1999 pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), intitulado
na imprensa “cura gay”. A proposta, de autoria do presidente da Frente
Parlamentar Evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO), pretende mudar a
resolução elaborada pelo Conselho Federal de Psicologia que impede os
profissionais de psicologia a colaborar com “eventos e serviços que
proponham tratamento e cura das homossexualidades”, garantindo
“tratamento” gratuito a quem voluntariamente se apresentar para ser
“curado” através do Sistema Único de Saúde (SUS)6.
Ou
o mais recente ataque à democracia e à multidão de vozes e corpos que
compõem a pluralidade sexual, étnica e religiosa, num país em que ainda
seluta contra os fantasmas da ditadura e da escravidão: a eleição do
pastor e deputado federal Marco Feliciano, da Igreja Catedral do
Avivamento, à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias
(CDHM).
Feliciano
ficou conhecido pelas frases racistas e homofóbicas que difundiu nas
redes sociais e em sermões, tendo acusado diversos parlamentares de
promover privilégios e gastar o dinheiro público com minorias que
pervertem a sacralidade da família. Frases do quilate de: “Índio nasce
índio, não tem como mudar; negro nasce negro e não pode mudar, diferente
dos homossexuais”, ou “… até a palavra homossexual deveria ser abolida
do dicionário, já que se nasce homem ou mulher”. Ou a eloquente e
patética afirmação dele, que os negros seriam descendentes de Canaã,
filho amaldiçoado de Noé, e por isso herdeiros de sua maldição.
A
esse ataque a resposta das ruas foi imediata, e as manifestações contra
o Pastor Feliciano se disseminaram pelo país e no mundo como enxames7.
Na conjuntura, não custa lembrar as palavras de outro pastor que morreu
defendendo os direitos civis dos negros norte-americanos e reacendeu a
chama da resistência e da fraternidade nos guetos e favelas oprimidos
pelo racismo: “Se
soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a
minha macieira .O que me assusta não é a violência de poucos, mas a
omissão de muitos.Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como
os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos” (Martin Luther King)
1 O jornalista argentino Horacio Verbtsky, do jornal Página 12, foi entrevistado pelo Democracy Now e revelou sua pesquisa sobre a relação dos eclesiásticos com a ditadura militar no país, em que mais de 30 mil pessoas foram sequestradas e assassinadas. Brasil de Fato, “Fransciso e a repressão: algo a esconder?”: http://www.brasildefato.com.br/node/12354
2
Escândalo que envolve o vazamento de documentos secretos do Vaticano e a
existência de uma ampla rede de corrupção e nepotismo relacionados a
contratos ilícitos, a preços inflacionados, com os seus parceiros
italianos.
3 Brasil de Fato, “Francisco: um Papa que presidirá na caridade”: http://www.brasildefato.com.br/node/12350
3 Brasil de Fato, “Francisco: um Papa que presidirá na caridade”: http://www.brasildefato.com.br/node/12350
4
Universidade Nômade, “América Latina: a última fronteira dos papas”,
Hugo Albuquerque:
http://uninomade.net/tenda/america-latina-a-ultima-fronteira-dos-papas/
5
G1, “Número de evangélicos aumenta 61% em 10 anos”:
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-de-evangelicos-aumenta-61-em-10-anos-aponta-ibge.html
6 O Dia, “Evangélicos debatem projeto de ‘cura gay’ no Congresso”: http://odia.ig.com.br/portal/brasil/evang%C3%A9licos-debatem-projeto-de-cura-gay-no-congresso-1.414973
6 O Dia, “Evangélicos debatem projeto de ‘cura gay’ no Congresso”: http://odia.ig.com.br/portal/brasil/evang%C3%A9licos-debatem-projeto-de-cura-gay-no-congresso-1.414973
7
G1, “Protesto contra pastor Feliciano reúne movimentos sociais em
Goiânia”:
http://m.g1.globo.com/goias/noticia/2013/03/protesto-contra-pastor-feliciano-reune-movimentos-sociais-em-goiania.html
REFERÊNCIAS:
Carta Capital, “Protestos contra Marco Feliciano chegam a Berlim”: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/protestos-contra-marco-feliciano-chegam-a-berlim/
Fonte: Rede Universidade NômadeJornal do Comércio, ” Novos atos contra o pastor Feliciano”: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2013/03/16/novos-atos-contra-o-pastor-feliciano-76652.php
Revista Fórum, “São Paulo: Manifestantes promovem “beijaço” contra Marco Feliciano”: http://revistaforum.com.br/blog/2013/03/sao-paulo-manifestantes-promovem-beijaco-contra-marco-feliciano/Carta Capital, “Protestos contra Marco Feliciano chegam a Berlim”: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/protestos-contra-marco-feliciano-chegam-a-berlim/
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